Lady Lisbeth, rainha de Azran |
Orlock, o execrável, continha suas crias vampíricas para que estas não fossem dominadas pela fome. Ele, propositalmente, deixou de alimentá-las durante quase um mês, trancafiando-as à mercê de sua vontade e tinha uma explicação para isso: o frenesi de sangue tornaria o combate que estava por vir muito mais violento.
No começo daquele dia ele deixou o céu cinzento, embora sem qualquer vestígio de chuva além de uma densa neblina que delimitava o campo de batalha. Suas artes necromânticas trouxeram o terror às cidades mais próximas da muralha durante meses. Plantações apodreceram, animais foram encontrados mortos, fazendeiros adoeceram vítimas de uma praga desconhecida e viajantes foram constantemente atacados. Havia um propósito maior atrás de tudo isso além de apenas disseminar a crueldade, Orlock tinha uma missão dada pelo próprio senhor da Mortalha que faria outros cultistas fanáticos da religião sentirem inveja: minar a esperança dos povos de Azran e chamar a atenção de Lisbeth, a rainha do reino das planícies sem fim.
Orlock conseguiu. Skellis, um changeling infiltrador talentoso, espionava os limites entre as cidades atacadas, às vezes vestido de mendigo, outras de prostituta, e lhe trazia notícias. Foi assim que o execrável ficou sabendo que a própria Lisbeth viria ao seu encontro, dar um fim aos ataques. Era tudo que ele queria. Estava orgulhoso de seu trabalho, a ambição de levar a rainha de Azran para seu senhor agora era uma possibilidade concreta e ele só havia conseguido chegar àquele ponto depois de eliminar meia dúzia de heróis que os aldeões insistentemente pagavam e imploravam por suas ajudas. O último grupo que ousou desafiá-lo continha três paladinos e foi, particularmente para Orlock, uma vitória preciosa e um acontecimento auspicioso. Ele prendeu o trio e o torturou durante quase uma semana afim de produzir o profano elixir da dor líquida.
Tudo se encaixava perfeitamente e encaminhava-se rumo à sua vitória. O próprio Saulot deveria estar com os dois olhos direcionados àquela missão, rogando bênçãos, e o fim ocorreria logo. O barulho das correntes feitas de energia era muito similar aos grilhões comuns. As crias vampíricas se debateram ainda mais forte no terreno desolado, manchado por uma poeira contaminada pelas cinzas das vítimas queimadas até a morte nos últimos dias, quando notaram a flâmula da águia drapejar além da cortina cinzenta no horizonte.
Lady Lisbeth erguia a bandeira de sua nação na frente da experiente cavalaria de Azran. Ela trajava uma armadura que beneficiava seus movimentos, uma acolchoada no torso e o mithral adornando as braçadeiras. Ela decidira carregar um pingente da cruz-espada, pois era a religião que norteou os princípios de seu pai durante muito tempo. “A guerra, quando inevitável, precisa ser enfrentada de cabeça erguida” era uma de suas filosofias. Lady Lisbeth viera sem elmo, pois, para os estrategistas de guerra (e ela sabia que Orlock era um) aquilo representava a afronta de considerar o inimigo indigno de toda precaução.
Ao lado da rainha estava Jafari, o legionário conhecido por sua dignidade e considerado guardião da realeza. Ele havia conseguido aquele status da forma mais grossa possível, embora isto não fosse de sua simpatia. Janine, a mãe de Lisbeth, longe dos olhos do grande público e oculto à própria filha, convocou os heróis e cavaleiros mais fortes e destemidos da nação prometendo um desafio e o título de nobreza, além de outras regalias, para aquele que saísse vitorioso. No dia do desafio, os valentes guerreiros foram colocados numa rinha e o direito de luta e morte foi concedido. Lorde Jafari foi o vencedor, mas conseguiu se destacar por mais um motivo: todos os oponentes que travaram luta direta contra ele não tiveram suas vidas arrancadas. A considerada petulância de Jafari foi vista com maus olhos por uma maioria, mas principalmente por Brom, o guerreiro estrangulador que outrora havia sido o protetor de Lorde Alberich.
─ Mil perdões por discordar da milady, minha rainha, mas o seu lugar não é a frente deste campo de batalha – Jafari falou soturno.
─ Se você repetir isso mais uma vez na sua vida, Jafari, eu arrancarei a sua cabeça e a hastearei no primeiro cemitério de orcs que me deparar.
Ela e Jafari riram do diálogo, afinal de contas, conheciam bem as motivações um do outro e o legionário havia dito aquilo apenas para chateá-la, pois sabia bem que Lady Lisbeth jamais aceitaria não participar daquele episódio. Esse tipo de atitude era comum à rainha desde cedo, logo no primeiro ano que ela se deparara governante do reino de Azran. Lorde Klaus, um experiente gnomo ilusionista e conselheiro da realeza, bem dissera a ela: sua sina, como rainha de Azran, é maior e deve ser mais gloriosa do que a dos governantes de qualquer outro lugar do mundo! Seu reino é a fronteira com Karrasq e a primeira esperança. Você, Lady Lisbeth, não pode se contentar com o luxo de ser apenas uma rainha. Você deve ser uma guerreira ainda melhor, pois o governante de um reino cujas armas devem ser sempre empunhadas à riste, precisa ser um exemplo para o seu povo.
Lady Lisbeth, então, finca a haste com a flâmula dos Darkheart em resposta ao barulho da corneta de guerra ressoada pelo inimigo. Ela toma a frente de sua tropa e analisa alguns rostos aterrorizados. Eles pertencem aos guerreiros menos experientes que se juntaram ao exército das planícies eternas recentemente, fazendeiros com muita vontade, mas com pouca técnica, que haviam perdido filhos e esposas nos ataques de Orlock às suas cidades.
Os rostos de todos ali estavam manchados de cinzas. As piras que haviam incinerado inocentes estavam dispostas entre os dois exércitos e ainda exalavam os restos quase insubstanciais das vítimas no ar. Uma trama ardilosa do vampiro Orlock. Lady Lisbeth assiste cair uma das cinzas entre seus dedos e a fricciona tingindo as extremidades com a cor do carvão, então discursa:
─ É das cinzas dos inocentes que tiveram suas vidas arrancadas tão precipitadamente pela crueldade de nossos inimigos que erguemos nossas espadas mais uma vez em direção à glória. Eu lhes quero contar, meus irmãos de guerra, que o vínculo entre vocês e essas vítimas ainda não se rompeu. Quero assegurar-lhes que a única forma desta ligação se manter eterna é através da determinação que vocês mostrarão nesta batalha. Vocês lutam pela libertação das almas dos entes que vocês tanto amam, estes estando vivos ou mortos! No final do dia, quando as nuvens acima de nós se abrirem e os primeiros lampejos nos tocar, saibam, senhores, que este será o momento em que a liberdade de nossos heróis mortos se concretizará! Até lá, a morte não existe! Vocês, exército da planície eterna, são, neste momento, seres imortais e enquanto sentirem dor estarão vivos, de pé, guerreando, para merecer a paz que vos espera! Insisto, meus irmãos de guerra, hoje seremos imortais! – bradou.
─ Seremos imortais! – bradou a cavalaria, a princípio de forma desordenada, depois, acompanhando a ordem de Lady Lisbeth até soar uníssono, logo, então, investiram, gritando em honra de seus entes queridos.
Do outro lado, as crias vampíricas foram libertadas de seus grilhões e, encurvadas como primatas, correm desesperadas afim de saciar a fome. Lorde Jafari ergue uma lança curta na altura da cabeça e mira na cria vampírica a frente de todas, então arremessa e atinge a criatura em cheio. A lança enterra no peito do inimigo, mas sem efetividade.
Orlock comandando suas crias vampíricas
─ Catena fulgur! – ele sussurra e, da ponta da lança curta cravada, um brilho se intensifica contornando o corpo da cria vampírica com eletricidade poderosa. O raio consome a criatura e, como uma serpente, ziguezagueia pela horda inimiga distribuindo rajadas elétricas e dilacerando a carne de muitos até finalmente dissipar no chão.
As crias vampíricas deram saltos de gigante e caíram sobre os cavaleiros atracando-se em seus pescoços e rasgando a carne, quando não alcançavam os cavaleiros, abocanhavam as montarias e as derrubavam, pois os filhos de Orlock tinham a força de muitos homens. Em instantes, o campo de batalha estava inundando de sangue e Orlock, o execrável, assistia a tudo com um sorriso prepotente.
A espada bastarda, feita do primeiro minério encontrado nas minas de mármore na gloriosa época em que Brastav, a primeira capital de Azran, estava de pé, manteve-se bem representada nas mãos de Lisbeth. Sua montaria atropelou a primeira leva de crias vampíricas enquanto a rainha ceifava cabeças que se transformavam em pó em pleno ar. Quando, enfim, o bom cavalo, treinado e bem cuidado pelos clérigos dos Quatro, cedeu aos ferimentos, Lisbeth lhe desejou uma boa partida e cravou a lâmina no pescoço.
Agora, em pé e firme, Lady Lisbeth esquivou-se do ataque da primeira ousada criatura que tentou agarrá-la e, em resposta, partiu-a em dois, trespassando a lâmina para uma segunda e terceira crias. A rainha tinha um alvo decisivo e, por cima da legião, observou Orlock mais distante. Ela gritou por Jafari, que ainda tinha a montaria sadia, e este cavalgou veloz naquela direção fazendo seu cavalo saltar e pisotear o chão enquanto clamava por uma nova magia:
─ Clamore impetus! – o chão tremeu e meia dúzia de crias vampíricas caíram.
Lady Lisbeth investiu gritando mais alto que a guerra:
─ Vamos acabar com isso agora, Orlock! Eu e você!
Orlock não deu atenção ou apenas se sentiu deveras ameaçado. Tinha muitos truques para usar antes de partir para uma luta corpo a corpo. Manipulou uma energia amarela e translúcida usada para dar forma a um espectro. Este era Anüzabhar, um orc rei e guerreiro do continente de Katarsh’motta.
O ser etéreo invocado desejou um arsenal e dos cadáveres no campo de batalha voaram ao seu encontro placas de metal das armaduras alheias concedendo-lhe uma feição terrível. Enquanto Lady Lisbeth não passava de um metro e sessenta e cinco, o fantasma de passado cruel tinha mais de dois metros. Este evocou sua lâmina espectral e despejou sobre a rainha seu melhor ataque. Lisbeth aparou e mostrou que a espada que tinha em mãos era digna daquele combate, deslizou as lâminas guiando o ataque inimigo contra o chão enquanto arqueava e impunha o peso de seu corpo num dos joelhos, para, então, resvalar a espada de Brastav contra o abdômen do espectro lhe queimando a substância ectoplasmática. O espectro volta a materializar sua espada e tenta atacar a rainha, mas ela rola para o lado certo e golpeia o calcanhar da criatura fazendo-a arquear e ser alvo do ataque certeiro que lhe acertou abaixo da mandíbula, atravessou o elmo e fez a ponta da lâmina de Lisbeth rasgar o metal. O inimigo se contorce enquanto seu núcleo se desmancha e ele, enfim, desaparece.
─ Eu a subestimei, um de meus guerreiros espectrais não foi o suficiente. Vamos ver como se sai lutando contra os impiedosos!
Gürluk, Nefantü e Devärk, os robgoblins que outrora foram conhecidos pelo singelo título de “os impiedosos”, lutavam como lobos cercando a presa, abrindo brechas na defesa inimiga para rasgar a carne com suas espadas curtas nefastas. Agora eles faziam parte dos etéreos de Orlock.
Jafari se despede de sua montaria que desaparece em meio a neblina, então se arma com seu sabre e se dispõe ao lado da rainha. Gürluk, como de praxe, é o primeiro a atacar, atingindo propositalmente a braçadeira de Lady Lisbeth e guiando Nefantü para o pescoço da rainha.
─ Aegis arkanum! – um escudo azul e imaterial se forma diante o guardião quebrando o ataque inimigo.
Devärk, rasteiro, encontra a fenda da armadura de Jafari atrás do joelho e num corte cirúrgico faz derramar muito sangue. O guardião titubeia sentindo a fisgada e Lisbeth desfere um ataque firme e estudado contra a nuca do robgoblin. O tecido etéreo é rasgado e a cabeça de Devärk teria sido arrancada, não fosse ele um fantasma.
Gürluk e Nefantü ziguezagueiam ao redor de Lady Lisbeth procurando confundir sua percepção, enquanto Jafari concentra a guarda na rainha. Devärk espera pela nova brecha que seus irmãos concederão. Nefantü age, Lisbeth se afasta, abre sua guarda e concede uma brecha para Jafari acertar Gürluk num bote rápido e eficiente. O sabre do guardião emite um som agudo e perfurante que atinge o pescoço do primeiro impiedoso desmanchando seu véu espectral. Como premeditado, Nefantü atinge Lady Lisbeth nas fendas do ombro e a rainha gira o corpo programando o próximo ataque oportuno que é desferido certeiramente no esguio Devärk, partido em dois. Sem a ajuda dos irmãos, Nefantü se afasta da batalha e volta para seu submundo.
─ Está bem, Jafari? – pergunta a rainha.
─ Bem o suficiente para querer acabar de vez com essa luta agora – ele responde enquanto sua perna esquerda transborda sangue.
Lisbeth se livra da armadura de seu ombro direito, expondo o corte feito por Nefantü antes da fuga. Uma barreira de guerreiros da planície eterna interpõe a passagem das crias de Orlock para próximo do mestre. O vampiro se livra de sua capa, artigo meramente ilustrativo no momento. Uma mão mumificada está presa a um cordão em seu pescoço e parece se mexer da forma que uma aranha se moveria em cima de sua teia. Orlock retira um frasco de líquido vermelho enegrecido e o derrama na boca, saciando com o gosto do sangue dos três paladinos que ele torturara nos últimos dias.
─ Venham! Deem-me o prazer de levar a carne do inimigo ao meu mestre! – grasnou Orlock imerso num poder crescente que fazia seu corpo transbordar de energia necrótica.
─ Praesidium abismare! – Jafari invoca um círculo mágico que se expande ao redor dele mesmo afetando Lisbeth. Uma dezena de runas celestiais douradas flutuam e desaparecem como pó de estrelas quando atingem os dez centímetros de altura, para depois reviverem, vindas do chão, perpetuando a proteção contra o maligno.
─ Sanguinus clamor! – vocifera Orlock enquanto a mão mumificada em seu pescoço gesticula os componentes somáticos.
A maldição recai sobre Lady Lisbeth imediatamente. Ela sente irritação nos olhos e passa a enxergar um panorama rubro quando de suas pálpebras escorrem sangue. Ela tosse forçosamente e cospe mais uma boa quantidade de líquido vital, esfrega as mãos no rosto tentando limpá-lo e sente os ouvidos inundarem. Ela mal tem tempo para notar a rajada enegrecida disparada pelo vampiro em sua direção. Jafari posiciona o escudo de energia a frente da rainha e assiste ele ser devorado pela magia de morte enquanto provoca apenas um leve desvio na trajetória do raio fatal que acaba atingindo a braçadeira esquerda de Lisbeth.
A rainha gane de dor e desamarra a armadura de seu braço tornando visível a pele borbulhante provocada pelo reio destruidor de Orlock.
─ Magias de morte – explica Jafari – a pele e a carne simplesmente apodrecem e enfim somem ao mero toque. Esta criatura é realmente poderosa.
─ Não podemos recuar agora, Jafari. – Lady Lisbeth pede.
─ Eu nunca faria isso, minha rainha. Seria uma vergonha para mim sair correndo enquanto todos esses soldados amigos assistem! Eu tenho uma reputação para zelar!
─ Eu só preciso me aproximar uma única vez da aberração e a luta estará acabada. Klaus me explicou que os cultistas da Mortalha, quando mortíferos conjuradores, privam suas fortalezas físicas e acabam se tornando mais vulneráveis...
─ Eu não acho que isto se encaixa à Orlock, milady. Ele não é um conjurador comum, é um vampiro. Suas resistências são sobrenaturalmente mais eficientes que as de um arcano comum.
─ Orlock ser vampiro é apenas uma desvantagem nesta luta, Jafari. Não reconhece a arma que estou empunhando?
Jafari analisou o item rapidamente, pois precisava manter sua concentração e foco afim de se defender.
─ Não entendi, milady...
─ Esta que tenho em mãos é Vittoria, a espada de Santo Fectos.
Jafari ficou embasbacado. A história de Vittoria é uma crônica a parte e certamente grandiosa demais para ser meramente resumida, porém, ainda assim, será em poucos trechos que esta narrativa a apresentará
Forjada do primeiro metal encontrado nas profundezas das Montanhas de Mármore, ao aço desta espada foi concedido vida durante a forja impecável de Azhûr Drakhar, o eterno, o maior ferreiro de todas as épocas. A princípio um receptáculo divino criado para exercer a trama de Veronicca, deusa da morte, sob os reis de outrora, mais tarde convertida na insígnia de um dos heróis mais significantes para a criação do evangelho de Lorde Splendor e consequentemente tornando-se a maior auxiliadora de todas as vitórias do santo. Durante muito tempo seu paradeiro esteve oculto, permanecendo trancafiada até que um novo portador digno tivesse a gama de valores que Santo Fectos possuía para assim torna-la uma arma empunhada para o bem, ao invés da trágica versão a qual ela foi criada para profetizar.
Jafari não sabia o que pensar diante aquele artefato naquela hora, imaginara, entretanto, que surpresa conveniente...
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