Aconteceu em dez anos, no reino de Citadel - Parte 02 - Impasse

 

O palácio da vingança

─ Essa ideia fica cada vez mais absurda na minha cabeça ─ reclamou Jafari. Ele, Lisbeth e Klaus encontravam-se no Palácio da Vingança, um lugar cujo nome, por si só, já não ajudava em nada para acalmar os ânimos do guerreiro.

─ Porque tanta dificuldade em aceitar isso, guardião? ─ questionou Lisbeth.

─ Eu reconheço que Aisen não é, necessariamente, um inimigo declarado de Azran, mas também sei que ele não é alguém em que se possa confiar. Todo esse lance de vingança e as costumeiras traições realizadas para sustentar o ego da linhagem dele já são realidades que indicam isso. Busco uma razão que não seja rasa para sua decisão, rainha, mas quanto mais profundo vou, mas a certeza de que esse plano não vai dar certo é aparente.

─ Mas você não conhece nem metade do plano Jafari ─ Lisbeth reprovou o assunto e Jafari, de olhos arregalados, temeu pela própria vida.

─ Explique-me, então, minha rainha. Sou teu guardião, por isso luto pela sua sobrevivência, me ajudaria muito estar relacionado com os fatos.

            Lisbeth tomou um fôlego demorado enquanto fechava os olhos e parecia pensar numa resposta convincente:

─ Aensell traçou nosso destino, Jafari...

            Poucas foram as vezes em que Jafari perdera a paciência durante toda sua vida. Seu treinamento, tanto bélico quanto arcano, tornaram sua mente afiada e resistente, mas aquela afirmação foi capaz de fazer desabar toda muralha que protegia sua vontade:

─ Esse garoto de novo? ─ Jafari lançou para Lisbeth o olhar mais duro ─ Porque tanta confiança neste mago? Como ele pôde ganhar sua confiança em tão pouco tempo!? Que feitiço ele usou contra ti!?

─ Cale-se, guardião! ─ exigiu Lisbeth, seu rosto inquebrável como a rocha e assustador como uma cidade em chamas ─ Devo te lembrar que é meu súdito e que, por isso, deve me obedecer e atender tudo que eu achar necessário!

            Jafari sentiu as pernas amolecerem e as costas arquearam sustentando o peso da situação.

─ Você acha mesmo que sou uma garotinha imatura? Que minha vontade de rainha não é maior que os feitiços de um mago!? Não lembra que sou Lisbeth, filha de Azran e portadora de Vittoria? Que ergui a Flâmula Esmeralda junto a você e outros heróis em inúmeras batalhas? Pelo quê teme? Por mim ou por você?

            Jafari silenciou-se, baixou a cabeça e suspirou profundamente arrependido:

─ Você está certa ─ ele ergueu-se, apenas para ajoelhar-se diante a rainha ─ Peço perdão pela minha falta de doutrina.

Foi diante desta cena que Azanthe, a sombra de Citadel, soldado leal à Aisen, apareceu, observou o ato e acenou para que fosse seguido.

─ Levante-se, Jafari. Você vem comigo. Klaus, você ficará aqui e aguardará.

            Klaus nem pensou em desobedecer.

***

Os corredores do palácio da vingança eram longos e cercados por alicerces que desenhavam uma vida de guerra e muitas vitórias, desde as flâmulas com o dragão empalado, aos escudos, armaduras e espadas que pertenceram a grandes heróis e que ainda brilhavam com a magia de outrora ─ artefatos que somente seriam utilizados novamente caso a mais terrível e catastrófica guerra que Aisen desejava ocorresse. As colunas eram extensas e contornavam os subúrbios do palácio permitindo o vislumbre dos vastos jardins, das torres e fortalezas que circundavam o palácio e do céu movimentado pelos veículos arcanos de Mordae.         

Como o palácio alcançava as alturas, as nuvens formavam a neblina densa que invadia os salões e eram afastadas pelas tochas eternas e lareiras que existiam espalhadas pelos corredores e câmaras do lugar. A névoa, ainda assim, sempre encontrava um jeito de tocar os pés dos transeuntes de forma que o frio estava sempre presente. Uma forte ventania foi soprada vinda da direção de um aeroplano e a forte rajada de vento fez com que a dupla sentisse gelar os ossos, como se escalassem uma montanha em Nevaska. Azanthe parecia não se importar com aquilo, enquanto Lisbeth e Jafari escondiam o sentimento de estranheza.

Ablis e Hadith, respectivamente um djinn e um efreeti que foram ordenados para que deixassem suas desavenças de lado afim de servir ao rei, mantinham-se diante do colossal portão com o maior dos desenhos do dragão empalado que a rainha havia visto até então, tão bem desenhado que o símbolo parecia mover-se com sofrimento. Os gênios giraram um imenso mecanismo e os portões se abriram emitindo um rugido sobrenatural.

As janelas do salão do trono do rei não tinham vidraças, eram apenas vastas entradas que permitiam que a névoa também contaminasse o lugar e tornassem o ambiente pesado e assustador. Lisbeth teve a impressão de que rostos e presenças se formavam na neblina, caminhando calmamente para as laterais do salão onde mantinham uma postura de nobreza para, enfim, tornarem-se definitivamente invisível. Ao fundo, após meia dúzia de flâmulas imperiais e um longo tapete de veludo estava o rei sentado em seu trono.

O trono é feito de ossos de dragão fundidos num metal tão pesado quanto chumbo. Lisbeth sabia que aqueles restos mortais pertenciam aos antigos dragões que formavam a Dragocracia, uma era passada, ostentados ali para que qualquer visitante nunca se esquecesse que aquele rei, não importa a forma com que havia combatido estas criaturas, triunfou. As lâminas gêmeas, talvez os artefatos mais poderosos do mundo junto à própria Vittoria, estavam cravadas nas laterais do trono, sempre ao alcance de Aisen.

A névoa abriu caminho, os fantasmas desapareceram, mas Lisbeth sabia que eles continuariam lá, pois havia ouvido falar da história dos Daegonheart: seus descendentes eram eternos e compartilhavam conhecimento e sabedoria com seus próximos. Naquela sala havia um exército de reis e imperadores, guerreiros frios que se acostumaram com o triunfo e que ainda ansiavam pela máxima dominação da linhagem. Ali estavam assassinos de outrora, degoladores de outros reis e colonizadores de todas as terras. Aisen, era, enfim, tudo aquilo que o cercava.

─ Bem vinda, lady Lisbeth, permita-me salientar sobre sua beleza, pois há muito não a vejo e apenas tive contato contigo quando ainda era bebê.

            Jafari cerrou os punhos contendo o ódio. A voz de Aisen soava como insulto, apesar das palavras cordiais. Lisbeth estava segura ou, pelo menos, era bem-sucedida em parecer isso.

─ Rei Aisen, senhor da coroa quebrada ─ ela esboçou seu sorriso mais ardil e sentiu o frio perscrutar sua pele, uma resposta negativa dos espíritos que acercavam a reunião.

─ Você acabou de me mostrar que a audácia é um dos seus dons, lady. Eu admiro isso, no entanto, peço que se contenha, pois neste salão os ofendidos têm anseios e vontades.

─ Eu desejo que você, rei de Citadel, contenha esses ofendidos, pois eu mal comecei meu discurso.

            Jafari olhou para Lisbeth assustado. O silêncio tornou-se sepulcral. Aisen riu alto.

─ Eles não lhe farão mal algum, pois sabem que a vez deles não chegou. Agora, quero que me diga o que veio fazer no Palácio da Vingança.

─ Propor algo que a nossa geração recusa aceitar, mas que foi e ainda é a solução definitiva para o que está por vir.

─ Continuo ouvindo...

─ Que a essência dos criadores seja libertada novamente e que a magia seja usada sem limitações.

─ Os elfos não vão gostar nada dessa segunda sugestão ─ zombou Aisen diante tanta tolice.

─ Alguém está resolvendo essa questão para mim, diplomaticamente ─ ela olhou para o rei seguramente e ele soube que ela não mentia.

            Aisen calou-se um breve momento antes de dizer:

─ Perdão, rainha de Azran, não desejo compactuar com isto. Estou guardando a essência para algo maior e definitivo ─ respondeu e em seu rosto todos os traços de alguém ardil foram desenhados.

─ Eu entendo o que você quer, Aisen. Você pensa que o destino que você calculou é inevitável, acha que é de minha natureza, da natureza de meus guerreiros, investir contra a Mortalha e voltar de lá derrota, para que você possa triunfar em cima da nação mais honrada! Mas, não é isso que você fará. Não é isto que acontecerá!

            Aisen admirou-se, pois notou que a rainha sabia muito, porém, ainda estava convencido que ela não sabia do todo.

─ Eu tenho o poder da aliança, lady Lisbeth. Eu capturei esta vitória e decifrei suas incógnitas.

─ Você não fez isso completamente. Você deixou que um deles escapasse. Suas espadas continuaram famintas desde que Garyx fugiu da derrota ─ revelou a rainha.

            Jafari estava perplexo. Aquela discussão estava muito além de seu entendimento. Aisen respondeu:

─ Ainda assim, Lisbeth, eu e meu reino somos o suficiente para concretizar os desejos de minha linhagem. Você reconhece isso, rainha bastarda?

─ Vou lhe mostrar o que é reconhecimento, rei da coroa rompida! ─ então, Lisbeth empunhou Vittoria com firmeza.

            Aisen gargalhou alto e não pôde se conter facilmente. Sua ameaça soou entrecortada:

─ Você lutará contra mim, aqui? ─ zombou Aisen ─ Diga-me rainha louca, quando a insanidade da família dos Leonheart afetou a sua mente e revele-me se isto é realmente possível ou se a cena que vejo agora é simplesmente a maior tolice que já vi na vida! Quem infectou suas decisões e te mandou para a morte?

            Lisbeth sorriu, então virou-se e entregou Vittoria à Jafari. O guardião tremeu e recebeu a espada, jamais havia pensado que a morte dele aconteceria no final daquela jornada. Ele não conseguiria fugir, a única forma de ter uma morte honrada era fazer o que Lisbeth queria: investir contra um inimigo invulnerável e esperar o contra-ataque fatal. Atônito, ele esperou a ordem:

─ Ataque-me. Arranque minha cabeça com seu melhor golpe! ─ ordenou Lisbeth.

            Jafari recuperou os sentidos e notou que na sua frente, lady Lisbeth estava ajoelhada esperando a execução.

─ Li-li-lisbeth... ─ a cena foi tão chocante que os olhos de Jafari verteram lágrimas de desespero, mas o rosto da rainha estava calmo e impenetrável.

─ Ataque-me, agora, guardião! ─ ela ordenou mais uma vez.

─ Minha rainha, e-eu não posso. Eu nunca faria isso!

            Lisbeth baixou a cabeça e cravou as unhas nas coxas com raiva, ergueu o rosto novamente e com a ira estampada ameaçou:

─ Se você me desobedecer ou me questionar mais uma vez, Jafari, serei eu quem arrancarei a tua cabeça! Faça! Faça agora! Ou darei um jeito para que seu nome seja ecoado pela eternidade como o maior traidor de Azran!

            Jafari forçou-se a parar de tremer. Segurou Vittoria com firmeza, fechou os olhos forçosamente, só queria que aquilo acabasse. O frio era tão intenso...

A espada desabou cheia de vontade e Jafari sentiu vertigem quando foi arremessado contra as paredes do salão pelas presenças fantasmagóricas que ali rodeavam. Cuspiu sangue, caiu de joelhos, deixou Vittoria cair de suas mãos.

            Aisen agora estava perplexo. Ele viu a rainha invasora ficar de pé, envolta pelos antepassados da linhagem.

─ Parece que temos um impasse. Alguns deles não querem que eu morra, pai. Acho que isso estragará alguns planos quando finalmente chegar a vez deles...

─ Como isso é possível?

─ Você tornou-se eterno como pessoa, Aisen, mas não como rei, muito menos como imperador.

            Aisen ergueu-se do trono.

─ Nós faremos isso juntos, pelo bem da linhagem, ou a vitória nunca virá! ─ argumentou Lisbeth.

            Aisen conseguia ver os espectros dos seus antepassados renovados pela esperança:

─ Você não sabe o que está fazendo menina ─ ele sorriu, entregue à situação ─ mas isso é o suficiente para que eu aceite a aliança. Então...

Citadel e Azran estarão juntas, como nunca estiveram antes.

 

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