Aconteceu em dez anos, no reino de Shantae - Refúgio élfico

 


Magníficas eram as monolíticas estátuas de pedra que representavam a dualidade do povo élfico. Ali, no horizonte rochoso de Shantae, estavam representadas, pelo exímio ofício dos arquitetos élficos, as silhuetas gigantescas e em mármore de Argalad e Argaladiel. Incrustadas no reino, vigilantes, poderosas, cercadas pelas longínquas guardiãs que eram as demais valiosas e intimidadores estátuas élficas que trouxeram ─ e, se não, foram fundamentais ─ a vitória no final da Quarta Era para os povos livres.

Os elfos demoraram anos para realizar seus retoques perfeccionistas na terra que outrora foi habitada pela desorganização humana, o que havia trazido um tom esverdeado e lúgubre às majestosas escadarias a aos alicerces daquele mundo élfico. Bem diferente das terras fantásticas de Ellidoränne, onde os elfos vivem de pés nus flutuando nos galhos da árvore da deusa, Shantae é militar, mas igualmente santificada pela presença do natural, assim, galhos, copas e arbustos se estreitavam e adornavam a arquitetura local tornando-a um bosque esparso e de fácil caminhada, onde os pássaros e outros pequenos animais silvestres aprenderam a conviver com a vida superior dos elfos.

Havia solitude no estrangeiro que caminhava em direção aos palácios élficos. Ele reconhecia a beleza de Shantae, mas resolvera deixar em segundo plano a ação de ficar estupefato com a perfeição do local, assim, quando ele passou pelos vastos jardins da segunda pedra, não se permitiu ser encantado pelo doce aroma das madressilvas que tornavam aquela região impossível de ser ignorada. Também não admirou as cachoeiras límpidas que eram capazes de refletir imagens como espelhos, nem as joias em tons róseos e azulados que cresciam nas rochas emitindo um brilho limpo que seria ampliado conforme a noite alcançasse o reino.

Os elfos, animais e a magia impregnada no lugar, curiosamente, não deram atenção ao estrangeiro, nem mesmo quando este, vestido em seu manto azulado como a noite e adornado com filetes de tinta prateada, alcançou os últimos patamares do olimpo onde, enfim, sua presença não pôde deixar de ser notada pelos guardiões de Shantae. Andaluz era sempre o primeiro e mais vigilante, quando ele fez soar os pequenos sinos enrolados com fita de cetim em seu pulso, os demais yeshuas apresentaram-se, recolhendo suas asas e abandonando suas formas silvestres para se mostrarem mortais e presenciais na alta cúpula que era um círculo perfeito cercado de seis pontes igualmente brancas, como o restante da arquitetura do local.

            A iluminação tornou-se intensa, mas como o estrangeiro permaneceu alheio à ofuscação, pôde ver os magníficos escolhidos de Gaiëha lançarem sobre ele o agudo olhar de sabedoria que somente as entidades divinas conseguem transparecer.

─ As artes luminares há muito foram esquecidas, por isso, nenhum de nós presentes neste tabelião iremos desmerecer a sua audaciosa aparição, estrangeiro. Apenas nos diga quem é e trataremos do assunto de seu desejo ─ discursou Andaluz e os outros yeshuas concordaram.

─ Os senhores sabem muito bem quem eu sou ─ o estrangeiro desfez-se do capuz azulado e sua capa brilhou em pequenos pontos cintilantes, como um breu cercado de estrelas.

─ Você é Aensell, das estrelas ─ afirmou Carmine, a Yeshua do fogo ─ Conheço sua história o suficiente ─ era uma elfa de cabelos ruivos e desordenados que, tocados pela luz do lugar, pareciam uma chama incontrolável ─ meu caros irmãos, proponho uma votação para que este garoto seja, enfim, trancafiado na Prisão de Andaluz para sempre ou até que nenhuma luz resista no mundo!

            Aensell conhecia a impulsividade da Yeshua do fogo e, por isso, não se impressionou.

─ Como arcanjos da paz e guerra, nós, Argalad e Argaladiel, reconhecemos a existência ímpar do filho das estrelas ─ respondeu os irmãos elfos da última casa ─ e, por isso, devemos dar o valor à sua história antes que qualquer decisão seja feita.

─ Acho que boa parte de nós reconhecemos isso ─ acrescentou Andaluz, que tinha o costume de discordar de Carmine, pois ambos tinham opinião opostas quase sempre.

─ Estou lisonjeado com a empatia de vossas senhorias ─ respondeu Aensell ─ mas eu não tinha a intenção de vir aqui e ser julgado por vocês.

─ Entenderam, irmãos? Ou vão ficar espantados por ainda não saberem que o filho das estrelas é um legítimo negligente? Alguém que, inclusive, deveria ostentar o primeiro nome da lista de nossos criminosos.

─ Alguma coisa no olhar deste garoto faz as folhas do outono caírem vítimas de um vindouro vendaval, Carmine ─ respondeu Éolos, Yeshua dos ventos, sempre enigmático.

─ Minha espada o guardará de meus irmãos, filho das estrelas, se me convencer que não devo usá-la contra você ─ acrescentou Galavant, o Yeshua da terra, exuberante.

─ Eu sei que a visão de vossas senhorias é tão aprimorada que, entre os viventes deste mundo, são os únicos que conseguem enxergar tão distante no céu que a escuridão cercada pelos astros não é um fator de obscurantismo para seus deslumbres, por tanto, embora descrevam as estrelas como algo natural e tocado por Gaiëha, devem ter observado o que acontece lá em cima, onde os planos não se colidem.

─ Sim, nós somos capazes de enxergar as feras estelares e seus sopros devastadores, tão distantes que mesmo em toda sua capacidade de destruição, jamais respingariam neste mundo de forma tão devastadora quanto em outros.

─ Engana-se, Andaluz. A luta entre os anjos e os obscuros não será eterna, especialmente se algo muito poderoso decidir tomar um lado ─ respondeu Aensell com firmeza.

            Os yeshuas se entreolharam.

─ Nós nos juntaríamos mais uma vez, como fizemos antes, e eliminaríamos a ameaça ─ respondeu Carmine rispidamente.

─ Vossas senhorias jamais forjariam uma aliança novamente se esta os obrigasse a abandonar seu povo diante a selvageria que os espera ─ informou Aensell.

─ Neste momento, filho das estrelas, não há nada neste mundo e nos próximos que possa desafiar nossa vontade ─ responderam Argalad e Argaladiel em conjunto ─ nem a vingança do príncipe, muito menos a maldade do lich.

─ Os senhores dizem isso supondo que os dois ajam separados.

─ E em que mundo sobrevive a possibilidade de que estes reis se aliem algum dia, se a vitória de um requer a derrota do outro? ­─ interpôs-se Andaluz.

─ Num mundo onde as páginas de um livro possam ser arrancadas e substituídas por outras. Quando, num tabuleiro, o bispo ganha o movimento da rainha e derrubar o rei já não é mais a regra que impõe a vitória ao jogador.

─ Você tem artimanhas na fala que se assemelham às minhas, filho das estrelas ─ comentou Éolos.

─ ...e que, por isso, não nos leva a completo entendimento de nada! ─ reclamou Carmine, já impaciente.

─ Seria mais corajoso de sua parte se fosse capaz de nos mostrar o que pretende com esta conversa ─ resumiu Galavant.

─ Quero lhes recomendar a se recolherem novamente nas suas terras encantadas enquanto a febre deste mundo passa...

            Os cabelos de fogo de Carmine chicotearam o ar agressivamente e mesmo os irmãos Argalad e Argaladiel puseram as mãos nos cabos de suas espadas ao ouvir tamanho absurdo.

─ Isto é besteira! ─ difamou Carmine ─ Irmãos, devemos prendê-lo sob as raízes da árvore de nossa mãe, para que elas atravessem sua existência e jamais possa se reconstituir!

─ Sua sina está selada, Carmine, mas você não arrastará seus irmãos nela! ─ ameaçou Aensell de forma que todos os yeshuas ficaram impressionados ─ vocês verão o que meus olhos podem enxergar, caros filhos de Gaiëha, e se comprometerão a me obedecer se querem o bem daqueles que protegem! ─ a voz do filho das estrelas ecoou como a escuridão da noite devorando o dia.

            Ali, na alta cúpula do reino de Shantae, os yeshuas dividiram uma visão ímpar, um acontecimento que se estendeu por mero meio minuto, mas que foi capaz de deixar todos atônitos. Andaluz, então, falou por todos os presentes, exceto Carmine, que iria se opor até o fim:

─ Que se concretize em breve nossa partida e que muitos dos nossos filhos sofram, mas que em suas profundas sabedorias, um dia, possam nos perdoar, pois agora sabemos de tudo!

            Como Aensell havia prometido à Lisbeth ─ que, então, havia prometido à Aisen ─ os elfos, ou pelo menos a maioria, não se oporiam à aliança dos povos humanos na jornada que estava por vir e o destino do mundo, como mais tarde os escrivães entenderiam, estaria nas mãos de heróis...

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