Há muito o velho Grizax se refugiara no Charco do Mau Presságio. Subestimado pela Ordem Arcana de Mordae, da qual pouco tempo fizera parte, o feiticeiro desenvolveu seus poderes aberrantes de forma tardia e resolvera potencializar o sangue mágico que corria em suas veias através das artes arcanas. A magia quimérica, derivada da escola de transmutação, o impressionava. A capacidade de criar vidas misteriosas e moldá-las à sua vontade o fazia pensar ser um ser divino, mas quando suas artes místicas foram questionadas por outros acadêmicos, o pouco paciente Grizax abandonou o elo que havia forjado com outros arcanos e seguiu para uma vida solitária e cheia de desconfianças.
Grizax encontrou um lugar para seu abrigo e laboratório de experiências aberrantes numa remota fronteira entre os reinos de Azran e Chattur’gah. Demonstrando grande poderio, ele conquistou a confiança de uma tribo de xulgath que passou a venerá-lo como um emissário do deus da destruição. Sem questionar, o povo lagarto caçava e matava como lhes era ordenado e graças a esses aliados malcheirosos, Grizax pôde dar continuidade aos seus experimentos.
Eu lhes prometo dominância e força física! – o feiticeiro aberrante prometeu aos xulgaths e assim o fez. Como recompensa pela lealdade, Grazix enxertou o sangue manipulado por magia em seus soldados tornando-os exemplares da própria raça – vocês me ajudarão a criar a fera mais poderosa e inteligente que já pisou nessas terras e, em troca, ela os tornará imbatíveis!
Grizax sabia que precisava de tempo e isolamento, assim, fez com que seus guerreiros xulgath minerassem uma longínqua caverna para trazer-lhe matéria-prima o suficiente para erguer seu próprio esconderijo no charco. O resultado foi uma masmorra frágil, porém funcional. Lá, o feiticeiro começou seus experimentos e trouxe à vida uma mistura entre feras caninas e ouriços, nada mais do que meros experimentos que serviriam de requisito para a criação de algo bem maior.
Grizax sequer nomeou seus cães-ouriços, mas eles foram batizados pelos caçadores e pastores da floresta nos arredores do charco como chupacabras, pois atacavam suas crias e sugavam-lhes o sangue até o tutano. Com pouca paciência para adestrar seus próprios chupacabras, Grizax, enfim, os abandonou à própria sorte obrigando-os a sobreviver da maneira que fosse.
Ao feiticeiro o que importava mesmo era a maior de suas criações e depois de muita pesquisa e deduções ele descobrira a aberração mística cujo sangue carregava propriedades mágicas superiores aos de muitas outras bestas. A resposta para seus experimentos estava nos basiliscos. Grizax então ordenou que Schulsz, seu mais devoto e poderoso seguidor capturasse algumas dessas criaturas.
Schulsz era um xamã xulgath, o mais sábio do charco. Ele sabia que Grizax não era o emissário de seu deus, mas reconhecia a vantagem de forjar uma aliança com um poderoso feiticeiro. Assim, o xamã xulgath recrutou os melhores caçadores de sua raça e iniciou uma jornada pela selva de Chattur’gah que se estenderia por muitos meses para, enfim, trazer ao feiticeiro quatro exemplares de basiliscos presos em gaiolas de madeira reforçadas com estruturas de ferro.
– Agora, apenas o tempo é um empecilho para meu triunfo e ele se encerrará em alguns meses! – profetizou Grizax, mas ele estava errado, pois seu plano foi descoberto por um grupo de aventureiros que para sua desgraça resolveu intervi-lo. Os heróis tentaram detê-lo, mas a única coisa que conseguiram foi atrasá-lo. Dali em diante, aquela intromissão não foi a única. Em alguns meses, mercenários com a promessa de encontrar o vasto tesouro do feiticeiro, invadiram as ruínas do Charco do Mau Presságio para se tornarem estátuas de pedra afetadas pelo olhar dos basiliscos de estimação.
Irado pelas constantes intromissões que apenas atrasavam seus estudos, Grizax decidira gastar parte de suas economias para formular uma poderosa armadilha movida por intenções mágicas que faria com que seu cemitério de invasores de pedra atacassem os próximos infiltradores.
Ocupou-se em construir sua armadilha mortal e preocupou-se tanto com os inimigos que viriam de fora que baixou sua guarda para a criatura mais traiçoeira que ele se depararia até o final de sua vida.
Zialzabath aprendera com seu mestre e criador que jamais deveria subestimar os invasores daquelas ruínas. Essa criatura, uma versão melhorada e absoluta de basilisco, desenvolveu-se magicamente, adquirindo poderosos mecanismos de defesa, assim como tornando sua principal e mais letal habilidade numa versão quase infalível de olhar petrificante. Zialzabath viveu junto à outros de sua espécie, mas logo notara que tinha uma capacidade mental superior aos demais basiliscos. Simplesmente chamá-lo de basilisco era uma afronta. Ser considerado um bicho de estimação de Grizax, um humanoide tão velho e frágil, era inaceitável...
Assim, um dia, a criação transformou seu criador numa estátua de pedra e o devorou! Logo depois, rastejou pelo charco e junto aos demais basiliscos dominou a tribo de xulgath. Foi daí que Schulsz, o xamã, se convenceu de que aquela criatura exemplar só podia ser o avatar de Kaz, o senhor da destruição, conhecido por tomar a forma de aberrações monstruosas para submeter seus inimigos à crueldade.
Cego de devoção, Schulsz ajoelhou-se perante Zialzabath e todos da tribo fizeram o mesmo. Zialzabath, denominado o imperador basilisco, regozijou-se de sua posição e aceitou seu culto.
***
– Mais um grupo de aventureiros em busca de meu sangue? – Queixou-se Zialzabath, arrotando seus gases pútridos pela boca e pelos furúnculos que cresciam em sua pele enrugada.
– Este não parece ser um grupo qualquer meu senhor – explicou Schulsz – eles parecem determinados e se arriscam por algo mais do que seu sangue ou o tesouro do falecido feiticeiro... na verdade, acho que eles sequer sabem sobre as propriedades de seu precioso sangue.
– Porque entraram nesta impossível jornada, então? – o basilisco imperial ergueu o cenho, um tom de curiosidade e interesse atípico para ele como aberração.
– Quero dizer que de fato um ou outro esteja sendo movido pela ganância, mas parte deste grupo sugere que meu senhor seja uma criatura maligna e, por isso, merecedora da morte – explicou Schulsz.
– Estúpidos! – grunhiu Zialzabath – o que faz meros mortais subestimarem minha existência? Não conhecem minha história!? Não sabem que aqui sou rei?
– Temo, meu senhor, que isso pouco os importa – Schulsz mantinha sua cabeça baixa, pois sabia que em momentos de ira, Zialzabath não conseguia controlar o impulso de transformar tudo que é carne em pedra, apesar disso arriscou-se ao dizer – o senhor lembra o que o antigo feiticeiro dizia sobre esse tipo de gente?
O basilisco imperial não precisou pensar muito – que os destemidos por um código de conduta cego são os adversários mais difíceis de lidar, pois é a ignorância que os movimenta, não o senso de sobrevivência.
Schulsz assentiu positivamente e disse:
– Seria melhor que meu senhor evitasse tal infortúnio. Deixe que o medo os confronte primeiro.
– Agora, mais do que tudo, eu os quero em meu cemitério de pedra! – resmungou Zialzabath.
– Pois, permita-me testar a bravura dos mesmos. Se prefere corações cheios de coragem, eu os trarei amaciados para o senhor – insistiu Schulsz.
– Não entendo suas intenções, servo, mas está livre para brincar com minhas presas enquanto descanso de minha última refeição – sem paciência, Zialzabath arrota ruidosamente e rasteja para as profundezas de seu lar encharcado, aguardando, sem prevenção, a vinda dos novos invasores.
***
Zialzabath gania de dor enquanto exalava o cheiro pútrido que exalava como um gás das pústulas que enxameavam sua pele escamosa. Uma condição que ele havia aprendido a se acostumar, pois a fricção de suas escamas afiadas contra a pele era dolorosa, especialmente nas juntas e tendões, onde bulbosas e sacos de gordura se dependuravam, muitas vezes eclodindo e secretando excreções ácidas. Aquela dor também era uma de suas armas, pois seu sangue, leitoso e verde, era capaz de corroer até o metal mágico, tornando-o senhor da pedra, da carne e do aço. Nada poderia impedi-lo e ele tinha provas: dezenas de estátuas de condenados formavam os alicerces da estrutura frágil que era seu covil, a antiga construção de seu criador.
Ele tinha suas vítimas favoritas, tanto que devorava algumas e a outras guardava como um tipo de troféu. Aquela sala era seu trono e também seu mostruário de perversidade. Vez em quando ele se deleitava apreciando o rosto de agonia e dor das vítimas que viravam estátuas de pedra quando sujeitas ao seu olhar. A maioria das órbitas oculares demonstrava o quanto a esperança era volátil e o quanto a vitória dele próprio era inefável, por isso, tal foi a surpresa quando os portões de sua amostra de arte pétrea se escancararam dando passagem à um suplicante Schulsz, desesperado por socorro:
– Meu senhor! Eu não consegui impedi-los! Todos seus súditos caíram pela espada e pela magia! Eles estão vindo!
Ao ver seu principal devoto naquela situação deplorável, Zialzabath decidira que já era tempo de livrar-se daquela sabedoria covarde e o transformou em pedra.
O basilisco imperial olhou para a escuridão que reservava a frente de seu esconderijo. Ele podia sentir os invasores atrás daquelas paredes, se protegendo de sua arma mais letal, o olhar petrificante. Ódio e perversão invadiram sua vontade. Ele estava decidido a tê-los naquela sala como colunas de sustentação.
– Meus caros viajantes, a que devo a honra de suas visitas? – argumentou salivando malícia.
Um véu de escuridão deu contorno ao corpo feminino e cálido da primeira visitante. Seus traços delineavam o atrativo de sua pele e carne, chamarizes de desejo, não fosse Zialzabath incapaz de sentir desejo, cairia ali em sua primeira armadilha. Apesar de tudo, sabia que para os padrões dos mortais, aquela mulher era uma beldade.
– Quem é você, bela mulher? Diga-me o seu nome – indagou.
– Belle d’Jour. Eu estive aqui antes, basilisco – ela estava de costas. O desenho de sua cintura se afunilava em delicadeza até finalmente dar contorno às fartas nádegas. Sua pele era pálida como a de um vampiro e sua presença destacava-se em um tom sobrenatural ainda inexplicado para Zialzabath.
– Perdão. Acho que me recordaria de sua existência. Não tema, eu não ousaria atacá-la sem maiores informações. Precisamos conversar...
– Ela não conversará com você, criatura – uma voz, dessa vez masculina e carregada de um sotaque limpo, ecoou atrás de um esconderijo.
– Ah! Vejo que não veio sozinha. Quem é o corajoso guerreiro?
– Não direi o meu nome para algo que não merece estar vivo! – respondeu a destemida voz.
– É um guerreiro corajoso, não é? Então, me diga, porque se esconde atrás de paredes? – um riso malicioso estreitou-se nos lábios enverrugados de Zialzabath – Olhe para seu destino. Eu o desafio!
Belle d’Jour balbuciava as primeiras palavras de sua tempestade arcana. Ela sabia como aquilo iria terminar. O orgulhoso guerreiro não se deixaria ser ofendido. Ela o conhecia a pouco tempo, mas conhecia o tipo. Aquele era Ryuujin, um honrado samurai do recente e exterminado reino de Asura, instigado a fazer prevalecer o valor que sua cultura plantara em seu coração.
Ryuujin segurou firme sua katana, fez uma prece rápida e silenciosa à Rayquaza, o deus-dragão, então, mostrou a fronte ao seu desafiante. Olhou-o diretamente na face.
Zialzabath fixou seu olhar petrificante contra o inimigo e viu a alma de um campeão sobrepujar sua arma mais mortal. O basilisco sabia que nenhum mortal resistiria àquilo por muito tempo, ele só precisava arrancar os últimos vestígios de sua coragem. Suas patas atrofiadas deslizaram sobre o muco escorregadio secretado de sua pele e o gigantesco basilisco deixou-se deslizar para cima dos inimigos.
Ryuujin interpôs-se diante do caminho e sentiu o corpanzil gorduroso da criatura esbarrar como o peso de dez rochas em cima de si. Os olhos de Belle faiscaram e deram um novo brilho à luz flamejante que precipitava-se de alguma câmara posterior. Vórtices de eletricidade pulsaram de sua unhas esmaltadas enquanto seu corpo levitava centímetros do chão para, então, exalar o hálito da mais trovejante magia arcana: um relâmpago retaliou a pele escamosa de Zialzabath dolorosamente fazendo suas pústulas agirem como pequenos vulcões em erupção.
O sangue ácido e pulsante saltou das veias do monstro e aspergiu sobre Ryuujin que, num ato de reflexo, interpôs seu escudo mágico, espólio de um confronto tão ameaçador quanto esse estava sendo. Os oito olhos vermelhos de uma aranha de aço brilharam na face do escudo e o samurai se viu envolto de um campo de magia protetor.
– Agora, D’Angelo! – o samurai ordenou e um clérigo se prontificou para dar início à estratégia combinada.
D’Angelo, pele vermelha, cascos, chifres e cauda de demônio, porém, devoto de Selloth, um dos deuses mais puros deste mundo, ergueu seu cajado com uma órbita de fogo e invocou a magia que guardava a intenção de acabar com a luta ali mesmo. O sol, símbolo do deus do tiefling, incidiu sobre os olhos de Zialzabath, mas o basilisco imperial desviou da centelha ofuscante à tempo.
Enraivecido pela surpresa, o basilisco sentiu que o clérigo deveria ser a sua primeira vítima e desviou seu olhar mortal contra D’Angelo, apenas para ver seus efeitos fracassarem diante de uma órbita translúcida de magia que cercava o sacerdote. Um campo onde a magia do basilisco não ousava ultrapassar. Aquele grupo estava mais preparado que todos os outros.
– Não consegui cegá-lo! – vociferou D’Angelo, então, um virote vindo da escuridão além do portador do sol, cravou-se no pescoço do basilisco e a voz desperta de um mandrião comemorou:
– Mas eu consegui acertar mesmo na veia! – era a voz de Eitri, um duergar, ou anão cinzento como seus primos anânicos gostam de nomear. Vindo das profundezas de um reino subterrâneo, Eitri, filho de anões e dos gênios da terra, engatilhava mais uma vez sua besta e coçava sua cabeça careca, parecida com uma pedra muito bem polida – Serviu até de distração!
Havia veneno no virote e Zialzabath pôde sentir isso. Ele não poderia se manter tão diante do grupo daquela forma, deveria abater um a um. Deveria usar aquilo que tinha pouca paciência para arquitetar: estratégia. Aquele grupo seria um desafio, mas o basilisco sabia que triunfaria com o tempo e estava se convencendo disso quando foi surpreendido pelo toque da aura de uma magia de ruína. O último membro da equipe invasora se desmanchava como sombra na escuridão aos pés do inimigo carregando um pergaminho e miando palavras inventadas para invocar a magia contida neste.
– Eu deveria ter adivinhado isso desde o início. Não podia se tratar de um basilisco comum, mas sim uma espécime nunca antes vista. Minhas desconfianças estavam certas e, pelos meus cálculos, este será um desafio bem difícil!
O ofensor calculista se chama Doutor Kalico, um felino de pele tão escura quando o breu da noite, enjaquetado com a mais legítima sutileza de um investigador oculto. Falar sozinho fazia parte de seu estilo de combate e, vez em quando, ele acabava soltando muito mais do que apenas deduções:
– Pernas atrofiadas significa lentidão. Arrastar-se para a luta tão abruptamente significa pouca esperteza. A pupila da criatura se dilata vagarosamente, numa proporção de três a quatro segundos, isso significa que seu olhar petrificante é limitado a operar duas vezes a cada vinte e um segundos. Se soubermos coordenar nossos ataques, será uma vitória inesquecível... – falava enquanto engatilhava sua besta de mão – Belle, suas magias que explodem vão ser bem úteis aqui...
Mas isso não era necessário argumentar, pois, em nenhum momento a feiticeira súcubo parara de canalizar seu poder crescente e mais uma vez fez chicotear sua tempestade elétrica no corpanzil gotejante da criatura. Por poucos centímetros o arco voltaico não pega em Ryuujin, era um poder difícil de controlar. O samurai pôde ver o poder arcano desenhado nos componentes somáticos da feiticeira, ali, ele entendeu que Belle seria uma inimiga difícil de lidar e ficou aliviado porque aqueles raios castigavam a pele de um inimigo ao invés da sua.
Zialzabath resolvera enterrar-se no covil dele mais uma vez. Ryuujin aproveitou-se da fuga para retaliá-lo mais uma vez. Sabia que sua katana sofreria danos, mas confiava em sua dureza forjada pelo hálito de um deus dragão e usou o escudo para afastar o jorro ácido que o inundaria em seguida. Enfim, observou as carnes do balisco ondularem enquanto este coaxava injúrias, em meros segundos, Zialzabath pareceria outro.
Uma das estátuas do covil se ergueu e flutuou perigosamente em direção ao samurai. Surpreendido pela habilidade telecinética do inimigo, Ryuujin foi atingido no ombro e sentiu o peso do escudo dobrar. Mal teve tempo de se recompor e os olhos amarelados do basilisco voltavam a expandir um brilho nauseante familiar. Ryuujin torceu para que sua alma permanecesse intacta e com alívio notou que seu corpo permanecia móvel.
Zialzabath riu zombeteiramente. Não era o samurai o escolhido como vítima de seu olhar petrificante.
D’Angelo viu o corpo de Belle endurecer como pedra, incapaz de projetar seu campo antimagia para adiante da poderosa feiticeira. Era hora de agir, antes que todos terminassem daquele jeito. Seus olhos, então, brilharam, a ardência confundiria a maioria: seriam as chamas do sol ou o fogo do inferno? Aquilo nem mesmo o tiefling sabia, mas poderia encaixar-se em qualquer uma das versões, tratando-se do histórico duvidoso de D’Angelo, porém, aquilo não importava agora.
– O que ‘cê vai fazer, hein, clérigo? – alertou Eitri, não gostando nada da atitude heroica do clérigo. Eitri só havia sobrevivido naquele mundo por se negar a realizar atos de heroísmo cego como aquele que D’Angelo estava prestes a fazer. Fugira das garras e da mente dos illithid, o povo alienígena que escravizara sua raça e demorou tanto para manter uma distância segura destes que ainda não tinha se acostumado a entender as motivações que alguns personagens têm diante do perigo.
D’Angelo invocava uma única fagulha do sol com poder suficiente para incendiar mortalmente qualquer inimigo. Saiu da proteção de seu campo antimagia e ameaçou o basilisco. Seu ato de coragem fez com que Zialzabath parasse de mordiscar o ombro já ferido de Ryuujin, o único em combate corpo a corpo. O samurai sangrava e seus últimos vestígios de vitalidade se esvaíam.
Por um mero segundo, o basilisco se viu envolto pelas chamas divinas, porém, seu olhar petrificante foi capaz de romper o destino do clérigo e D’Angelo assistiu frustrado seu corpo se transformar numa estátua sem efetivar seu melhor ataque.
– É o fim para vocês, guerreiro medíocre! – ameaçou Zialzabath.
Ryuujin largou seu escudo no chão e firmou a katana com ambas as mãos. Seu corpo, dolorido de mordidas nauseantes, sangrava aos borbotões, seu cabelo, desatado, fluía como os ventos que sopravam na Coroa de Rochas, a enseada que cercava seu reino. Nada falou, apenas executou sua missão e investiu, enterrando a katana profundamente na carne do basilisco até ouvir o ganir esganiçado da criatura e, então, ser golpeado pela cauda do monstro e jogado contra a parede do covil, desacordado.
– Meus cálculos não estão tão favoráveis agora, Eitri – Kalico agarrou-se à estátua de D’Angelo, a mais próxima de si, e começou a arrastá-la para uma possível rota fuga – sinto que precisamos ser mais do que apenas eficientes, apesar de também ter notado que o fluxo do sangue ácido que brota do basilisco ter diminuído, isso, provavelmente indica que ele está perto de sucumbir. Está bem perto daquele momento de latência em que o corpo começa a se entregar à inércia...
– Tá ótimo, doutô! Agora, eu preciso de silêncio – Eitri precisava agir, mas, porque? Ele poderia fugir como fizera outras vezes, mas, de alguma forma, isso parecia errado, na verdade, parecia uma escolha impossível para ele naquele momento. O anão cinzento começou a tentar conceituar o sentido da amizade e achou esse pensamento escroto demais – Merda! Eu sempre me meto nessas, gato filho da puta! – então, saiu de seu esconderijo e metralhou sua besta na criatura. Assistiu um dos virotes perfurar a língua do escamoso, em seguida, virou mais uma estátua de pedra.
Kalico tropeçou e caiu no chão enquanto se arrastava com olhos arregalados. Sobrara apenas ele.
O felino mergulhou para dentro do campo antimagia ainda ativo de D’Angelo. Aquilo o protegeria temporariamente. Precisava pensar em algo – Minhas chances são poucas. Eu devia ter treinado lutar às cegas – rasgou um pedaço de sua roupa e vendou os olhos – eu tenho os corredores estreitos ao meu favor e ainda tenho alguns virotes. Meus dedos estão tremendo, significa que estou com medo. Isso é bom, em última instância eu poderia me entregar à loucura. É sempre melhor fracassar num ato beligerante...
Escutou o barulho da frágil estrutura da ruína desabar. Com certeza o basilisco poderia desmoronar todo aquele local, Doutor Kalico pensou. O felino recuou para os corredores e escutou Zialzabath persegui-lo de longe, pôde ouvir o barulho deste desabar sobre a água e deduziu em que câmara ele deveria estar, já que havia explorado a masmorra junto ao grupo antes.
Zialzabath apenas esperava pacientemente surpreender seu adversário com um último e decisivo olhar petrificante. Manteve seus olhos fora da água e ao perceber a sombra do felino espreitar no final de um corredor, ergueu-se e seus olhos amarelos cintilaram. Não deu certo. O felino continuava intacto.
Kalico disparou uma vez e escutou o virote golpear a água que empoçava os corredores da masmorra – Errei!
– Você está contando com a própria sorte, invasor. Vendou seu olhos à troca de quê? – regurgitou Zialzabath tirando das profundezas da ruína inundada o corpo de um dos cães-ouriços que seu criador havia formulado, então, achou ironia acabar com aquela luta daquele jeito – acha que eu não posso atingi-lo daqui?
Kalico sabia que ele poderia, mas concentrou-se num segundo disparo que infelizmente tilintou numa corrente qualquer espalhada na masmorra.
O corpo do cão-ouriço flutuou e com velocidade agressiva trombou contra Kalico. O felino foi atingido tão desprevenidamente que seu corpo foi arremessado contra as paredes da ruína e ele desacordou.
Estava feito. Todos estavam detidos. Zialzabath vencera mais uma vez.
Ergueu-se dos charcos de sua ruína e arrastou-se pretensiosamente de volta para o seu covil. Seu corpo borbulhando de dor e seu ego fatalmente atingido. Escolheria apenas um para compor seu cemitério de pedra, os outros ele devoraria lentamente, degustando cada segundo, escutando o som da pedra se partindo entre suas poderosas mandíbulas. Deliciou-se tanto com a cena inventada que apenas depois de um minuto notou que uma luz ainda teimava em ficar acesa quando todas as demais já haviam apagado.
Ele pôde sentir o calor se projetando da sala que era seu covil e lá viu D’Angelo, sustentando-se com o resto de suas energias. O clérigo ainda segurava seu cajado e fervilhava sua última magia.
– Você está de pé? – vociferou Zialzabath, já iniciando uma abrupta investida e saltando sobre o inimigo para um último abalo.
Uma língua de fogo tão vermelha quanto sangue foi emitida pelo cajado, como uma garra infernal que rasga até a carne mais resistente. O corpo do basilisco caiu e borbulhou enquanto suas pústulas estouravam e o cheiro de podridão exalava pelo ar. Ele gritou em desespero enquanto o sangue ácido brotava entre seus olhos e os derretia definitivamente.
Com Zialzabath morto, D’Angelo cai ao chão e um brio de magia clerical vindo de si desperta Ryuujin, as últimas energias de um servo do sol esgotado. O samurai se ergue igualmente exausto e assiste ao balisco virar uma massa amorfa de verrugas e escamas. Só depois de um minuto ele pergunta:
– Como? Eu o vi transformar-se em pedra...
Temendo uma resposta indesejada, pois Ryuujin sabe que o amigo possui sangue profano circulando nas veias, o samurai segura firme a katana quando, enfim, D’Angelo responde:
– Doutor Kalico... ele... ele arrastou-me para dentro do campo antimagia... a proteção de meu deus não falhou!
Ryuujin repousou a katana no chão, depois, averiguou que todos do grupo estavam salvos.
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