Aconteceu em dez anos, no reino de Azran - parte 06 - Revelações nas planícies eternas

 

Um vilarejo abandonado perto das terras esquecidas. No horizonte, o princípio de uma chuva de cinzas.

            Jafari foi proibido de participar das reuniões entre Lady Lisbeth e Aensell. A rainha o fez prometer que não bisbilhotaria esses encontros e salientou que ela sabia se cuidar muito bem, além do mais, um ser tão poderoso – lembremos que Aensell fez cair o céu sobre o inimigo numa última batalha – se pretendesse fazer algo de terrível, não precisaria de aviso prévio. Jafari deu sua palavra, mas também lembrou à própria Lisbeth que seu juramento mais genuíno sempre seria o de protege-la.

             Um homem de palavra consegue incentivar e manter os aliados certos, assim, o guardião sabia que também tinha lugar cativo no coração da rainha, por isso, ela não negou seu pedido de acompanhar ela e Aensell até um ponto remoto nas planícies eternas que é a fronteira entre as terras esquecidas – as planícies inférteis próximas à muralha, cujas chuvas de cinzas era uma ocorrência comum – e os pastos ainda verdejantes de Azran. Julgou estranha a decisão de realizar a viagem a pé, carregando mochilas, como um grupo de aventureiros no início de uma jornada, mas aprontou-se e juntos, já estavam no meio do caminho.

Era noite e Lady Lisbeth foi derrotada por um sono pesado. Aensell recomendou que ela deveria dormir, pois naquele ponto de sua jornada, os sonhos iriam lhe revelar muitas decisões. À beira de uma fogueira atiçada pelo mago, Jafari finalmente tinha alguns minutos à sós diante Aensell e resolveu mostrar-se atento ao que estava acontecendo com a rainha, atitude que foi compreendida sem nenhuma surpresa pelo mago que apenas respondeu:

─ É bom saber que existe um par de olhos a mais para garantir a proteção da rainha.

            Aensell nunca expressava se sentir ameaçado, muito menos esboçava qualquer reação de medo, por isso, era incômodo para Jafari saber que ele, sendo guerreiro nato e  carregando um histórico de vitórias e títulos genuínos, era incapaz de sujeitar alguém a ter o mínimo de precaução diante de si.

─ Eu não o vejo sair muito do Farol, mago ─ compartilhou Jafari.

─ Eu tenho outros métodos que me faz capaz de visitar lugares ─ Aensell respondeu com clareza.

─ Você deve saber que ando à sua espreita, é o meu trabalho como guardião, fico atento. Eu só o vi nas estradas do Farol uma única vez.

            Jafari esperou alguma reação, mas só houve silêncio, então, continuou:

─ O que fazia na Taverna das Nove Flechas quatro noites atrás? ─ perguntou diretamente.

            Aensell parou de cutucar a fogueira com um galho e pensou um pouco antes de responder:

─ Eu precisava alertar um amigo sobre um futuro acontecimento – revelou.

─ Que amigo?

─ O jovem Adam, herdeiro da taverna das nove flechas, filho do soldado leal, Castelo Cinzento, que você deve conhecer. Não se preocupe, o assunto que tive com ele não tem nada a ver com sua rainha. Eu tratava de assuntos pessoais.

            Jafari sentiu que não deveria se intrometer mais, pois até ali, havia se comprometido muito, porém, após um breve silêncio, foi Aensell que voltou à palavra:

─ Não pense, Jafari, que pelo simples fato de eu estar me reunindo apenas com Lady Lisbeth, não valorize os aliados dela. Eu sei exatamente qual a sua parte nessa história.

─ Do que está falando? Que parte? ─ indagou, surpreendido.

─ Eu prefiro que você continue desinformado sobre isso e, agora, mais do que antes, mantenha-se focado em sua sobrevivência.

            Jafari não soube o que responder de imediato. Brigou com o próprio raciocínio para fazer as perguntas certas, mas estas não vieram. Deu de ombros e assentiu, depois mudou para um assunto que cabia apenas a sua curiosidade:

─ Como é lá? Você, sabe, lá, nas estrelas?

            Aensell olhou pra cima. As noites continuavam intensamente estreladas.

─ Lá em cima lutam muitos guerreiros de outrora, eles vivem em galáxias escamosas cujos hálitos formam esses grandes balões de gás que flutuam a incontáveis milhas de distância, acima de nós, a poeira.

            Jafari nada entendeu, mas sabia que para compreender ele precisaria de um contexto muito maior sobre tudo. Coisa de mago. Ele precisava descansar, então, sonhando com a ideia dos guerreiros de outrora, dormiu pesadamente.

***

            Lady Lisbeth acordou pronta para continuar a jornada, mas foi desacelerada pelo próprio Aensell que disse que naquele momento a pressa era desnecessária. O trio comeu as rações de viagem, jogaram as mochilas nas costas e continuaram a caminhada. No horizonte distante noticiaram uma tempestade de cinzas, vinda das bandas da Muralha do Próximo Amanhecer, mas Aensell a todos acalmou, pois previu que a tempestade não duraria muito e que eles estavam seguros àquela distância.

─ Qual a história dessas chuvas de cinzas? ─ perguntou Lisbeth.

─ Ela foi invocada há muito por Saulot. Trata-se de uma magia eterna, cronomântica, vinculada a uma das mais vis magias do Necronomicon...

─ Você poderia ser mais direto nas explicações, Aensell? ─ reclamou Jafari.

─ Essa tempestade sobrenatural, ela nunca vai parar de existir e é sempre parte da mesma ─ explicou Aensell ─ cronomancia é difícil de ser dissipada.

            Lady Lisbeth observou os confins de seu reino preocupada.

─ Essa coisa parece avançar vagarosamente. Aensell, temos que por um fim nisso, nós vimos o que você é capaz de fazer, é um ser poderoso, pode fazer o céu cair sobre Karrasq. Você poderia confrontar o próprio Saulot!

─ Eu não estou preparado para isso, e mesmo se um dia estivesse, eu não faria. As espirais do destino são praticamente infalíveis. Eu me tornaria um inimigo pior que o senhor das hordas trôpegas.

            Lisbeth e Jafari se entreolharam confusos.

─ A forja do bem criará o mal. É uma lei que o universo insiste em aderir. Vejam, estamos bem próximos do centro de Azran, onde o milagre da vez está prestes a acontecer.

─ Aensell, você me disse que contaria o propósito dessa jornada quando tornar-se necessário. Não acha que é o momento de sabermos?

            Jafari espantou-se com a dúvida de Lisbeth. Pensou ele: “então, nem a rainha sabe o propósito de estarmos aqui? Como Lady Lisbeth pode confiar tão cegamente nesse... estranho?”

─ Está certa, Lisbeth. Eu contarei a história da criação de Saulot, mas pretendo resumir bastante.        

            Aensell encerrou o passo quando o trio chegou a um pequeno vilarejo abandonado. Um dos vários que encontraram – e encontrariam – enquanto estivessem andando próximos às terras esquecidas. O vilarejo não tinha mais que dez pequenas casas e foi abandonado às pressas quando os aldeões notaram a chuva de cinzas ao longe.

─ Vocês devem conhecer a história de Santo Fectos, o paladino que se tornou o símbolo da religião da Cruz-espada. Saulot foi criado por ele.

            Lisbeth e Jafari ficaram estupefatos.

─ Quanta besteira! ─ Jafari levou a mão ao cabo da espada e foi interceptado por Lisbeth ─ você está dizendo que o herói desta nação foi o responsável pela existência do senhor das hordas trôpegas?

─ Ele foi tão responsável pela existência deste que o próprio céu o castigou.

─ Continue, Aensell – pediu Lady Lisbeth.

            Jafari olhou para a rainha desconfiado, engoliu a raiva e calou-se. Aensell seguiu adiante:

─ Os portões dourados, este é o último lugar encontrado nos confins do Abismo, o plano que é continuamente criado e destruído por Astaroth, a única deidade criadora de Draganoth cujo conhecemos o nome, pois é este o único nome citado nas escrituras mais antigas. Lá estão trancafiadas as ideias e as entidades que foram julgadas como indignas de existência. Por um longo tempo, lá foi o lar de Necronomicon.

Naquela era, o inimigo era outro, conhecemos ele pelo nome de Marduk, avatar de Zeiram, um dos primeiros deuses gêmeos. Santo Fectos, na época um simples paladino de atitudes questionáveis, havia perdido não somente um irmão para as tropas do deus, mas tudo que ele acreditava estava sendo destruído pelo oponente. O herói conheceu o engenhoso Saulot, mago da Ordem Arcana de Mordae, uma figura de ideias excêntricas, dentre estas, ele discutia a necromancia como um tipo de magia não somente de morte, mas também de vida.

O entusiasmo de Saulot incentivou Fectos. Estudar sobre a vida e a morte era uma forma de se precaver. Fectos já empunhava Vittoria, um artefato divino, mas Saulot o convenceu de que a melhor arma era o conhecimento. O conhecimento divino. Foi assim que eles chegaram a informações sobre o Necronomicon e, decididos, invadiram o Abismo, enfrentaram seus juízes e chegaram aos portões dourados. De lá, resgataram o Necronomicon, a única cópia do grimório que um dia foi escrito pela trindade soberana.

Saulot tinha em mãos o resultado da missão de sua vida. Ele refugiou-se nas terras geladas de Nevaska e absorveu todo o conhecimento do grimório então, assim, como a história nos conta, foi corrompido por uma visão de mundo extremista que resultou na criação das hordas trôpegas, um exemplo de existência sem dor ou sofrimento, de acordo com seus ideais.

─ Fectos foi enganado. Era incapaz de prever o que iria acontecer ─ explicou Lisbeth ─ nem o próprio Saulot sabia o que iria acontecer!

─ E isto o torna menos culpado? A ignorância é uma culpa ─ explicou Aensell ─ ele teve de conviver com esse pecado. Era inimigo dos demônios, mas tornou-se também dos anjos cuja representação é a justiça.

─ Então, os anjos o castigaram? ─ argumentou Jafari, interessado na história.

─ Sim. É uma parte da história que me conflita, pois nenhum dos livros vermelhos do evangelho da Cruz-espada conta o acontecido. Os anjos ergueram uma prisão solitária no alto das nuvens, lugar que somente pessoas dignas eram capazes de enxergar. Por muito tempo, Fectos, que aceitou sua penitência, flutuou acima dos reinos, pois os anjos impediram sua liberdade, mas não a dignidade de saber o que estava acontecendo no mundo em que ele ajudara a forjar.

─ Uma prisão no céu? ─ questionou-se Lady Lisbeth.

─ A prisão que um dia flutuou no céu de Azran, mas que há muito caíra, junto com os anjos. Milhares de seres angelicais foram derrotados e suas essências fadadas ao esquecimento, então, houve uma época em que Splendor, o deus do heroísmo, arriscou tudo e dedicou sua própria existência à criação dos mais perfeitos receptáculos de seus agentes. Estes seres foram chamados de mártires consagrados e essa é uma história que deveria ter sido longa, não fosse o sucesso obtido pelos barões das hordas trôpegas que levou Saulot à uma vitória temporária.

─ Só me diz uma coisa: essa é a tal história resumida? ─ questionou Jafari ainda tentando enlaçar cada acontecimento descrito pelo discurso de Aensell.

─ Este é um resumo bem focado, na verdade. Não lhes contei peças fundamentais do estratagema como foi o quase-fim de Marduk, a queda definitiva de Splendor, a fundação da igreja dos Anjos de pedra e a decadência da Cruz-espada, assim como não resgatei uma parte importante que se pode falar sobre as distantes e inundadas Ilhas de Maldûn, a morte da deusa Amaryllis e, por fim, a prisão de Saulot e Fectos na garganta de Astaroth.

─ Ah... ─ convenceu-se Jafari.

─ Enfim ─ intrometeu-se Lisbeth ─ uma história complexa, mas em que parte ela se une a esta jornada?

─ Agora, minha impaciente rainha. Agora...

            Em frente ao trio, o horizonte era formado de rochas desordenadas que mais se pareciam com ruínas do que com montanhas.

 

 

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