Aconteceu em dez anos, no reino de Azran - Parte 03 - Duas mentes, dois corações, uma alma

 

Aensell, o garoto que veio das estrelas

            Lady Lisbeth não conseguiria dormir aquela noite nem que tentasse. Sua mente fervia com tantas revelações que lhe foram narradas pelo enigmático Aensell, o garoto que veio das estrelas. Apesar de mente aberta, a rainha não estava preparada para ouvir o que ele havia lhe dito. Se agarrasse no sono as lembranças vinham pesadas, como se ela fosse capaz de presenciar toda a história que o mago havia contado.

Viagem entre planos, dimensões distantes, constelações forjadas por dragões planares, o tempo e o espaço como energias manipuláveis, a forma como que os companheiros de Aensell alcançaram a perfeição de suas forças espirituais e físicas numa jornada de pleno autoconhecimento e tudo isso alimentado por um estudo que o mago chamava de Teoria do Acaso. Quanto do que Aensell lhe falara podia ser verdade? Para ela só tinha duas alternativas: ou era tudo invenção criada de uma mente excêntrica e, talvez, lunática ou cada ponto narrado era a verdade completa, crua e nua diante dela. Se esta última for a correta, Lisbeth tivera sorte, pois o mago a quer como aliada, porém, durante quanto tempo?

            A rainha podia ouvir o discurso de Aensell na sua cabeça reverberando, tal qual ele falou, literalmente palavra por palavra. Provavelmente um encanto poderoso conjurado por um mago que trouxe seu conhecimento de outros mundos.

Este mundo, Draganoth como vocês o conhecem, foi criado por três deuses interplanares. Eles vieram, construíram, viram que era algo genioso e bom, depois abandonaram a criação para sempre. A trindade criadora fugiu para outras dimensões por dois grandes motivos (para uma existência primordial, é claro), primeiramente porque, para eles, Draganoth seria apenas mais um de seus formigueiros, e, por fim, contam-nos alguns textos (lidos somente por aqueles que conseguem enxergar os padrões nas estrelas) que algo bem maior, há muito tempo, caça a trindade por um motivo que de tão simples nos causa estranheza: fome.

Antes de partir (e isso eles fizeram cedo) deixaram seus legados nos primeiros seres criados, os deuses primordiais. Você já deve os conhecer, embora apenas metade da história foi devidamente contada. Em primeira instância haviam apenas três, aquele que criava, aquele que preservava e aquele que destruía. Por muito tempo, esses senhores de tudo não tinham nomes pronunciáveis, nem precisavam pois apenas eles existiam para compartilhar o conhecimento. Apenas quando o tempo e as ideologias foram criados é que lhes deram seus primeiros nomes (e foram muitos), gênero e forma. Conhecemos contemporaneamente (e respectivamente) pelos nomes de Hefasto, Gaiëha e Veronicca.

O que lhe conto agora é muito complicado de descrever e suponho que ininteligível, porém, apelo para as analogias afim de tornar o assunto mais legível, de certa forma. Conta-nos as constelações (e entenda essa palavra como bem quiser, mas não pense que esta é apenas um conjunto de meras estrelas) que em certo tempo (incontável, por sinal), a essência que preservava alcançou, com suas raízes, as profundezas de tudo e notou que havia algo único e infértil, algo que impossibilitava seu ofício. Companheira, a essência que destruía tudo escavou o caminho até o lugar, artefato ou existência, a encontrou e descobriu que aquilo era tudo que não pode ser descrito literalmente, porém, poeticamente, por assim dizer, a coisa era formada por uma alma, duas mentes e dois corações.

Reuniram-se as três essências e após um eterno diálogo, deduziram que aquela alma lhes era familiar, uma essência como eles próprios. Pela primeira vez eles sentiram um sentimento que, para nós mortais, é similar ao pavor, pois, até então, achavam que os seus criadores eram infalíveis. A quarta essência era, portanto, um ser trancafiado, incapaz de evoluir. Então, o deus que criava tudo revelou que com a estaca certa, ele poderia fender aquela alma, golpeando-a insistentemente com seu martelo até que ela se partisse e, assim, as mentes e os corações formariam corpos separados, compartilhando uma alma rasgada. Os três discutiram e concordaram, assim nasceu duas novas essências, os gêmeos, Alrûne e Zeiram, que mais tarde, após tantas desavenças, vitórias e derrotas, eles nos foram entregues como Splendor e Saulot (e isso, minha rainha, é uma história porcamente resumida, entretanto, não pretendo lhe ocupar com uma narrativa que será absorvida fielmente conforme essa era avança).

Minha família combate a existência dos dois que são um, Lady Lisbeth, pois desde que os deuses gêmeos foram libertados, a balança entre suas existências se anula constantemente e é isto o que impede a evolução definitiva deste mundo. Nós lutamos pela evolução e você, minha rainha, é o ápice de nossa pirâmide estratégica. Ao seu comando, seremos para você, as sombras de Azran, e a eterna luta entre deuses vitoriosos e deuses derrotados acabará.

            Lisbeth levantou-se da cama, ainda usava os trajes reais. Sua cabeça fervia. Cambaleando, a vítima das revelações de Aensell, caminha até a janela de seu quarto e quase que involuntariamente olha para o céu noturno e tem a impressão de que as estrelas brilham intensamente, mais do que todas as outras noites de sua vida. Ela entendia a história, agora estava contaminada com aquele entendimento e alguém, muito longe, noutra dimensão talvez (provavelmente um dos dragões cósmicos que mais tarde Aensell lhe contara) a observava evoluir. Essa era a palavra: evolução.

Mas a rainha era dura na queda e, portanto, queria ainda mais provas. Ela faria o que Aensell indicara uma noite antes. Armou-se com Vittoria e caminhou pelos corredores escuros do Farol, a capital de Azran. Ela rumava em direção ao mais alto dos poleiros, o lugar onde as águias gigantes da cavalaria eólica pousavam. O que ela veria até o fim daquela noite mudaria tudo...

 

 

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