Aconteceu em dez anos, no reino de Citadel - Parte 01 - Metrópole


─ Ah! Nunca pensei que esse cheiro de urbanização me faria tão bem! Afinal de contas, minhas lembranças são muitas e... ora vejam, parece que finalmente o senhor Firmino Burrfoot conseguiu levantar sua hospedaria... hmm, “O herói faminto” é um nome bem sugestivo e, pra falar a verdade, consigo sentir o cheiro bom do cardápio de lá, vocês sabem como um gnomo tem bom olfato, então...

            As barbas grisalhas do gnomo tagarela batiam nos joelhos, era a única coisa que os habitantes daquela cidade podiam ver dele, já que estava parcialmente coberto por um capuz. Ele está bastante animado, sentado na frente da carroça segurando as rédeas atreladas a um cavalo pesado de crina muito bem escovada. Com ele estão outros dois viajantes, igualmente encapuzados.

 ─ Contenha-se, Klaus. Você pode levar a perder todo nosso disfarce! – uma voz feminina ressoou da figura que olhava tudo atentamente, mas com a cabeça baixa, camuflando quase inteiramente sua presença.

─ Mil desculpas, minha rainha, mas um gnomo sabe o valor das coisas e quanto mais caras, mais impressionantes. Se Citadel é o suficiente para embasbacar o viajante mais descompromissado, imagine um velho gnomo que passou parte da sua vida aqui e após anos retorna e vê tudo...diferente, de certa forma.

─ Dizem que Citadel nunca para de crescer... ─ sussurrou a terceira voz, essa masculina e soturna.

─ E falam o certo, meu caro guardião. Citadel nunca parará de crescer. Ela será tão grande quanto a Espinha do mundo e quando não puder crescer para os lados, crescerá para cima e também para baixo, como, de fato, já está acontecendo.

─ Que alicerces poderiam sustentar tamanha grandiosidade? ─ perguntou a voz feminina dessa vez.

─ Esta é uma pergunta que os anões fariam, lady, mas, para os gnomos a resposta é muito óbvia: magia! Cada centímetro de Citadel está impregnada com magia das mais antigas.

─ Para mim, tudo isso parece um enorme exagero ─ falou o terceiro viajante, balançando as pernas e observando o ladrilho que formava o pátio de um dos muitos vãos da imperiosa Citadel.

─ Citadel não foi criada para os pequenos, Jafari ─ zombou Klaus ─ ela foi criada para dragões!

            A carroça transitava por uma rua cujo trânsito destas era comum, portanto, organizado, bem diferente das outras cidades medievais onde os transeuntes precisavam dar licença para a passagem dos veículos. A maioria destes eram carruagens reforçadas e atípicas. Os viajantes notaram uma quantidade muito grande de mercadores e mascates, com seus veículos lotados de penduricalhos exóticos, também viram carruagens com dois ou mais andares, onde dezenas de pessoas pareciam ser transportadas de um lugar para o outro, puxadas por javalis gigantes e impressionantemente bem treinados.

Uma sombra gigantesca passou por cima da região fazendo com que os três viajantes olhassem imediatamente para o céu e vislumbrassem um magnífico aeroplano com suas hélices rodopiando assustadoramente próximo aos picos da incontável quantidade de torres.

            Klaus acenava para muitas pessoas que acabavam o reconhecendo de alguma forma. Um gnomo com óculos exageradamente grandes guiava um balão que descia a uma velocidade aparentemente incontrolável e gritava para a massa de pessoas se afastar. O barulho férreo de uma cabine transitando no ar guiada por um cabo extenso vez em quando faiscava a pouco mais de quatro metros do chão. Ogros esvaziavam uma carruagem cheia de caixotes e empilhavam dentro de um armazém que possuía três entradas e que existia do lado de uma excêntrica taverna que, de tão movimentada, os donos armavam barracas e colocavam mesas e cadeiras fora dela.

Existia uma torre do relógio a alguns muitos metros de onde a carruagem do trio transitava, nela, os viajantes podiam discernir (além de uma quantidade desnecessária de ponteiros) um grupo de gárgulas que vez ou outra alçava voo para uma direção distante. Elefantes eram responsáveis pelo transporte de caixas enormes cujo conteúdo ninguém tinha noção do que poderia ser. Passaram por uma praça cujo um ente de copa vasta era pago para oferecer sombra aos transeuntes e do outro lado da rua uma ostentosa orla sustentava um pesado portão de ferro que tinha uma grande massa de pessoas excêntricas aguardando o que quer que fosse ─ um letreiro enorme cravado como numa placa na extremidade superior da orla tinha escrito “Cinemagitek, uma invenção dos irmãos Dadario”.

─ Tenho que confessar, Klaus, Citadel é realmente impressionante! ─ confessou a voz feminina.

─ Ah, a senhora nada viu, lady Lisbeth. Nem chegamos na verdadeira Citadel ainda! Olhe para adiante, mas olhe com atenção ─ Klaus apontou para frente onde uma névoa densa parecia cobrir parcialmente tudo. A carroça adentrou a neblina e a cortina que cobria a parte mais deslumbrante de Citadel se desfez.

            Os viajantes, então, observaram a montanha se expandir com seus inúmeros palácios e torres espalhados e cravados na pedra, um rio trespassado por muitas pontes e a construção mais maravilhosa de todas, a torre de Draganathor, cuja altura se perdia mergulhada nas nuvens densas que escondiam os territórios mais ricos do reino.

Vista de Citadel. Ao fundo, a Torre de Draganathor

 

─ Puta que pariu! ─ Jafari blasfemou indignado, quase ficando de pé em cima da carroça.

─ Bem vindos à Torre de Draganathor, a mais antiga das construções deste mundo! Erguida pelos deuses e dragões para ser indestrutível! Nem o tempo seria capaz de destruí-la! Esta é Citadel, o reino da eternidade!

            Tudo existia em Citadel. Lady Lisbeth e seu guardião Jafari logo notariam. Havia templos para todas as divindades bondosas ─ e Klaus afirmou que para as malignas também, pois os clérigos de certas divindades tinham o poder da palavra e manipulavam a crença de seus seguidores de diversas formas, quando não, esses templos estavam nos subterrâneos e mantinham-se secretos.

             As mandíbulas poderosas dos ankhegs quebravam pedras com facilidade e a mando de seus domadores, destruíam os alicerces de construções antigas para que estas desabassem e novas estruturas fossem erguidas. A guilda dos demolidores era a responsável por essa tarefa que exigia certo cuidado e experiência para que os destroços do desabamento não fizessem vítimas.

Em Citadel, um peludo bugbear chamado Thompson cuidava tão bem de seus pelos corporais quanto das tapeçarias que ele próprio tecia. Algumas de suas obras se estendiam por mais de dez metros e ele tinha certo reconhecimento por seu trabalho, pois o tapete e as cortinas que adornavam o Palácio da Vingança ─ lugar onde o próprio príncipe Aisen morava ─ haviam sido feitos por ele.

Uma anã cuteleira chamada Durixaedi cuidava das carnes vindas de terras exóticas cujo tratamento precisava de muitas horas de trabalho após estas serem amassadas e expostas três dias ao sol ─ ela contava com um grupo de açougueiros para ajudá-la, todos anões ─ e para evitar que as larvas de mosca brotassem das especiarias raras, ela contratava bullywugs para devorar qualquer inseto que ousasse chegar perto delas.

Ziaxya é uma medusa terapeuta idealizadora da filosofia do nadismo, cuja principal motivação de seus seguidores é fazer nada (nem mesmo pensar) e ao praticarem isso, pelo menos um dia por semana, dependendo de quanto estavam dispostos à pagar, são transformados em pedra para, enfim, descansarem e depois serem curados da maldição por uma pomada criada a partir da baba de um filhote de basilisco. Muitos nobres acabavam se simpatizando com a ideia, mas Klaus sabia que a verdadeira intenção de Ziaxya era outra ─ assassinos do clã da Rosa Negra que praticavam a desordem e eram notados, vez ou outra, pagavam à medusa para serem transformados em pedra e escondidos sãos e salvos por alguns dias no estoque da terapeuta, posteriormente sendo curados quando a poeira baixava e, em Citadel, a poeira sempre baixava.

Necromantes da Ordem Pálida são contratados para cuidar dos inúmeros cemitérios que existem em Citadel. Uma vez que a cidade movimenta muita gente, as mortes prematuras são bastante frequentes ─ contando com as provocadas pelos incontáveis acidentes de trânsito, tanto terrestres, quanto aéreos, e também os assassinatos provocados pelas inúmeras guildas ─ formada quase que inteiramente pela religião de Veronicca, a deusa da morte, o trabalho desses necromantes está muito além de realizar cerimônias pós-morte e invocar esqueletos coveiros, pois os bons conhecedores ─ e Klaus é um ─ sabem que a ordem manipula obituários e até realizam trabalhos mais medonhos para os nobres de Citadel.

Caso você seja um pirata do céu e seu navio voador for danificado, Pelegrossa, um ettin cuja uma das cabeças é cega, é um dos melhores consertadores de veículos gigantes de Citadel ─ pelo menos nas partes baixas da metrópole ─ e ele é capaz até de rebocar seu aeroplano com a força dos próprios músculos diretamente para sua oficina, se você estiver disposto a pagar um extra. Curioso é saber que a cabeça cega do ettin é quem realmente conhece sobre a mecânica desses veículos, enquanto a outra é responsável apenas pela força bruta.

Algumas construções de Citadel costumam trocar de lugar quando movimentadas por um complicadíssimo e engenhoso sistema de engrenagens fabricado por gnomos que permite deslocar pontes, torres ou mesmo casas. Quem cuida disso é a Guilda dos Engenhoqueiros ─ que incrivelmente não é formada apenas por gnomos. Entre os serviços da guilda também está a criação de passagens secretas e acordos com pelo menos metade das guildas de ladrões e assassinos de Citadel.

A guilda da escolta é paga para levar preciosidades de um lugar para o outro em segurança e frequentemente trabalha em conjunto com os anões do banco de Corantha, que possui uma filial gigantesca em Citadel, com suas caixas fortes devidamente protegidas no subterrâneo das montanhas ao redor da metrópole.

O Astrolabium é uma construção erguida nas alturas e cercada por nuvens densas que pertence aos Observadores do Zodíaco, uma ordem de arcanos que estuda as constelações e prega que a posição destas no céu influencia misticamente o comportamento e a natureza de um indivíduo, caso sejam capazes de traçar como todos os astros estavam no momento do nascimento do ser.

A Ego Draconis, junto ao Palácio da Vingança, talvez seja o local mais conhecido e falado de Citadel. Nele, feiticeiros e outros conjuradores arcanos estudam sua linhagem e evoluem seus poderes enquanto treinam em um ambiente fortificado e amplamente construído para potencializar suas virtudes. A Ego Draconis, um tanto recentemente, aliou-se a um antigo inimigo, o rebelde kobold Dlobok, especialista em marcas arcanas, para a criação das arcanomarcas, símbolos tatuados na pele de indivíduos que são incapazes de despertar magia, mas que passam a fazê-lo quando essas marcas são desenhadas em si. Os bons conhecedores sabem que Dlobok é o portador de um poderoso grimório chamado Draconomicon que, um dia, foi encontrado na prisão de Dragomancchia, no subterrâneo da Espinha do Mundo.

            Finalmente temos o destino final do trio de viajantes: o Palácio da Vingança, lugar onde nenhum disfarce será capaz de obscurecer a presença da rainha de Azran, Lady Lisbeth e seus acompanhantes, Jafari, o guardião da coroa e Klaus, o conselheiro da coroa. Para chegar no palácio enquanto em cima da humilde carroça em que resolveram trilhar a jornada, os três levaram três dias só pra subir a Torre de Draganathor e se deparar com a imensidão exótica de serviços e afazeres, além de mais dois dias à pé, caminhando pelas pontes acima das nuvens.

Lady Lisbeth estava prestes a realizar algo que os governantes anteriores jamais ousaram fazer: encarar o príncipe da vingança em seu terreno e propor algo que estava além do raciocínio de muitos.

Os portões se abriram. O trio percebeu que estava sendo bem recebido, mas isso não ajudava a acalmar os ânimos. Aisen talvez seja o humano mais astuto do mundo, mas Lisbeth, com certeza, é a mais audaciosa.

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