Aconteceu em dez anos, no reino de Azran - Parte 02 - Estrelas do nosso tempo

 

Lady Lisbeth, rainha de Azran

            Lady Lisbeth empunha Vittoria com ambas as mãos e a lâmina brilha num tom dourado e celestial respondendo ao chamado de extermínio. Jafari tem seu sabre envolto de silêncio enquanto produz a onda sonora aguda que se propagará da agulha até o inimigo, além de uma lança curta, posicionada riste ao antebraço, também emoldurada pela magia do guerreiro arcano. A dupla contracena. Ao compartilharem breves olhares a ordem é assertiva e os dois investem em ziguezague contra o alvo principal, pois matando este, tudo se acabaria.

Jafari arremessa a lança curta em direção às nuvens após calcular o agudo ângulo que a arma fará antes de cair sobre o inimigo como um relâmpago, em seguida, investe seguido pela rainha. Vittoria emite um raio de luz ofuscante em direção à Orlock que reage como um vampiro reagiria diante intensas luminosidades. Menos de cinco segundos e as espadas dos atacantes cravariam em Orlock pelos flancos, então, Jafari assobia e das cinzas espalhadas no horizonte, volta a trotar, vestido com uma magnífica armadura, Enaquin, o cavalo de guerra do guerreiro arcano, com as pesadas patas estrondando como trovão no solo úmido.

Orlock ergue um cajado de sombras e da escuridão do artefato brota um olho vermelho cintilante que parece sangrar no ar a cada gesto do bruxo. Raízes negras brotam do chão que sangra a lama e o sumo subterrâneo empoçando o caminho dos adversários... mas a magia não seria concluída a tempo, pois a lança curta caiu do céu e obrigou o vampiro a se posicionar corretamente para não ser alvo da magia trovejante de Jafari. Enaquin salta violentamente buscando atropelar o inimigo, mas apenas atravessa o manto etéreo e escuro de Orlock, abrindo uma brecha valiosa para a investida de seu cavaleiro. Jafari joga-se no chão numa acrobacia evasiva buscando atingir o inimigo de baixo pra cima, mas é bloqueado pela sombra vítrea do cajado, por fim, Lady Lisbeth atinge o vampiro em cheio num ataque estudado e conjunto com o guardião. Um lampejo tão ofuscante quanto o primeiro raio de sol que rompe a noite devora a presença vampírica fazendo-a dissipar no exato momento, sem tempo para qualquer ganido de dor.

            O céu desaba numa chuva que não se obrigou a ser antecipada pelas primeiras gotas tímidas. A água lava as dezenas de corpos espalhados pela arena e submete o ar carregado pelas cinzas dos inocentes ao chão. Relâmpagos repentinos tentam iluminar a cena gloriosa, mas o que se destaca é a sombra zombeteira mais ao longe. Um aviso de que a guerra apenas acabara de começar...

─ As armas espalhafatosas de seus heróis são um anúncio para a estratégia inimiga, rainha Lisbeth – Orlock ri.

            Aquilo que havia sido rompido e tragado pela luz não era o vampiro, talvez uma mera ilusão ou a própria escuridão conjurada no formato desejado por Orlock.

─ Você acha que eu não reconheci a espada da lenda empunhada por suas mãos? Achou que eu me submeteria ao poder dela na primeira investida? Eu cheguei até aqui, Lady Lisbeth, por não ser tão incauto quanto a maioria de meus irmãos prepotentes! Eu fui convocado até as bordas da muralha por ser muito mais do que meramente prestativo ao meu lorde... ele sabe de minha genialidade. Eu esperava que você trouxesse a espada até aqui! – Orlock ri desdenhosamente.

            O volume da água se intensificou abruptamente enquanto formas femininas se desenterravam da lama mostrando suas faces mórbidas. Jafari reconheceu alguns amuletos e medalhões enferrujados que as criaturas da lama portavam e, assustado, sussurrou: “antigas sacerdotisas de Amaryllis!”

─ Esta será sua última luta, rainha dos derrotados! – o vampiro gargalha disseminando o terror.

            Amaryllis, na era anterior à esta do evento, foi a deusa da vida, da cura e da fertilidade. Suas sacerdotisas eram as maiores canalizadoras de energia positiva do mundo, a harmonia que elas tinham com o poder da vida era inato e isso as tornou o prato principal de muitos barões da Mortalha. A religião que antes imperava na maioria dos reinos, agora era extinta, transformada numa versão macabra de cultistas que lidavam com a vida e a morte por igual (o conhecido e estreante culto de Velaska), mas aquelas criaturas que agora brotavam da lama não pertenciam à deusa dos condenados, elas eram vestígios do assassinatos em massa que ocorreram outrora, batizadas com o título de “mães da aflição”, diante de Lisbeth e Jafari estavam as criaturas que converteram sua ligação com a energia positiva pela familiaridade com a energia profana.

As mães da aflição

Os olhos das mães da aflição sempre disseminavam maldade e agonia. Elas arrancavam punhados do próprio cabelo enquanto gritavam de dor e loucura, então se movimentavam num ritmo quebrado, porém veloz. Lady Lisbeth e Jafari estavam cercados. Uma delas ergueu o braço e Lisbeth sentiu uma forte pressão no corpo, logo o sangue quente encontrava um caminho pela sua garganta e, como se possuída por um demônio, seu corpo foi erguido, girou duas vezes lentamente no ar e em seguida desabou, uma, duas, três vezes no chão. Jafari tentou ajudar, mas foi erguido de ponta à cabeça, sentiu seu tornozelo quebrando e foi arremessado muitos metros distantes, desabando sobre a lama. Pequenas gotas de água levitaram e tomaram a forma de agulhas, depois endureceram como gelo, para enfim serem disparadas contra o guardião, perfurando a pele e minando suas forças quase que inteiramente.

Jafari não encontrou forças para se erguer. Um de seus olhos estava sangrando aos borbotões e suas pernas vacilavam fazendo-o tombar de vez. Uma porção de lama foi moldada na forma de estaca e um calor sobrenatural endureceu e a tornou real. Ela foi posicionada em cima do guardião para o golpe de misericórdia. Jafari ouviu uma voz desconhecida:

─ Conceda-me teu vigor, Delacroix!

            A inesperada aparição de um desconhecido se interpôs entre a estaca e Jafari. A estaca desabou sobre o corpanzil do salvador, pesada como uma montanha. Um golpe que teria arrancado a vida de muitos guerreiros, mas o estranho aliado apenas espreguiçou-se, esticou os músculos e os avaliou de forma vaidosa, depois olhou para Jafari, quase sem vida e disse:

─ Oi, fofo. Vai ficar tudo bem. Não se preocupe, pois o Halig está aqui para cuidar de você – enfim, piscou o olho de forma sedutora, ergueu o corpo de Jafari no ombro e gritou por ajuda – DEREK, AQUI!

Halig

 

            Um vulto de sorriso sádico apareceu na surdina. Havia um par de luminescências no lugar dos olhos do indivíduo, órbitas de cores díspares, vermelha e azul. Ele sacou uma moeda e a fez girar três vezes no ar antes de apanhá-la e repousá-la nas costas de sua mão direita. Pelo semblante do sujeito, o resultado havia sido satisfatório. Ele, Derek, sussurrou:

─ Lael está sempre certo sobre minha sorte ─ zombou, em seguida, desembainhou sua espada longa das costas. Ela emitiu um brilho tênue dourado ─ Me fale um pouco sobre seus poderes desta vez, Anarquia.

A espada brilhava mais intensamente a cada palavra soada magicamente dela mesma:

─ Paladinos lamberiam o saco de seus deuses para me possuir. Eu sou a vingança sagrada, ótima pedida contra mortos-vivos e demônios... especialmente fatal contra essas... essas coisas que vocês estão lutando contra agora...

─ Perfeito.

            Derek girou a sagrada vingadora e seu brilho cegou as mães da aflição. Rápido no gatilho, a cabeça da primeira criatura já caía no chão quando o portador da Anarquia decepava a perna de uma segunda.

Derek

            Quanto mais Lisbeth se esforçava, mais seu corpo era pressionado contra o chão pela força sobrenatural e telecinética das mães da aflição. A rainha se afogava, incapaz de resistir ao poder das criaturas. Vagarosamente, Vittoria abandonava a firmeza do punho de Lisbeth afim de perder-se na sujeira do campo de batalha, até que finalmente a rainha pôde se desenterrar, erguer-se e respirar novamente. A força havia indo embora. Atônita e ainda recobrando os sentidos, ela analisa a situação e finalmente entende o que acontecera: meia dúzia de mães da aflição agora se contorciam em pleno ar, dando voltas lentas em relação à rainha e a elas mesmas. Logo, pôde-se ouvir o barulho de ossos partindo enquanto as bruxas eram dobradas e retorcidas como pano molhado a reter todo líquido. Enfim, as mães da aflição foram jogadas a esmo, arremessadas como se alvos de um poderoso estouro invisível.

Ali, tão próximo, uma mulher ria sadicamente da situação das bruxas. Seus olhos eram pura insanidade e os movimentos que realizava com as mãos mais pareciam como quem puxa as cordas de marionetes. A língua salivava fora da boca, um estímulo físico que refletia o prazer de causar aquele sofrimento.

Violet

─ Elas já morreram, Violet ─ comentou uma voz soturna, tão calma quanto um céu estrelado numa noite em que até os lobos respeitam o silêncio e ficam em suas tocas, famintos.

            Os corpos das mães da aflição caem no chão, já sem movimento. Violet, a sádica, arma-se com suas lâminas curtas e caminha até o corpo das criaturas afim de tirar-lhes a pele.

─ Quem...quem são vocês? – pergunta Lady Lisbeth, recompondo-se

─ Gostaria de nos apresentar após o final de tudo isso, se me permite. Por enquanto, peça para que seus soldados, recolham-se no chão e fechem os olhos. Tome cuidado com os destroços...

─ Do-do-do que está falando?

─ Olhe para o céu, minha rainha. Estou te alertando – respondeu o estranho.

            Foi isso que Lady Lisbeth fez e, assim, pôde notar uma dupla de luzes pequenas no céu se multiplicar e tornarem-se dezenas de pequenas estrelas que cairiam ameaçadoramente no campo de batalha.

─ O que é... o que são aquilo?

─ Corpos celestes da galáxia Anon-Hamurabi. Eles me ofertaram parte de suas artilharias, mas isso não representa nem um porcento de tudo o que têm... mesmo assim, é um grande poder destrutivo, por isso, abaixe-se e feche os olhos.

            Lisbeth entendeu. O céu estava caindo. Aquele sujeito havia feito parte do céu cair!

─ SOLDADOS! ABAIXEM-SE E CUBRAM SEUS OLHOS!!

            Os sobreviventes da tropa de cavaleiros da planície sem fim, embora esboçando a dúvida em seus cenhos, fizeram o que sua rainha recomendou.

Orlock olhava para tudo aquilo desacreditado. Virou-se na tentativa de fuga, mas encarou o estranho garoto das estrelas que, num piscar de olhos, já se punha a poucos metros do vampiro.

─ Quem... o que é você? ─ perguntou o barão da Mortalha.

─ Apenas alguém que apareceu na hora certa.

            Os cometas caíram sobre o campo de batalha, esmagando Orlock e suas crias vampíricas (somente) e levantando uma vasta nuvem de poeira. Muito mais distante dali, as aldeias mais próximas assistiram aterrorizadas um gigantesco cogumelo de vapores criar-se a partir do impacto da queda do céu e aguardaram a morte (mas ela não veio).

O chão tremeu, muitos caíram, mas todos continuaram vivos. O céu tinha um alvo exato e este era apenas o lado inimigo. Durariam dias até que aquela imensa nuvem de poeira finalmente passasse...

 

Aensell, alcunha Lael

 

Postar um comentário

0 Comentários

Close Menu