Mara Aruat, com seus olhos de fogo, já teve outro nome no passado. A bênção da deusa fênix pôs em seu ventre a promessa de uma linhagem milenar e maculada, batizada pelas chamas sagradas para que, enfim, o sangue há muito amaldiçoado finalmente obtivesse uma cura. Mara Aruat tinha outro nome no passado, porém, este já não lhe cabia desde seu título de santidade, desde o momento em que se tornou mãe de Ofélia.
Respirando o ar quente que emanava de seus pulmões tomados pelas cinzas dos vulcões divinos de Sazancros, ela derramou o fogo divino sobre os inimigos e os incinerou até que lhes sobrasse apenas os vestígios do que um dia eram e estes foram desmanchados pelo vento infernal que soprava da guerra.
− Vocês haverão de ser castigados pelos divinos se não fizerem o que estou mandando! – ela vociferou em tom de ordem, sua voz emanando como o comando gutural vindo da garganta de uma deusa, rompante e assustador.
A raiva não era destinada aos inimigos pois, para esses não haveria avisos. Seu comando destinava-se ao grupo que ela protegia. O grupo subia as longas escadarias de um zigurate, um templo religioso incrustado entre montanhas e florestas das fronteiras de Shantae e Corantha, o lugar que Adhraim, o monolito vivo e servo de Valerie, havia devotado parte de sua longa vida para erguer.
Adhraim, aquele que um dia foi da raça anânica, mas que forjara de seu próprio corpo o pesado bronze incandescente tornando-se um dos tocados de Hefasto, retribuiu o olhar impiedoso da companheira e em passos pesados focou em chegar no alto do templo onde esperava conseguir de sua deusa a imagem refletida de seu destino.
Tathagata não gostava de usar sua força contra Ofélia, mas conter o espírito incontrolável da garota exigia um curso de ações longo e complexo, por isso, agarrou-a como quem agarra um pescado e rumou em direção ao alto da escadaria. A menina se contorcia tentando se livrar do agarre e o elfo do mar, com suas escamas que conflitavam entre o azul e a prata, tentava a confortar: − Controle, minha menina. Mantenha o controle! – mas Mara Aruat era mais importante que um deus para ela. A paladina era sua mãe... e Ofélia sabia do que as mães eram capazes para proteger suas crias.
A longa barba de Tathagata era um emaranhado de tentáculos e seus olhos eram como pérolas incendiando nas profundezas do oceano. Ainda com Ofélia nos braços, ele não se conteve a olhar para trás e ver a amiga tornar-se um com o fogo das asas de uma fênix e arrastar pelo campo de batalha a destruição definitiva para, então, não mais voltar. Lá de cima, o elfo do mar, que não se acostumava com o medo, vislumbrou um incomparável e infalível exército disposto a enfraquecer todos os seus alicerces para se jogar numa fúria intensa e irracional provocada pela presença da rainha louca.
Yeka’tea, as irmãs siamesas, as mães da linhagem amaldiçoada e a rainha louca, buscava a morte daquela que, por ordem dos deuses, seria, no laço histórico, sua própria filha. Um de seus torsos mantinha uma cabeça escrava e infeliz, vendada e amordaçada, agrilhoada à correntes mágicas. O outro comportava o rosto da mãe sádica com sorriso demente desenhado no rosto, apontando com seu dedo fino e unha escarlate o avanço do exército de suicidas do reino de Azran. A rainha era duas e montava Zheenkeef, a senhora dos dragões verdes que exalava de suas narinas as nuvens de vapor venenoso capaz de arruinar a vida e os alicerces de uma cidade.
– Avancem, filhos das planícies eternas. Seus sangues e ossos são preço barato a pagar pela vitória de uma linhagem! – ela gargalhava emoldurada por um céu negro e tempestuoso, cercada pelas longas asas de Zheenkeef.
Ofélia desfez-se do agarre de Tathagata e, num acesso de fúria, lhe esmurrou as costas fazendo o elfo do mar adiantar-se em muitos degraus na subida do zigurate.
– Me solta, seu velho! – a garota de pele morena e vontade intrépida ralhou.
Em meio ao baixar denso da poeira provocada pelos estilhaços da construção, Tathagata limpava os lábios do sangue negro típico de sua raça e ria entre pausas deixando Ofélia confusa:
– Eu te ensinei bem, fedelha... – ele falou orgulhoso enquanto se erguia – talvez meu whakamutunga finalmente tenha chegado aqui, no que parece o fim do mundo.
Sombras se destacaram no céu escuro. Eram das asas de águias gigantes que outrora eram nada mais do que somente amigas, agora, envoltas pela insanidade das rainhas siamesas, tinham seus olhos escuros como piche tingido por um anel muito fino e vermelho que desenhavam uma íris sobrenatural. Adhraim balbuciou “... a cavalaria eólica...”, lembrando-se de um tempo em que os cavaleiros das águias gigantes eram uma esperança que se despejava no fim de cada batalha.
– ...devo te lembrar da promessa, Ofélia. Você deve respeitar meu whakamutunga!
Os punhos firmes como rocha da garota pararam de exercer a força de seu impulso. Ela, em seus lapsos de sabedoria frequentes, enxergou na sanidade de Tathagata o caminho para ordenar os próprios pensamentos e a realidade socou o seu estômago mais forte do que seu mestre conseguira um dia. Continuava sendo raiva, mas havia tristeza e saudade. Havia empenho e sacrifício.
O elfo do mar desceu os lances de escada que o distanciava da pupila, tocou-lhe o ombro e oscilando um breve sorriso, arrancou da garota a lágrima que ela resistia a derramar desde o inevitável sacrifício de sua mãe.
– Whakamutunga é inevitável – era isso o que significava a palavra pronunciada na língua estrangeira “o ponto final de um destino no qual nenhum de nós consegue evitar” – você, garota, já entendeu que a única vitória que alcançaremos aqui é mantê-la viva, então, não nos atrapalhe – abaixou-se e num raro demonstrativo de sentimento banal compartilhado entre os povos da terra seca, abraçou Ofélia – Vá!
Ofélia olhou para a roda de chamas criada pelas asas de sua verdadeira mãe e deixou-se cair num pranto sincero. Não teve coragem de retribuir o último olhar do mestre e correu em direção ao alto do templo. Tathagata caiu como Leviathan sobre os inimigos, uma voraz queda d’agua que escorreu ascendente, em direção ao céu de águias malditas e lá desapareceu.
Zheenkeef brotou em meio a chuva recém-formada. Seu hálito corroía os alicerces do zigurate. A senhora dos dragões verdes sibilou “Não há como escapar... eles querem você... entregue-se, pois, seu sangue perdurará seja pra que lado for...”
Ofélia levou as mãos aos ouvidos e ainda assim ouviu a voz tentadora da dragoa, serva da rainha siamesa. Por um momento, sua mente doeu como se arranhada lentamente por uma faca gelada e seu nariz despejou gotas de sangue dar cor do vinho, mas a garota alcançou os portões de latão do zigurate que trovejaram quando fechados ao comando da voz de Adhraim.
Lá dentro havia apenas algo realmente destacável: um espelho gigante refletindo as imagens de Ofélia e Adhraim. Aquele que foi um entre os anões golpeou com seu martelo sagrado os portões do zigurate e a fenda entre o metal incandesceu e chumbou.
– Não temos muito tempo – avisou Adhraim.
Ofélia se sentia sozinha e bastante incomodada na presença de Adhraim, como se devesse parte de sua vida a ele, apesar de pouco conhecê-lo, apesar de há pouco ele ter se metido tão abruptamente em sua vida. Mara Aruat havia contado sobre os sacrifícios que o anão fizera para proteger a linhagem dos Wolfenheart, mas Ofélia não conseguia entender suas motivações, nem o voto que ele decidira fazer à deusa de tudo que é belo.
Ele se ajoelhou perante o espelho e após uma breve prece tornou-se tão pesado quanto adamante. O chão perfeito do templo de Valerie rachou conforme Adhraim aumentava gradativamente de tamanho até tornar-se tão grande quanto o espelho. Ele era ferro e brasa iluminando a escuridão do santuário fechado e seu martelo se adequou a existência de seu mandante.
Do lado de fora, o sopro de Zheenkeef e o gargalhar de Yeka’tea rompiam e oxidavam os grandes portões que não resistiriam nem mais um minuto.
Adhraim, resoluto, arrancou seu olho direito que era como um valioso diamante. O sangue ainda brotava do orifício ferido e caía como cascata luminescente, deslizando sobre seu corpo e se arrastando entre as fissuras do templo, quando com sua força descomunal, ele esfarelou a gema entre seus dedos e soprou o pó estelar no espelho. Ofélia assistia a tudo absorta.
– O espelho é a sua saída, Ofélia. Eu vou ficar.
Mais uma vez a garota sentia o peso de sua dívida e se perdia ao olhar para o breu que o espelho se tornava. Não era o escuro como o das trevas de seu inimigo, mas um caminho desenhado em uma galáxia distante, perfurada por minúsculas estrelas distantes e brilhantes. Ofélia assentiu positivamente, demonstrou como podia o agradecimento que jamais poderia ser suficiente e atravessou o espelho em direção ao desconhecido.
Os portões cederam. O exército insano abriu passagem enquanto demolia o zigurate. Yeka’tea deslizou pela asa de Zheenkeef com seu sorriso eterno e lunático desenhado no rosto, a unha escarlate salivando veneno.
– É o seu fim, Adhraim, muralha da linhagem alheia e, junto a ti, a morte devorará também a sua deusa!
Adhraim, entretanto, não sentia a derrota. Sabia que aquele seria o seu derradeiro fim. Aensell havia lhe contado. Agarrou-se firme ao martelo sagrado e, em súbita reação, quebrou o espelho de Valerie em centenas de pedaços.
[...]
Os minúsculos pedaços do espelho foram varridos, pisados e estilhaçados pela marcha impiedosa do exército de insanos, levados pelo tempo e pelo vento, ignorados e esquecidos.
[...]
Ithias Flamel liderava a Ordem dos Atemporais na Ruína dos Gigantes de Outrora. Há muito aqueles aventureiros haviam se trancafiado na distante cidade nos limites da selva de Chattur’gah. Há muito aquela ordem havia descoberto o segredo das gemas dos perafitas.
As estilhas do espelho estavam reunidas. Aensell retornara das estrelas e os anéis dos heróis do passado estavam prontos para serem forjados.