Tulipa perseguia o invasor fazia algumas horas. À espreita, com seu arco longo, ela se aproveitou da camuflagem natural da Floresta de Irminsul, seu lar, no qual estava tão adaptada. Aquelas eram terras bárbaras onde somente as amazonas ─ e os animais selvagens ─ habitavam. A caçadora percebeu que o invasor, um sujeito de aparência excêntrica que ela julgou ser das terras do norte, parecia não saber por onde caminhava, embora não esboçasse qualquer reação de preocupação, como faria alguém na mesma situação que se julgasse perdido. Ele com certeza não sabia dos tigres-dentes-de-sabre, nem havia notado os tão recentes rastros de urso atroz que acabara de cruzar seu caminho, não, muito pelo contrário, ele caminhava justamente na direção do perigo.
Tulipa decidiu agir apesar de reconhecer que aquele invasor, talvez, estivesse a guiando para uma armadilha ─ ela aprendeu que sempre devia desconfiar dos estrangeiros, especialmente se estes fossem do sexo oposto ─ caso estivesse errada sobre isso, o estrangeiro seria devorado por uma fera aleatória em segundos. Retesou a linha do arco e deu dois passos silenciosos para frente, mas antes que pudesse ameaça-lo, o viu de mãos para cima exclamando:
─ Eu me rendo!
Ele se virou e Tulipa pôde ver sua aparência.
─ Você tem pele azul? ─ interrogou ela, sentindo-se confusa.
─ Qual é? Pele, não. Isso são escamas! Não venha me dizer que uma caçadora da floresta de Irminsul não sabe reconhecer um elfo do mar! ─ respondeu o invasor indignado.
Tulipa já havia ouvido falar daquela raça subaquática, mas de acordo com o que tinha escutado eles preferiam estar bem embaixo do oceano. Era realmente estranho encontrar um no meio da floresta.
─ O que você está fazendo por essas bandas? ─ Tulipa questionou agora parecendo intimidadora.
─ Ando meio perdido...
─ Besteira! Me fale a verdade! ─ puxou a corda do arco com mais força.
─ Calma aí, minha linda. Olha pra onde você aponta essa flecha.
─ ...ou você vai fazer o quê?
─ Ora, nada, eu sou um estrangeiro pacífico ─ o elfo do mar respondeu despreocupado.
─ Você vai sair de Irminsul imediatamente! ─ ameaçou.
─ ...ou você vai fazer o quê? ─ retrucou o elfo do mar.
─ Vou te levar para minha chefe e ela tratará de você.
O elfo do mar riu escandalosamente deixando Tulipa envergonhada e insegura.
─ Eu já falei pra você que me rendo? Pode me levar.
Foi isso que Tulipa fez.
***
Os pertences do estrangeiro eram... estranhos. Havia uma adaga de marfim com inscrições arcanas, mas sem fio e sem ponta. Um colar com seis orbes miúdas, mas de tamanhos diferentes que brilhavam quando soltas na escuridão. Um conjunto de cartas, algumas com desenhos variados, outras em branco. Ah, e claro, a harpa, seu instrumento musical exótico adornado por desenhos que pareciam contar várias histórias.
─ Tenham cuidado com a Giselle ─ explicou o estrangeiro quando tocaram na sua harpa ─ ela se enfurece fácil!
Enfim, quando o consideraram indefeso, amarraram suas mãos e o espetaram com lanças:
─ ... mas, que situaçãozinha desnecessária! ─ exclamou o elfo do mar indignado com sua condição de prisioneiro, então, encarou uma longuíssima escadaria que o levaria ao topo do lar das amazonas ─ vamos subir tudo isso? Isso é o que eu chamo de rito de apresentação desmoderado. Certa vez eu subi uma escadaria muito longa como essa, foi em Rivergate. Me falaram que as águas no topo da Montanha da Paciência eram quentinhas e agradáveis por causa de um gigante de fogo que há muito havia adormecido no subterrâneo daquele lugar e, também, que aquelas águas tinham o poder de curar toda raiva e ansiedade do indivíduo, mas devo confessar que já estive em fontes mais agradáveis e também que eu não sou um sujeito que me irrito por qualquer coisa...
As amazonas apenas se entreolharam confusas, julgando o indivíduo que parecia estar indo para a forca, mas mantinha-se estranhamente tranquilo.
─ Ora vejam, o que é aquilo? Ah... esta sim é uma visão nova de verdade. Parece que um dia vocês também tiveram problemas com gigantes. Deduzo que se saíram bem, mas minha curiosidade é a seguinte: onde vocês enterraram os corpos deles? Ah! E como vocês fizeram para fincar essas espadas gigantes aqui no topo?
Haviam três espadas monolíticas enterradas no vale das amazonas, um deslumbre realmente magnífico. Santuários haviam sido erguidos ao redor dos artefatos e uma coroa gigantesca estava dependurada no cabo de uma das espadas, justamente para a qual o estrangeiro estava sendo encaminhado.
Enfim, ele foi jogado à maus tratos aos pés da líder dos povos de Irminsul. Caiu de joelhos, ganiu de dor, ergueu o rosto e encarou a meio-orc. Abriu um sorriso:
─ Então, você é Darthanna, a campeã de Gwynharwyf!
Darthanna, a campeã de Gwynharwyf, líder de Irminsul
─ Você conhece demais, estrangeiro... ─ rosnou Darthanna.
Darthanna tem sangue orc, as presas, as orelhas e o nariz denunciavam isso, mas seus olhos eram de um azul muito claro, o que é bem atípico para a raça. Seu corpo está coberto de cicatrizes, das mais sutis às mais profundas, o que certamente mostra o quanto de guerras e batalhas ela havia sobrevivido e saído vitoriosa.
─ Começamos com o pé esquerdo ─ o estrangeiro tenta se levantar, mas é contido pelas amazonas da escolta ─ ...pois bem, eu tenho um nome, na verdade, eu tenho muitos nomes, mas por essas bandas acho que vou adotar o de Christopher. Sou Christopher Windsailor. Chris, somente Chris, para a senhorita.
Darthanna abaixou-se em direção ao rosto de Chris e o farejou.
Chris Windsailor, o estrangeiro
─ Você é fraco! ─ determinou.
─ Você deduziu isso pelo cheiro? Esta é uma habilidade realmente magnífica!
─ O que faz nas terras de minha deusa? ─ interrogou impaciente a meio-orc.
─ É uma longa história, mas para resumir bastante: eu fui desafiado e aqui estou ─ Chris destacou seu sorriso mais franco no rosto.
─ Você quer um desafio, estrangeiro? ─ ameaçou Darthanna e, imediatamente, uma dezena de amazonas presentes se prontificou adiantando-se uma passada.
─ Não, minha cara. Não esse tipo de desafio. Eu estou aqui porque duvidaram que eu poderia estar e também que eu seria incapaz de me mostrar, digamos, encantador para alguma de vocês.
As amazonas se entreolharam confusas:
─ Seja direto, elfo do mar.
─ Ouvi falar da forma com que algumas de vocês nos usam, quero dizer, nós, os homens, apenas como meio de reprodução, depois nos devolvem para a vida civilizada. Eu vim me oferecer, com todo respeito. Esse é o tipo de romance que procuro por ora e...
Chris leva um chute no rosto e rola um metro pra trás.
─ O que você propõe é ridículo, homem! ─ resmungou Darthanna.
─ Bem, à primeira vista, sim ─ respondeu Chris cuspindo uma golfada de sangue ─ mas levando em conta o fato de eu ser um exótico elfo do mar e também um contador de histórias, achei que, talvez, a senhorita pudesse repensar.
As amazonas obrigaram Chris a ficar de joelhos novamente.
─ O sangue das abençoadas por Brighitte não se mistura ao de estrangeiros fracos!
─ É, talvez essa seja uma boa interpretação dos fatos, reconheço, de verdade, embora eu deva salientar que existe mais do que um tipo de força que deveria ser levada em conta, entende?
─ Somos guerreiras. A espada, a lança e o arco são a nossa força. Sobreviver é nossa força!
─ E isso vem dado certo durante muito tempo, não é verdade? Aqui deve ser um lugar bom de se viver, arejado, cheio da matéria-prima de primeira, a ordem aparentemente está estabelecida, mas, como conhecedor do mundo, sei que vocês devem estar deveras preocupadas com a recente situação...
─ Porque estaríamos preocupadas?
─ As coisas que vêm de Xea’thoul...
As amazonas cerraram os punhos num misto de ódio e terror.
─ ... elas estão ficando mais imprevisíveis, não é?
Darthanna socou o rosto de Chris que deixou-se espatifar no chão indefeso:
─ Ok, eu não sei porque mereci isso, mas, vamos tentar não partir para a agressão física assim, de graça. Tenta ofender verbalmente uma vez ou outra, tudo bem? ─ suplicou Chris.
─ O que sabe sobre as maldições de Xea’thoul, arauto da destruição!? ─ Darthanna levantou Chris pela gola da camisa e o encarou com firmeza.
─ Olha, “arauto da destruição” eu gostei ainda menos que “estrangeiro” ─ Chris tentou acalmar a líder de Irminsul, conseguiu fazer com que fosse solto de suas garras e explicou ─ Não é algo que somente eu saiba, existe um povo nas redondezas dessa floresta que tem certas dificuldades em se comunicar com vossa senhoria.
─ Você fala do povo vulcânico ─ deduziu Darthanna.
─ Que bom que vocês sabem que Sazancross existe, isso vai resumir bastante a conversa.
─ Há muito nossas lanças e escudos defendem essas fronteiras, como os devotos da deusa das chamas podem saber das fraquezas do nosso inimigo mais do que nós mesmas?
─ Creio que eles investiram em estrangeiros mais do que vocês...
─ Explique!
─ Enquanto vocês e outros reinos se engajavam em guerras intermináveis e confiavam mais em seus soldados do que na boa vontade dos bem aventurados aventureiros, Sazancross sabia que eram nesses últimos que deviam depositar as esperanças. Escuta, a senhorita nunca ouviu falar do Grêmios dos Heróis, não é verdade?
Darthanna balançou a cabeça negativamente.
─ Heróis. Alguns teóricos até tentam conceituar. Alguns nascem assim, outros se transformam, mas é fato que existem indivíduos por aí que, independentemente de religião, crença ou voto, têm seus corações inundados por uma vontade irremediável de serem... heróis. O Grêmio dos Heróis é uma organização de indivíduos independentes que busca solucionar os problemas desse nosso mundo e até de outros, como já ouvi falar. Um tipo de sociedade do bem que eu, minha cara senhorita, tenho o prazer de informar que ingressei bem recentemente.
Alguns desses heróis vieram de terras longínquas, da selva de Chattur’gah, dos reinos quietos de Rivergate, das terras arcanas de Mordae e até dos desertos iluminados de Quéops. Inclusive, há entre nós alguém que nasceu no profundo reino de Absynia, onde somente os elfos do mar mais pomposos existem. Um dia eu tive uma luta páreo a páreo com ele e, devo reconhecer, quase que eu não venço...
Enfim, vindos de todas as partes e indo pra lugar algum, nós, do Grêmio dos Heróis, juntamos anos de conhecimento num único espaço. Somos totalmente capazes de enfrentar as feras de Xea’thoul, isso, claro, se contarmos com as alianças certas.
Darthanna fica em silêncio um breve momento antes de voltar a argumentar:
─ Porque uma aliança com as amazonas de Irminsul?
─ Ora, eu pensei que fosse bem óbvio. Vocês lutam contra Xea’thoul há muito tempo. O grêmio, neste exato momento, possui representantes tentando fortalecer essas alianças em Rivergate, Nevaska... temos até uma samurai pé rapada tentando reforçar amizades no reino de Asura.
─ As amazonas de Irminsul não forjam alianças com outros povos.
─ Eu sei da história de vocês, acredite, mas este não é bem o momento para reviver o passado.
Darthanna observa as amazonas ao redor do santuário. Seus rostos estão cheios de ansiedade e esperança. Há pouco menos de um mês, uma dezena delas havia morrido numa luta difícil que tiveram contra uma das feras de Xea’thoul, uma do tipo que ninguém havia enfrentado antes. O inimigo estava ficando mais forte, talvez se alimentando com magia negra. Darthanna sabia que a situação de Irminsul poderia se tornar incontrolável. Então, ela decide:
─ Soltem o estrangeiro! ─ e é atendida imediatamente ─ você, Christopher das terras vulcânicas, agora tem a missão de nos contar mais sobre esse tal grêmio dos heróis.
Tendo as mãos finalmente livres, Chris esboça seu melhor sorriso e diz:
─ Eu já lhe disse que sou um ótimo contador de histórias?
0 Comentários