Aconteceu em dez anos, no reino de Azran - Parte 05 - As vigílias élficas

A vigília élfica

            Nas bordas de Azran, fronteira com o reino de Shantae, a Inquisição ergueu a cordilheira de montanhas e a vasta floresta que dividiu o reino das planícies eternas das terras do leste sobrando apenas uma diminuta quantidade de estreitos e clareiras que permitiam os viajantes certos trafegarem para o restante do reinado. Os elfos colocaram as cartas na mesa e ameaçaram os humanos, a raça que supostamente foi a causadora de todos os males das eras passadas. É claro que, acostumados com o dom da liberdade e rebeldia, a maioria dos inconformistas humanos enxergou aquele estado de quarentena racial como uma afronta à história da raça que, apesar de tudo, foi a responsável por erguer o reinado e o transformou na peça única que ele é atualmente, não deixando de lado, obviamente, que todas as raças, inclusive as divinas, já haviam cometido erros (talvez, piores).

Enquanto o tratado élfico era assinado, o poder político dos reinos humanos se reunia e engajava em estratagemas que pudessem dar um fim na supremacia dos elfos. Enquanto que metade dos elfos, especialmente aqueles que optaram por se mudar do lar de outrora (a encantada floresta de Ellidoränne, onde o coração da deusa foi enterrado para dar vida a uma vasta e sagrada mata incorruptível), para o reino militar de Shantae, cuja sede era também a segunda maior prisão do mundo (esta é a Masmorra de Andaluz, que só perdia em grandeza para Dragomancchia, a prisão dos dragões, na Espinha do Mundo). Bem se pode imaginar que esses elfos, agora em convivência com a realidade política do restante do mundo, desenvolveram rapidamente um senso crítico capaz de determinar o que o mundo precisa para se renovar.

            Agora, você deve entender, meu caro leitor, que Sapphire, a de alcunha chama azul, nunca se posicionou firmemente em nenhum dos lados. Ela ainda mantinha uma rejeição nada sutil para com os humanos, embora este sentimento aos poucos se camuflava diante a quantidade de aventuras que ela compartilhara com os membros desta raça, isso sem comentar no vínculo quase materno criado com um garoto o qual ela salvara em tempos onde a vigília élfica não era seu ofício. Em contrapartida, de forma pouco questionadora, a elfa abraçava a lei dos elfos aceitando títulos que ao ver de muitos (e para a cruel dúvida da própria) destinava a filha da chama azul à proteção e sobrevivência da raça.

            Estou aqui para contar a história que ocorreu um ano após a queda de Janine e, portanto, também a época em que a imposição do poder da rainha Lisbeth se tornou tão firme que era inevitável a comparação com o governo de seu pai (Lorde Irun). O que faria a filha de um rei que lutou pelos povos livres numa época em que essa decisão representava um risco?

Sapphire havia sido alertada três noites antes por Aensell. Lembre-se, meu caro leitor, que o céu noturno desde então foi descrito como o mais estrelado de todos os tempos e isso, sem sombra de dúvida, acompanhava os feitos do garoto que visitou as estrelas.

─ O céu cairá sobre os elfos, Sapphire. Essa luta não é sua e não haverá destinos os quais você saia vitoriosa. Você é importante para mim e, por isso, lhe alerto com tempo suficiente para que retorne ao lar que é âmago de sua raça. Retorne para Ellidoränne e viva em paz. Haverá amor e descomprometimento com seu dever para onde você deve ir, mas se ficar, haverá derrota e morte não só para si, mas para aqueles que a ajudarem – argumentou Aensell na noite da visita.

            Sapphire, então, retrucou:

 Desde quando a vidência dos humanos é superior à dos elfos, Aensell? Você também é alguém importante para mim, mas seus argumentos, embora reconheça que criados para amenizar o mal que possa me acontecer, também esconde a via dupla de um destino que nem a sua teoria pode prever. Você tem seu conhecimento das estrelas, eu tenho a história da minha família. Sou a chama azul e isso me vale a esperança. O que me propõe é uma fuga? Eu não recusaria uma retirada estratégica não fosse o laço que desenvolvi com a chama azul. Eu sei que se eu for, perderei para sempre esse contato, portanto, não o farei.

            E como dois amigos que já sabem que não importa a escolha das palavras, nada mudará a sina dos resultados, Aensell despediu-se e Sapphire aguardou as próximas noites.

Numa destas, ajoelhada na fronte da vigília élfica, Sapphire notou uma figura única se aproximando trôpega, vinda das terras próximas do oeste, da direção do Farol, um humanoide pálido, presente do templo de Velaska à rainha Lisbeth. Sapphire, com seus olhos de elfo, reconheceu o martelo azulado com cristais nas extremidades, pulsando menos vivo do que ela tinha visto quando o mesmo estava junto de seu primeiro portador. Em seguida, reconheceu o orc que certa vez nomeara de Karsize.

            A patrulha de elfos protetores avançou contra a criatura zumbificada, flechas foram disparadas, magias conjuradas e canções entoadas de forma nada efetiva. Os elfos, escolhidos a dedo devido a importância do status que era a vigília élfica, cobriram suas vestimentas e armas com a magia de Gaiëha. Aredhel e Callen, os irmãos do vendaval, rodopiaram como redemoinhos, suas espadas banhadas pela alta magia, mas a morte-vida inédita e recém criada pelos sacerdotes de Velaska mostrou-se superior. Era magia criada para profanar outras magias.

A cena que não descrevo a seguir é a mais horrenda. Começando pelos gritos de sofrimento até o momento em que Callen vê seu irmão ser partido ao meio depois de ser agarrado por Karsize. Callen era pisoteado e suas órbitas buscavam o caminho para fora do crânio quando Sapphire, mergulhada nas bênçãos da chama, descera a vigília élfica.

─ Eu lhe reconheço, Karsize, guerreiro morto! Sou sua última desafiante!

            Os olhos de Karsize sangravam na noite, brilhavam num vermelho vivo e enfurecido. Ele recolhe o martelo que antes pertencera à Adhraim e ruge. A floresta ao redor dele se encolhe, vítima de um medo sobrenatural. A espinha de Sapphire congela e ela tenta se recompor agarrando firme suas lâminas. Agora era a hora...

O orc enfurecido investe contra a chama azul e a golpeia com Sophie, válida menção do nome da arma. A elfa é arremessada metros adiante, tão rápida é sua queda que ela não nota o estalar do osso de seu braço direito. Sem fôlego, ela mal consegue se levantar. Agarra firme o braço partido e implora as bênçãos da chama azul para que a carne e o osso se recomponham. A visão turva impede que ela preveja o próximo ataque que lhe acerta forte nas costelas. Ela voa metros acima e cai como uma pedra no chão. Seus olhos vertem lágrimas. Ela consegue sentir seu corpo estilhaçado. Três costelas, um braço e, logo notaria, a perna esquerda que adquiria rapidamente o volume de um inchaço.

Sapphire recolhe de um dos bolsos uma poção capaz de regenerar seus ferimentos, destampa e deixa verter o líquido entre os lábios, engasgando vez ou outra por causa da falta de ar. Karsize aparece e a pisoteia três vezes, resultando em mais costelas partidas e perfurações internas mortais. A elfa gane de dor quando Karsize a segura pelos cabelos e começa a puxar sua cabeça, como quem arranca uma erva daninha. A vigília élfica age e uma perna monumental de mármore chuta Karsize metros distante.

A chama azul se arrasta vagarosamente em direção à floresta próxima, o terror estampado no rosto e o coração fraco insistindo em batimentos fortes. Sapphire encontra um lugar para se esconder e tateia suas vestimentas em busca de outra poção. Encontra duas e as bebe revitalizando o corpo. Ela se ergue e ainda sente costelas quebradas, mas pelo menos, embora com muita dor, é capaz de ficar de pé e manejar suas espadas. Ela observa a vigília élfica pisotear Karsize enquanto se recompõe.

A surpreendente força do orc mostra-se sobrenatural, pois nenhum ser vivo (ou morto) de tamanho tão diminuto, resistiria à estátua guerreira criada pelos elfos. Sapphire se questiona quantas almas haviam sido gastas forjando aquilo. Karsize ergue o pé da vigília élfica e após rugir um estrondo poderoso, tomba a construção em direção à floresta.

Sapphire evade os destroços que se espalham quando a estátua enfim desaba. Uma cortina de poeira se forma, levanta-se até bem alto no céu. A chama azul precisa de muito mais do que um esconderijo. Karsize consegue farejá-la e ela logo percebe isso.

A névoa se espalha até finalmente encerrar e o que vemos, agora, é a chama azul encarando novamente o orc que enfim conseguiu farejá-la. Karsize ruge, Sapphire corre na direção mais adentro da floresta. Durante o caminho, árvores são arrancadas pelo orc, pois estas atrapalham sua passagem, a elfa, entretanto, acostumada à ambientes florestais, patina pelos arvoredos como se estes fossem um bosque, ganhando alguns metros de vantagem.

Assim a perseguição se estende até que Karsize afunda o pé numa poça. O cheiro da umidade invade seu nariz e confunde seus sentidos. Ali, em meio à floresta que cerca a vigília élfica, um pântano se desenvolvera graças aos pedidos de Sapphire à Melanias. Melanias, um dos guardiões da vigília élfica é também sumo-sacerdote de Laurë, a yeshua da água. O elfo prometera uma fonte límpida e saudável para ser lugar de descanso para Sapphire, mas a chama azul preferiu algo que remetesse a uma de suas missões: um pântano. Um fétido, escuro e macabro pântano que muito se assemelha às terras inóspitas de Xea’thoul, onde ela supõe que sua família possa ter alguma ligação. Sapphire sempre desejou estar bem preparada, por isso, garantiu essa arena só pra ela. Agora, o lugar era mais do que apropriado.

Tudo que ela precisava era de paciência e sabedoria para reconhecer o momento certo. Pediu as bênçãos da chama azul e cobriu seu corpo com uma magia de proteção contra o mal. Recolheu-se entre as raízes de uma árvore e bebeu uma última poção, algum que dera aos seus olhos a aparência de um gato. Rogou pelas bênçãos de Gaiëha e vestiu sua arma com fogo azulado, tornando-as visivelmente mais atrozes, porém magicamente tão leves quanto a versão comum.

            Karsize não conseguia ser furtivo. Havia sempre o profundo ar que exalava de seu pulmão decadente e o rosnar de criatura furiosa. Enquanto ele se ocupava em tentar farejar a elfa, ela mergulhava na lama e rastejava como uma serpente até os calcanhares do orc zumbificado. No momento certo, ergueu-se vagarosamente atrás de Karsize, abraçou-o com o par de lâminas gêmeas e rasgou seu peito num profundo e doloroso corte em X, em seguida, aproveitando-se da surpresa, fendeu as costas do inimigo de uma forma que as costelas ficaram momentaneamente expostas. O orc, então se vira, pronto para golpear furiosamente Sapphire, porém, muito mais rápida na iniciativa, a chama azul enterrou a primeira lâmina no joelho de Karsize, a segunda no flanco do peito direito, depois chutou o corpo do inimigo, arrancando as duas espadas num corte avassalador, fazendo-o titubear e escorregar no chão enlameado.

            O orc se levanta urrando, afogado com água podre na garganta, mas ainda assim acaba acertando Sapphire que tentava se afastar da luta. Ela é arremessada para o alto, mas consegue agarrar-se num galho alto agindo acrobaticamente. Karsize desfere seus próximos golpes na árvore, mas Sapphire se desloca por entre os galhos com fluidez e destreza até que mergulha novamente no pântano e se perde da vista do orc. Ele urra enfurecido.

Sapphire consegue uma distância segura e analisa seus pertences em busca de algo mais, mas não encontra. Ela toca no próprio busto analisando o recente ferimento. Karsize não havia sido tão preciso dessa vez, embora tivesse sido uma martelada suficiente para fazer perder o fôlego, o estrago havia sido muito menor. A chama azul notou que aquela seria a sua estratégia, mas também sabia que dependeria muito da sorte.

Como uma víbora, escondeu-se e deu o bote mais duas vezes. Rasgou a carne do inimigo, o sangue brotou como um riacho violento, depois evadiu do ataque e se escondeu para, posteriormente, surpreender Karsize mais uma vez, mutilando seu calcanhar e dilacerando seu pescoço.

Numa terceira investida, o orc reagiu e conseguiu atingir Sapphire com o martelo de Adhraim. O golpe titânico fez Sapphire ser empurrada em direção a uma árvore e atordoar. Sua visão ficou embaçada, então, ela sentiu o pescoço ser facilmente envolvido pelas mãos do inimigo. A elfa foi erguida, suas pernas e braços enfraqueceram, suas lâminas caíram na água suja. Karsize a socou no estômago, e ela sentiu a dor de sua coluna ser fatalmente partida. Era o fim...

            Três flechas cravaram na cabeça de Karsize. A dor fez ele largar Sapphire e arremessá-la para longe. De um esconderijo, o arqueiro se mostrou. Era Adam, o filho de Castelo Cinzento. Karsize salta enraivecido na direção da árvore do inimigo e a golpeia com poder. O filho do guardião salta para uma segunda e, depois terceira árvore. Arma-se com mais duas flechas e, num único disparo, crava uma no olho do orc e outra pouco abaixo do pescoço.

Mais oito flechas seriam disparadas, todas acertando o inimigo e cravando profundamente na carne. O orc começava a cair, o adversário notou o cansaço e preparou o disparo fatal, então, foi surpreendido, pois, Karsize arremessou o martelo Sophie em sua direção, acertando-o em cheio!

A pancada trovejante foi o suficiente para desacordar Adam. Ele caiu no pântano e seu corpo boiou como um tronco de madeira. Karsize aproximou-se pronto para dar fim a mais um adversário, então, sentiu ser agarrado pelas costas. Uma espada curta foi cravada em seu queixo e brilhou intensamente com energia azulada.

Era Sapphire, movida pela vontade. Seus movimentos estavam sendo orientados por um espectro azul incandescente, uma armadura de aparência élfica e feições que lembravam a de um guerreiro. Seus membros, músculos e ossos, não eram necessários para aquela vitória, a chama azul agora era um espírito. A chama azul agora era o espectro do progenitor da família.

Sapphire largou Karsize. O orc agarrou-se à espada curta cravada em seu rosto tentando arrancá-la desesperadamente. Fogo azul brotava da lâmina, consumindo os olhos do orc, queimando a pele e a alma, então, finalmente ele conseguiu livrar-se do sofrimento. Sapphire mantinha-se de pé diante do orc cego, mas sua aparência agora era adornada por um espectro, também azulado, porém vestido por um manto esvoaçante e ígneo. Era a mãe. A elfa, então, soprou, e as chamas azuis consumiram Karsize até que não lhe sobrassem sequer as cinzas.

            Em seguida, Sapphire caiu. Adam, com dificuldades, ergueu-se, atônito após tanto vislumbre. Recolheu o martelo de Adhraim, ajoelhou-se diante Sapphire, analisou seus ferimentos e derramou nos lábios da elfa uma das poções criadas por sua mãe, Ada. Ouviu ao longe o barulho dos tombamentos das demais estátuas de vigília élfica e o tremor que se estendeu quando estas caíram. A barreira imposta pelos elfos, na fronteira de Azran com Shantae, havia sido posta abaixo.

Postar um comentário

0 Comentários

Close Menu