Aconteceu em dez anos, no reino de Azran - Parte 04 - Queda

 

Janine, mãe de Lisbeth

            Era um processo ritualístico. Lady Janine vestia sua máscara de porcelana dourada e incorporava os espíritos dos mensageiros no Salão dos Grandes Místicos, uma câmara ampla, redonda, cercada de sigilos arcanos desenhados em cada métrica da parede, chão e teto, que a própria mãe da rainha exigira a construção. Ela levou uma ânfora com benzeduras celestiais que todos acreditavam conter as cinzas de Lorde Irun, embora ninguém soubesse como ela fizera para encontrar seus restos depois que o cavaleiro perfurou o coração negro da Mortalha e se perdeu dentro dele, mas ela era uma bruxa e, todos acreditavam, das mais poderosas. O que falar de uma arcana que, até então, sacrificara sua vida em prol a proteger sua filha e aprender sobre o lado obscuro da magia?

Entretanto, não era isso que a ânfora continha.

Todas as noites, sem falta, havia essa cerimônia da eterna despedida entre Janine e Irun para mascarar suas reais motivações, para esconder o ódio que, no final das contas, enraizara no coração de Janine para com o marido. De verdade, ela considerava a morte do antigo amante como peça fundamental para um grande plano, além de um facilitador óbvio para suas manipulações, afinal de contas, Lorde Irun era tido como incorruptível e sequer partilhava do mesmo destino de morte na guerra que os verdadeiros governantes de Azran foram amaldiçoados.

Ela destampa a ânfora e derrama sobre a palma da mão um pó luminoso somente diante a escuridão do salão. Por trás da máscara de porcelana ela fecha os olhos e prossegue com o rito cerimonial que na verdade é uma poderosa conjuração arcana. Suas palavras são acompanhadas pelo alvorecer de alguns sigilos espalhados pela câmara e estes entonam sons graves, como os de um grupo de monges entoando um cântico sânscrito. Por fim, ela sopra o conteúdo da mão e ele se espalha, formando uma nuvem quase invisível que se encaminha até as frestas de saída do salão e viaja pelos corredores do Farol, a capital de Azran.

A névoa encontra sua primeira vítima, um guarda da capital. Ela paira sobre este, alvejando seus olhos e em poucos segundos o mesmo desaba num sono profundo. A magia faz o mesmo no segundo, terceiro e assim por diante. Enfim, chega ao quarto de Lady Lisbeth e derrama sobre ela o sono dos exaustos, depois se dissipa.

Quase uma hora depois, Janine está pronta para sair de seu refúgio e caminha até a torre mais alta, não deixando de notar que o céu está especialmente estrelado hoje. O ponto mais alto do Farol é conhecido como a ponte que vai ao céu, o mesmo nome dado à construção similar que existia em Brastav antes desta ser devorada pelos Bosques Rubros. Era um poleiro, uma imitação perfeccionista de onde Lorde Irun aguardava Queen, a águia gigante, rainha dos ventos, para seu passeio matinal ou para a primeira investida em direção a guerra. Ali, entretanto, Janine estava em busca de outra presença.

─ Exponha-se, sombra! – ela comanda.

            O vulto de um guerreiro soturno aos poucos dá contorno à uma figura conhecida. É Azanthe, sombra de Citadel. Ele se aproxima de Janine em silêncio.

─ O que está esperando, traidor? Esqueceu-se de ajoelhar perante a governanta?

            Sem questionar, Azanthe se curva e permanece de cabeça baixa num gesto de servidão. Janine toca em sua cabeça e a afaga num falso gesto de humildade:

─ Há ainda muito que você deve fazer para apagar essa mácula, cavaleiro da Ordem do Arco. Agradeça ao fato de que suas ordens lhe encaminharam à redenção, pois de alguma forma você ajuda o reino o qual você traiu.

            Azanthe permaneceu calado, como de costume. Janine tirou um papiro de suas vestes e o entregou ao suposto traidor:

─ Estas são as anotações da última semana. Avisa ao teu senhor que sofremos uma possível derrota estratégica, diga-lhe que a Cruz-espada ganhou forças por causa do sucesso e teimosia de minha filha, mas saliente que ainda temos a religião de Velaska sob controle e que o suposto conselheiro de Lisbeth foi capturado e morto, de agora em diante ela ouvirá os conselhos de alguém especialmente indicado por mim. Diga-lhe que apesar de tudo, as chances de vitória se multiplicaram.

            Azanthe recolheu o papiro e assentiu ao comando. Antes de partir notou que alguém se aproximava. Ele reconheceu a figura, mas, por algum propósito maior resolveu ignorar sua aparição e tornou-se uno com a escuridão para, enfim, partir.

─ Mãe? – a presença flagrante sussurra.

            Janine, ainda de costas, se assusta. Ela se recompõe e dá meia volta afim de encarar sua filha. A máscara ajudaria a camuflar suas emoções.

─ Lisbeth, querida? O que faz a esta hora fora da cama? Não sabe que precisa descansar? São recomendações minhas, você perdeu muita energia na última guerra.

─ O que a senhora está fazendo? ─ Lady Lisbeth leva a mão à cabeça, um gesto de quem tenta aliviar pelo menos minimamente a dor.

─ Eu vim contemplar as estrelas, querida. Nada melhor do que fazer isto diante o memorial do teu pai.

─ Aqui não é Brastav, mãe... ─ Lisbeth parece um pouco atordoada.

─ Mas o céu é o mesmo, filha. Você já notou o quanto ele está especialmente estrelado hoje?

─ Sim, mãe... eu notei ─ Lisbeth se aproxima aos tropeços.

─ Você não está bem. Vamos, eu te ajudo a voltar à sua cama...

            Janine tenta tocar em Lisbeth, mas a rainha dispensa a ajuda.

─ On-onde estão as cinzas de meu pai, mãe?

            Janine era esperta o suficiente para perceber que a filha começara a desconfiar de muita coisa. Sabia que alguém havia incutido a dúvida na cabeça de Lisbeth, mas quem? Não tinha tempo para pensar nisso agora, Janine precisava encontrar uma forma de contornar isso pra sempre.

─ Você me pegou em flagrante, filha ─ por dentro da máscara, lágrimas falsas rolaram e encontraram uma saída pelas fissuras ─ sua vitória a alguns dias foi muito importante. Você, com certeza, é a rainha que seu pai queria que fosse. Eu preciso focar em você, minha filha, não posso perder tempo com lamentações, por isso, esta noite, livrei-me das cinzas de teu pai.

─ C-c-como? – lágrimas de verdade começaram a brotar tímidas dos olhos de Lisbeth.

─ Eu as joguei ao vento. Elas se dispersaram pela noite, para nunca mais serem encontradas. Minha filha, eu sinto muito, deveria ter lhe avisado antes. Fui impulsiva...

            Lady Lisbeth encolheu-se de dor, então, revelou a espada que empunhara até li. Ela brilhava fracamente.

─ Sabe o nome dessa espada, mãe?

─ Quem não a conheceria, Lisbeth? É Vittoria, a lâmina de Santo Fectos ─ respondeu Janine, assustada, recuando um passo ─ mas porque você a trouxe aqui? Porque pergunta isso à sua mãe?

─ Você a conhece apenas superficialmente, mãe. Ela tem muitos poderes, os poderes dignos para uma rainha de verdade. Sabe, mãe, eu ando aprendendo muito sobre essa espada, mas recentemente me ensinaram muito sobre suas habilidades e as considero quase infinitas. Esse brilho tênue, por exemplo, significa que todos os presentes aqui estão sob os efeitos de uma zona da verdade.

─ ... ─ Janine percebeu que estava sendo acuada, recuou mais um passo ─ ...ah, minha filha, existem tantas formas de se ludibriar esse tipo de magia. A vontade de um mago é poderosa e...

─ A vontade de um mago não supera a de um deus, mãe. Vittoria foi forjada por um deus.

─ Eu...eu entendo, querida, mas em que ponto você deseja chegar?

            Vittoria brilhou mais intensamente.

─ Eu ouvi você compactuando com um traidor, exigindo sua submissão. É isto o que traidores devem fazer? Se submeter aos seus governantes?

─ Minha filha, eu não sei do que você está falando...

            Vittoria brilhou tenuamente.

─ Devo exigir que a senhora se submeta a mim?

            Janine recuou mais um passo e se arrependeu por não ter colocado em seu repertório arcano alguma magia para fuga, ou ao menos a capacidade de voar.

─ O que você quer de mim, Lisbeth? – exigiu Janine.

─ EU QUERO A VERDADE, MÃE!

            Uma forte pressão sobrenatural empurrou Janine um passo para trás e sua máscara de porcelana trincou de uma extremidade à outra, desmontou-se de sua face e uma ventania repentina e bruta a surrupiou.

─ Acalme-se, Lisbeth. Alguém pode nos escutar. Não é saudável que as brigas familiares da realeza sejam ouvidas pelos seus servos.

─ Ninguém ouvirá nada, Janine. Você cuidou disso.

            Janine olhou para o abismo abaixo dela e enxergou um anel de fogos fantasmagóricos de cores azuladas.

─ O que é aquilo? – Janine questionou horrorizada.

─ São sacerdotes de Velaska, mãe – Lisbeth respondeu em tom mais calmo ─ eles estão sabendo de muita coisa e você se engana se pensa que eles estão sob seu controle. Você é indigna, mãe, agora eu sei porque meu pai nunca a amou.

            A mãe da rainha percebeu que estava sendo observada a muito tempo. O terror alastrou-se por sua face e ela permaneceu trêmula, perdeu o controle de si mesma e gritou:

─ VOCÊ QUER SABER A VERDADE, LISBETH? EU LHE DIREI A VERDADE!

            O céu estrelado brilhou intensamente, ao longe eles mais pareciam com as muitas órbitas de uma criatura muito distante.

─ VOCÊ NÃO É FILHA DE LORDE IRUN! NÓS NUNCA CONSUMAMOS UM ATO SEQUER! O MALDITO JUROU ETERNIDADE À SUA PRIMEIRA AMADA! EU AGUENTEI ESSA HUMILHAÇÃO DURANTE MUITO TEMPO ANTES DE FUGIR COM VOCÊ!!!

            O rosto de Lisbeth se transformou. Agora a agonia tomava conta de seu semblante.

─ Esta é a verdade, minha filha – Janine se recompõe enquanto Lisbeth cede a firmeza em Vittoria ─ você não é filha de Lorde Irun, eu sinto muito ter guardado isso durante tanto tempo, mas era preciso.

            Atônita, as lágrimas de Lisbeth escorrem copiosamente. Ela cai de joelhos enquanto perde as forças para o sofrimento.

─ ...mas não se preocupe, minha filha. Você ainda é a destinada. Você ainda é filha de um rei! ─ Janine lentamente se aproxima de Lisbeth, como um adestrador tentando acalmar seu animal ─ Você é mais do que isso, Lisbeth! Você é filha de um imperador!

            Lisbeth arregalou os olhos cheios de lágrimas, como se tivesse sido atingida por uma espada no peito e soubesse que aqueles seriam seus últimos segundos de vida. Sua jornada até ali passava velozmente diante suas órbitas.

─ É para isto que estamos aqui, filha. Escuta a sua mãe! Seja forte! Estamos cercando o reinado, nós, os Daegonheart vamos tomar tudo! Você tem sangue de dragão nas veias, não há o que temer, pois nasceu para reinar!

            O cenho de Lisbeth mudou completamente. Havia agora a rigidez dos decididos. Ela firmou Vittoria nos punhos e cravou a lâmina no alicerce da ponte para o céu. O granito rompeu imediatamente e começou a ceder.

─ Me desculpa, mãe... sobre o que a senhora estava falando mesmo? Por um momento perdi a atenção, sabe, estou com muita dor de cabeça...

            Janine, a mãe da rainha de Azran caiu no abismo que se estendia a frente do Farol diretamente para os braços dos sacerdotes de Velaska. Ali, no ponto da queda, como se premeditado, o chão também cedeu e abriu passagem para um inferno de chamas lúgubres. Os seguidores de Velaska entoavam o cântico de encontro com a deusa do sofrimento e ao redor de tudo centenas de mariposas alçaram voo.

***

    Ao longe, o menino Aensell assistia à tudo e não pôde deixar de notar que as histórias de alguma forma fazem parte de um ciclo tortuoso, tal qual uma espiral do destino da Teoria do Acaso. Há muitos anos atrás, Aensell havia perdido seu mentor, Sigmund Fawkes, de maneira muito similar, caindo do alto de um reino, pouco antes deste ruir...

 

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