Havia uma joia incrustada no pomo da espada de Heimheart, uma gema translúcida como diamante refinado, e dela incidia uma luminosidade prateada com a intensidade de uma dezena de tochas. Adentro da floresta de Chattur’gah, na escuridão reservada aos limites do continente (poucos acres distantes das ruínas dos antigos gigantes) era a luz que transbordava da arma do arconte guardião que servia de guia para os olhos do celestial e de Ithias, o velho mago responsável por invoca-lo.
─ Quantos passos daremos a mais antes do inevitável encontro? – rosnou Heimheart impaciente.
No gume de sua espada ainda escorria o sangue do último combate. Ithias sussurrava palavras ininteligíveis enquanto dava seu melhor para desviar-se dos galhos e raízes que contornavam a dupla como milhares de serpentes prontas para dar o bote. O velho mago mancava devido ao ferimento que tinha na perna esquerda, quatro rasgões profundos que o tornavam mais fácil de ser farejado.
─ Paciência, guardião – Ithias falou com convicção, esta frase soando mais como uma ordem do que conselho.
─ Você deve saber mais do que eu que as hidras ferais regeneram seus ferimentos com muita velocidade. Ela estará curada logo, enquanto nós ficamos mais cansados a cada passo.
─ Você devia ter mais fé em um mago, guardião.
─ Eu teria mais caso não estivesse andando com um que carrega a alcunha de “aquele que já morreu inúmeras vezes”.
Ithias riu, pois conhecia aquela alcunha. Imediatamente reconheceu que as muitas peças de ouro que havia pagado a Javert valeram a pena. “As histórias ultrapassaram a barreira do plano material e alcançaram o celestial, então a alcunha já devia ser um fato para os magos da Ordem Arcana de Mordae”, o velho mago pensou e regozijou-se com a ideia de ser um mago capaz de transcender a morte (mesmo que isso fosse, é claro, uma mentira).
O velho mago cravou seu cajado de oliveira no chão, endireitou seu chapéu azul escuro e pontudo na cabeça e conjurou o último truque no ombro de Heimheart:
─ Sua espada o guiará – ele disse.
O arconte guardião rosnou de contentamento e virou-se para a escuridão fazendo a luz de sua lâmina relampejar:
─ Consigo ver os seus inúmeros olhos, fera imunda! Não se contenha! Venha tentar garantir sua janta!
Logo, da escuridão profunda que Chattur’gah proporciona aos seus andarilhos por ocultar qualquer luz atrás das folhagens mais densas do mundo, um urro desolador ressoou vindo da criatura que a muito espreitava a dupla. Sua cauda serpenteou ágil, estalando como um chicote na terra, e da espinha dorsal, acompanhando o movimento ouriçado, saltaram as lanças ósseas típicas dos animais atrozes. A coisa saltou no chão diante Heimheart e suas patas dianteiras, acostumadas à furtividade, abafaram o barulho estrondoso que deveria ressoar de uma criatura daquele tamanho ao desabar no solo, as garras em instantes desenraizaram-se da pata como foices afiadas. Havia uma dezena de faces incrustadas na pelagem grossa e resistente da criatura, em cada rosto salivava, sedentas por sangue, as bocarras repletas de presas como as de um tigre pré-histórico. A criatura conhecida como hidra feral, logo, salta sobre a dupla.
─ Petrus imncolum postus!
Ithias agitou os braços num movimento brusco e ao erguer uma das mãos abertas, um punhado de destroços pétreos de uma antiga ruína escorreram pelos seus dedos, então, uma pedra gigantesca na forma de uma mão gigante instantaneamente levantou-se do solo lotado de raízes e interpôs a passagem entre a hidra feral e Heimheart. O baque da criatura foi tamanho que, atordoada, todo o seu corpanzil desabou como resposta à dor intensa.
Fogo esmeralda brotou na lâmina de Heimheart:
─ Eu adoro esse negócio de magia! – o guardião exclamou enquanto saltava contra a criatura com a arma posicionada de forma letal.
A espada esfacelou a criatura atingindo duas faces horrendas e as arrancando, tornando exposta a carne sangrenta e malcheirosa no lugar. A hidra feral urrou de dor e o fogo esmeralda instantaneamente apagou-se. Resistindo a dor, a criatura fez mais uma investida contra Heimheart e dessa vez o pegou em cheio, agarrou-o com as patas dianteiras e suas navalhas rasgaram o corpo do guardião arrastando-o até a boca central cheia de dentes.
Um jato de sangue esguichou de uma das presas longas enquanto a hidra feral ruminava o arconte guardião. A dor a fez cuspir o celestial no chão. Heimheart deu leves pancadinhas no peito e fez uma espessa pele de pedra se esfarelar de seu corpo. Era uma abjuração antes conjurada por Ithias.
O velho mago meteu a mão na bolsa de componentes de magia tirando de lá um pote cheio de vagalumes nervosos. Destampou e libertou os insetos que saíram distribuindo pequenos pontos de luz amarelada pela noite de Chattur’gah. Em alto e bom som, Ithias invocou a próxima magia e tornou essas luzes algo sólido, palpável. Com um estalar de dedos, como fogos de artifício, logo estas estavam faiscando e agindo de forma desordenada ao redor da criatura. Os pequenos pontos brilhantes explodiram ao mero toque da fera que tentou afastá-las.
Heimheart, então, levantou-se do chão e investiu contra a dominada hidra feral arrancando-lhe a cauda num golpe firme e premeditado.
─ Saia de perto da criatura. Agora! – ordenou Ithias.
Num salto, Heimheart afastou-se aderindo à forma quadrúpede enquanto farejava a podridão da carne inimiga sendo torrada pela magia. A pele da criatura, exatamente na parte em que o arconte guardião havia atingido com sua lâmina de fogo esmeralda, começara a borbulhar, trazendo uma agonia instantânea para a hidra feral. Com uma de suas patas, o monstro cravou as garras na própria carne e saiu rasgando. O fogo esmeralda ainda agia, a carne da criatura avolumou-se como um grande tumor até que o primeiro furúnculo se abriu e esvaziou-se do calor esmeralda como um vulcão em erupção.
A luta havia acabado.
─ Ótimo resultado – comentou Heimheart – a presença desta fera provavelmente afastou as demais criaturas que nos espreitavam.
─ Essa era a ideia – afirmou Ithias.
Heimheart cuspiu no chão e revirou os olhos numa atitude de zombaria:
─ Malditos magos! Eles sempre transformam a sorte deles em algo premeditado!
Ithias riu. Os dois pararam para um descanso. O mago acendeu a fogueira e entregou tiras de carne ao celestial, estas foram levadas ao fogo que já ardia a mais de meia hora e a dupla as assistia se contorcerem até se tornarem helicoidais. As tiras eram crocantes e saborosas quando salgadas.
─ Nunca havia comido uma carne assim – afirmou Heimheart.
─ É o presente de um... velho amigo. A carne pertencia a um javali gigante e imortal que existe por essas terras.
─ Hmm.
Alguns minutos de silêncio depois e pouco antes da exaustão desabar sobre a dupla, Ithias pronunciou-se:
─ Seus serviços terminaram hoje, Heimheart. Retorne ao plano celestial ou faça como desejar.
Ouvindo aquilo, o arconte guardião ficou de orelhas em pé.
─ Isto é sério, mago? Não é costume seu me dispensar antes do final de qualquer jornada.
─ Para onde vou e as decisões que irei tomar não trarão satisfação a um coração justo – respondeu Ithias um pouco amargurado.
─ Do que se trata, velho amigo, se é que isto posso lhe perguntar?
─ Verei a serpente de Chattur’gah. Ela não suporta estar diante de almas ordeiras, então, neste caso, você se tornaria um problema para minha diplomacia.
─ Pouco sei sobre a entidade que você anuncia, mas conheço o suficiente para dizer-lhe que essa jornada tem enormes chances de acabar mal para você, Ithias.
─ As pessoas decididas arriscam, meu amigo canino. Já refleti sobre minha decisão inúmeras vezes, desde já, agradeço sua compreensão.
Como era de costume, Heimheart não questionara mais a decisão do velho mago e no dia seguinte, Ithias já acordou sozinho.
***
Ao norte de Chattur’gah existe uma faixa de terra povoada por tribos indígenas muito antigas. Seu nome é Abismo da Ventania, um canyon muito estreito e longo, lugar independente da liderança de regiões vizinhas (neste caso, a própria Chattur’gah ao sul e o deserto escuro de Quéops ao norte). Impróprio para a agricultura e alvo de constantes ataques de vermes gigantes, o Abismo da Ventania é uma região esquecida do mundo cujos habitantes apenas permanecem presentes devido a missão espiritual de guardar e proteger as coisas que a muito tempo foram aprisionadas no interior das rochas do canyon.
Javert, um sabido e carismático halfling das regiões do norte, compartilha seu tempo contando histórias para os membros da tribo fantasma, um grupo de guardiões da região que fabrica suas especiarias, habitações e vestimentas a partir do couro, saliva e ossos dos vermes gigantes típicos do habitat. Para o pequeno foi bastante curioso e fácil conseguir amizade com o cacique da tribo, o velho indígena com perna de galho torto, Ubiratã, e mais ainda com a considerada mãe de toda tribo, a divina Obah (halfling, como ele). O povo do Abismo da Ventania é tão curioso quanto desinformado sobre as terras estrangeiras e, sendo um legítimo bardo, contar novidades e acender a curiosidade de seus espectadores é apenas o básico da profissão.
Sendo assim, no fim do dia ele deixara de ser um mero prisioneiro da tribo e passara a dividir um longuíssimo cachimbo da paz com Ubiratã, além de prometer uma noite de prazer com a mãe da tribo convencendo-a que faria do jeito que os povos do norte costumavam fazer. Como hábil linguista, Javert facilmente encontrou padrões entre o estranho idioma da tribo e o idioma comum dos humanos.
─ ...como estava dizendo ao excelentíssimo cacique hoje mais cedo, além de contador de histórias sou um andarilho e explorador. Diferente de muitos bardos, acredito que apenas ouvir falar sobre um lugar ou alguém não é o suficiente, eu preciso comprovar que o elemento da história existe. Lidar com o palpável é algo importante para mim e é por isso que me encontro nesta região. Claro que não contava com a sorte de encontrar magníficos anfitriões na jornada, mas já que o destino assim quis, fico agradecido pela hospitalidade e devo me atrever a perguntar-lhes algo...
Ubiratã, mesmo sob os efeitos pacíficos do cachimbo, esboçou na face um cenho nada receptivo ao ouvir Javert falar nisso.
─ ... mas não se preocupe, meu caro líder, conheço o suficiente da história dos cristais vermelhos nas profundezas destes canyons para não querer lidar com eles. Quero lhes garantir que minha curiosidade não se estende até a barreira do proibido de sua tribo, o que me interessa mesmo é conhecer mais sobre a tal floresta de espinhos!
Ubiratã foi fisgado.
─ Nós da tribo fantasma não caminhamos por aquelas terras.
─ Posso saber porquê?
─ Aquela floresta é má e, às vezes, se move, agarrando os andarilhos que chegam muito perto dela. Seus espinhos são malditos e aqueles que se deixam perfurar por eles sangram até a morte. Muitas vezes, mesmo a magia divina de Obah não é suficiente para fechar os ferimentos. Não há nada sadio naquele lugar e suspeito que também não há nada vivo, além de um corvo maluco.
─ Interessante. Então, a lenda deve ser verdadeira...
Javert sabia como atiçar a próxima frase de seu ouvinte e já notara que Ubiratã gostava de conhecer.
─ Que lenda é essa?
─ Do herói sem sangue, é claro!
O cacique estendeu o cachimbo da paz para Javert como um aviso óbvio para continuar:
─ A lenda diz que existe uma nobre feiticeira no interior da floresta de espinhos, morando numa clareira segura, onde as raízes e galhos mortais nunca alcançam. Dizem que este corvo é, na verdade, seu olho e que quando libertada, ela libertará toda Chattur’gah de um mal milenar, e aqui devo salientar que o Abismo da Ventania e Ankhashadalûr fazem parte deste território.
─ Alguns de meus caçadores já ouviram o corvo crocitar sobre uma bruxa...
─ A floresta de espinhos, entretanto, é intransponível, mesmo para a tal bruxa. Dizem que a floresta foi erguida para ser sua prisão e de lá ela nunca sairá a não ser que o herói sem sangue venha ajuda-la.
─ E quem é este?
─ Isto não sei dizer, pois ninguém que conta essa história ousa arriscar, mas entende-se que o herói em questão, por não sangrar, é o único capaz de atravessar a floresta de espinhos e desafiar a coisa que a ergueu.
Assim a tribo fantasma ficou sabendo sobre o herói sem sangue e a sugestão de Javert foi implantada. De madrugada, depois de muito aproveitar a hospitalidade, Javert despertou na tenda de Obah, levantou-se em silêncio e buscou em seus pertences um pequeno pergaminho em branco e uma estatueta de ônix no formato de uma ave, também encontrou pena e tinta para escrever no papel a seguinte mensagem:
“Assim como prometi, meu velho, a tribo fantasma já está devidamente informada sobre a falsa profecia do herói sem sangue. Considere minha parte do plano já bem sucedida. Não se esqueça que me deve uma por conseguir o anel sinete do velho Orchestra e, te alerto, nunca minta para um anão em seu próprio lar.
Ass.: Javert”
Então, Javert amarra o pequeno pergaminho no pássaro de ônix e o joga para o céu noturno, este se torna um pássaro de verdade e logo desaparece entre as imensas pedras do canyon, voando para o sul.
***
Ithias aproveita os últimos instantes de vida da fogueira e faz estourar mais uma dezena de sementes explosivas. Ele ouve o piar de um pássaro próximo e logo deduz que não é de um típico da região. Assobia de volta e o tal pássaro voa até sua mão, pousa junto com um pergaminho amarrado em sua perna e torna-se uma estatueta de ônix.
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