Anos de desaparecimento e um longo período dado como morto permitiram que Ithias chegasse no lugar onde agora ele contempla o que os historiadores chamam de limites do mundo. Um paredão colossal de pedras disformes cuja antiga magia dos gigantes permanece adormecida a muito tempo, mesmo antes dos humanos imaginarem serem capazes de conquistar qualquer coisa. Não há nada para ver ali além de contemplar o fim da jornada ou o risco de se deparar com as entidades esquecidas (deidades que as tribos bárbaras de Chattur’gah acreditavam existir e o resto do mundo, não). Ali, no meio do nada e desacompanhado, o velho mago abandona seu cajado de oliveira num canto e começa o processo exótico que é um extenso ritual de magia.
Primeiramente ele nubla o céu para que os deuses do outro mundo não o observem diretamente, em seguida, a partir de um cubo mágico de cores desordenadas, convoca a pedra e a terra a ser erguerem. A cada giro do objeto uma nova estrutura feita de blocos pesados de alvenaria é montada com a ajuda de uma poderosa força arcana capaz de empilhar pedra sobre pedra até que uma versão malfeita do cubo alcance a dimensão de seis metros.
Ithias retira de sua bolsa de componentes a réplica diminuta de um baú, coloca ela no chão, se afasta três passos e balbucia o encantamento que faz com que o objeto se torne grande como um grimório antigo e repleto de magias. Então se aproxima e com o estalar de dedos faz o baú se abrir para tirar de lá uma chave de bronze com três opalas incrustadas numa extremidade. A chave parece ter sido fabricada para abrir a porta da casa de um gigante.
Ele leva a chave até o cubo mágico gigante e através de outro truque arcano a aproxima de um bloco de alvenaria aleatório fazendo que se forme uma fechadura adequada parao item. Estando ali, enfiada magicamente, o mago gira a peça e as pedras se afastam formando uma entrada retangular bastante retilínea.
Lá dentro está escuro. Ithias tira seu chapéu e o pendura perto da entrada, então uma dezena de pequenas fagulhas se acendem no interior do refúgio, são velas em candelabros, e a luz revela uma biblioteca imensa repleta de livros, várias estantes, uma mesa e quatro cadeiras feitas da madeira de uma nogueira. O cheiro de conhecimento misturado a um pouco de bolor permeia o ar.
O mago então encontra-se agora no meio de sua biblioteca ambulante, ergue suas mãos como se fosse um maestro e em movimentos delicados, como folhas sendo lançadas ao vento, uma brisa repentina varre a poeira. Ele, enfim, conjura uma nova magia cujo componente somático consiste em golpear três vezes uma mão fechada na outra mão que está com a palma aberta. Ithias se exercita, se alonga, respira três vezes profundamente parecendo que vai correr uma maratona, mas ao invés disso caminha até quatro pedras grandes que estavam parcialmente obstruídas no final da biblioteca.
Ele começa erguendo uma do tamanho de uma mesa, com a facilidade que uma formiga carrega uma folha. É uma pedra muito antiga a julgar pelas suas condições. O velho mago a carrega para fora da biblioteca e a deposita alguns metros distante do limite do mundo e faz o mesmo com as demais posicionando-as estrategicamente em pontos cardiais. Ele cria seu próprio círculo de mênires, como os druidas da Floresta dos Mil Sussurros fazem.
Em voz alta, Ithias começa um cântico e o céu o acompanha com trovões que logo se transformam numa chuva leve. Com as vestimentas e a longa barba encharcadas ele, enfim, diz:
─ Nas noites de números alternados, espalhadas pelos confins do mundo, caíram as últimas pedras que outrora deveriam acompanhar os seres angélicos. Por causa da derrota do deus justo forço este acontecimento cabalístico, diante do limite do mundo, sem o apelo ao conhecimento dos primeiros que aqui habitaram, convoco a consciência de alguma força primal, mesmo não reconhecendo seu nome, para propor uma barganha.
O som dos trovões passou a ser mero plano de fundo quando as pedras da imensa muralha começaram a se mexer desordenadamente, movimentando-se como se fechassem entre si, formando um invólucro, tornando a suposta montanha de rochas soltas uma única construção formada de placas tectônicas com direito a um intenso calor transpirando por suas fissuras. As pedras começaram a agir como uma imensa onda, chocando umas nas outras num movimento serpenteante. De fato, agora as rochas mais pareciam um conjunto perfeccionista de escamas pétreas que circundaram o velho mago ameaçadoramente.
Ithias, então, entendeu que estava diante da mítica serpente de pedra, um dos limites do mundo. A voz trovejante da criatura ressoou seguida do desabar de uma avalanche de rochas:
─ onde está? Porque não o encontro!?
O mago permaneceu perplexo diante a grandiosidade do ser.
─ ahh! Aí está você. Um pequeno grão de poeira...
Ithias armou-se novamente de seu cajado de oliveira e num movimento rápido fez surgir da manga de sua vestimenta uma torrente de água forte o suficiente para contra-atacar uma chuva de rochas que caía insistente em cima dele por causa do mero movimento da serpente de pedra.
─ o que algo tão insignificante como você poderia oferecer?
Ithias recompôs-se:
─ Eu lhe trago a derrota do corruptor! – gritou, pois, sua voz precisava sobrepujar os fortes estrondos vindos de todos os lugares.
─ o corruptor é uma semente infinita, mísera criatura! Ele existe para renascer! nem eu, nem os outros, podemos mudar o que foi criado para ser assim!
─ Digo-lhes, serpente de pedra, que lhe trago a derrota definitiva do corruptor, não a sua morte!
A serpente de pedra parou de se movimentar e, em instantes, o próprio céu parou de responder. Sua face medonha desceu sobre Ithias projetando a mais extensa sombra que ele já vira.
─ explique-me, raça falível!
─ Eu lhe prometo o controle sobre o corruptor, assim como a restituição das terras que pertenciam ao seu irmão!
─ blasfemador! Como pode garantir isso?
─ Nem o bem, nem o mal será feito, assim como as almas de Chattur’gah decidiram desde os tempos remotos. Há uma brecha! Eu posso explicar a você, apenas pare de tentar me intimidar!
A serpente de pedra recostou-se na terra úmida, encharcada da chuva que enfim cessara. Sua boca imensa, então, se abre e sua respiração vagarosamente se torna menos trovejante.
─ Você despertou meu interesse, humano. Está convidado a entrar.
De dentro da boca da serpente de pedra uma figura humanoide, trajando a máscara mais rústica se apresentara.
─ Convenhamos, Chattur’gah já sangrou durante muito tempo...
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