Aconteceu em dez anos, no reino de Chatturgah - Parte 04 - Sementes eternas

 

            Os abutres beliscavam os restos do festim da noite anterior. Eles ainda tinham muito a se refestelar diante tantas vísceras e restos não aproveitados pelos bárbaros de Ankhashadalûr. Um deles voou alto, sua pretensão era examinar a área em busca do alimento mais fácil, ele, entretanto, prenunciou o perigo. Piou alto, duas vezes. Os abutres que estavam rasgando a carne da sobra no solo observaram, quase que ao mesmo tempo, o lamentar do familiar e alçaram voo rapidamente unindo seus grasnares aos de muitos. Era perigoso ficar ali.

Sarrash saiu de dentro do zigurate. Ele trazia o corpo degolado de uma de suas esposas e o jogou, descartável, na imensa escadaria da construção. Ele notou a inquietação dos pássaros e olhou para adiante enxergando o que o surpreendera, então, rugiu como um leão atroz e os bárbaros de dentes serrilhados acordaram atônitos, ainda embriagados da noite anterior.

Para os bárbaros que escolheram a fronteira entre as ruínas de Ankhashadalûr e a selva de Chattur’gah para descansar da noite gloriosa, o destino foi rápido. Noturno, o líder da tribo dos lobos, com suas garras e selvageria, agarrou o primeiro e quebrou-lhe o pescoço, em seguida uivou! Seu grito de guerra veio acompanhado por uma centena de representantes das tribos bárbaras livres da selva. A guerra finalmente começara!

Noturno, da tribo do lobo

 

Annanaki, da tribo do sapo, saltou de cima de uma árvore e cuspiu uma saraivada de muco pegajoso no rosto de três bárbaros de dentes serrilhados. A saliva ardeu e corroeu o rosto dos combatentes despreparados, em seguida, cheio de fôlego, girou sua lança e espetou a garganta de um recém despertado. Os residentes de Ankhashadalûr se ergueram, alcançaram as primeiras armas que lhes vieram à mão e tentaram atacar o homem de postura girina, mas logo notaram que o atingir era uma tarefa difícil. Annanaki girou no ar e chutou uma cabeça. Como de costume, coaxou e liderou sua massa de bárbaros enlameados com elixires pegajosos para a batalha.

Annanaki, da tribo do sapo

 

Pinatotec, da tribo do elefante, apareceu destemido e mascarado, cercado por bárbaros robustos armados com armas de marfim. Ele pisou firme na terra e um tremor poderoso fez desabar parte de uma ruína próxima, soterrando uma quinzena de bárbaros inimigos. Levou um chifre tortuoso à boca e soprou sinalizando a hora da investida. Ele se posicionou a frente dos outros, bem menor em estatura e massa do que se podia imaginar, mas com a força sobrenatural de um mastodonte atropelando uma fileira de oponentes.

Pinatotec, da tribo do elefante

 

Kaluya, da tribo da águia, rodopiou como uma folha presa num redemoinho. Uma lufada de vento pressionou o corpo dos bárbaros de dentes serrilhados contra o chão, depois, flechas com penas de pássaros foram disparadas pelos ágeis e observadores representantes da tribo da águia. Mergulhando em rasantes rápidos e efetivos, as garras de Kaluya atravessaram o campo de batalha como centenas de navalhas flutuantes, então, as nuvens se fecharam e, anunciado por um trovão poderoso, um raio atingiu o topo de uma das torres ao redor do zigurate principal destroçando uma pira inimiga que ainda exalava fumaça e calor.

Kaluya, da tribo da águia

 

Alvorada, da tribo do cervo, investiu empalando os inimigos à frente com sua galhada mais resistente e letal que dez lanças. Suas patas traseiras socaram o rosto de um dos bárbaros de dentes serrilhados, então, ele clamou pela ajuda da natureza e as vinhas e trepadeiras incrustaram-se nas ruínas de Ankhashadalûr e no corpo dos bárbaros inimigos. A força das raízes e tapetes de musgos sufocaram os oponentes e demoliram construções e enquanto estes tentavam se livrar das armadilhas, uma cavalaria de bárbaros montados em cervos apareceu com suas lanças preparadas e eliminaram os alvos indefesos entrando com tudo na defesa ainda atônita de Ankhashadalûr.

Alvorada, da tribo do cervo

 

Ibsez, da tribo da víbora, amaldiçoou a alma dos inimigos e comandou para que seus furtivos companheiros de tribo disparassem os espinhos envenenados das zarabatanas. O mago robgoblin apossou-se de seu grimório e conjurou uma poderosa bola de fogo que foi capaz de demolir uma das torres inimigas. Sussurrando palavras sibilantes, Ibsez convocou uma névoa densa que obscureceu a visão dos bárbaros de dentes serrilhados e permitiu o avanço furtivo de seus irmãos.

Ibsez, da tribo da serpente

 

Noturno, da tribo do lobo, uivou mais uma vez e seus companheiros de tribo avançaram tomando a forma de lobos atrozes furiosos. A alcateia ameaçadora saltou como uma onda sobre os inimigos dilacerando suas gargantas e liberando passagem para alguns representantes da tribo do sapo que carregavam estranhos potes de cerâmicas repletos de um líquido pegajoso que foi passado nos alicerces de mais uma torre, em seguida, frascos de fogo grego fizeram o restante do serviço, estourando a alvenaria e iniciando um incêndio.

Sarrash ordena furioso para que todos se levantem, em seguida, enterra suas garras no chão e contamina Ankhashadalûr com sua magia milenar de corrupção. As torres que ainda se mantinham de pé começam a desmoronar, mas, ao invés de permanecerem imóveis no chão, tomam a forma de criaturas horrendas feitas de escuridão e rocha. Os monolitos possuídos possuem a forma de imensos javalis e avançam urrando e cuspindo o calor das piras que foram alimentadas pela vontade de Sarrash.

Um monolito possuído

 

Alvorada, da tribo do cervo, brame em alto e bom som aguardando a ajuda de Kaluya e Pinatotec. A resposta vem de imediato quando um forte redemoinho é formado guiando dezenas de flechas para eliminar os inimigos a frente da investida do cervo. Um dos monolitos possuídos tenta atacar Alvorada, mas ele se esquiva e, em seu lugar, uma cratera é deixada. Pinatotec sobe os restos da escadaria de uma ruína para adquirir altura e, de um salto, alcança uma das presas de um monolito possuído, agarrando-a firme e forçando a criatura contra o chão.

O exército de cavaleiros montados em cervos salta pelos destroços e alcança as escadarias do zigurate. Uma nuvem fedorenta e tóxica é conjurada pelos seis sinistros de Ankhashadalûr e ela corrói e cega a maioria dos cavaleiros, fazendo com que estes sejam alvos fáceis das machadinhas e azagaias dos bárbaros de dentes serrilhados. Diante de Sarrash, Alvorada é protegido por um de seus irmãos de tribo quando o corruptor invoca o hálito de Hades para transformá-lo em pó. O rei cervo assiste seu melhor guerreiro ser reduzido a pó e, furioso, investe contra o principal inimigo.

A investida de Alvorada poderia derrubar uma casa, mas mesmo isso não é o suficiente para Sarrash, que agarra os chifres do cervo e resiste ao encontrão. Nesta disputa de força, o corruptor pouco a pouco começa a dominar o rei cervo, até que ele sente o chão aos seus pés escorregar. Sarrash analisa a situação e vê Annanaki, da tribo do sapo, tingir o chão atrás de seus pés com uma substância nodosa. Assim, Alvorada consegue tombar Sarrash e arremessa-lo contra as paredes do zigurate. O impacto do empurrão é tamanho que parte da construção é deteriorada. Mas, é claro, o corruptor se levanta, ainda mais furioso...

Três dos seis sinistros flutuam no céu assombrado pelas nuvens cinzentas. Eles acercam um pequeno orbe negro envolto de arcos voltaicos, um artefato que potencializa o poder do trio. A praga dos sinistros é clamada e dos cadáveres da guerra, tumores começam a inchar na pele, se avolumam a ponto de explodir e de dentro destes nascem vespas assassinas que tomam conta de todo campo de batalha. A nuvem de insetos devora tudo pelo caminho, picando e fazendo nascer abcessos dolorosos nos integrantes das tribos unidas. Ossos escuros gigantescos, pontiagudos como vértebras, se desenterram das ruínas e empalam mais heróis. Abutres sofrem uma transmutação poderosa e se transformam em vrocks, os demônios carniceiros cujo silvo é capaz de matar.

Um quarto sinistro é capaz de se transformar em sangue e com esse poder invade outros corpos inundando a boca ou ouvidos das vítimas e rompendo seus estômagos por dentro. Ibsez, então, usa de magia necromântica proibida para evaporá-lo no momento certo em que ele é expulso de um corpo que acabara de ser dilacerado pela retaliação de Noturno.

Kaluya pede auxilio a um elemental do ar ancião que toma a forma de uma nuvem trovejante e descarrega seu vórtice de eletricidade nos três sinistros amaldiçoadores, cercando-os com névoa gélida, mas o orbe negro mostrou-se poderoso o suficiente para desmanchar o elemental do ar como um buraco negro.

Sarrash salta sobre Alvorada e o agarra pelos chifres, ele o domina arremessando no chão e volta a fazer o mesmo três vezes, sem soltar. O baque das três batidas é tamanho que os cavaleiros da tribo do rei cervo ouviram exatamente o momento em que o pescoço de seu líder quebrou. Feito isso, o corruptor se livra do corpo lançando-o nas alturas do zigurate enquanto, desesperado, Annanaki tenta fazer algo agarrando o inimigo pelas costas. Sarrash o captura e também o domina ameaçando-o – vamos ver se o senhor da tribo dos sapos é realmente maleável! – então, sádico, começa a quebrar os membros de Annanaki, um por um.

Noturno toma a forma de um lobo atroz majestoso e investe em direção ao zigurate após ver o corpo de Alvorada cair daquelas alturas. Um dos monolitos possuídos tenta impedir seu avanço, mas é surpreendido por uma rocha gigante arremessada por uma das engenhosas máquinas inventadas pelos engenheiros da tribo do sapo (uma espécie de catapulta bastante rústica). A tribo do sapo é tão engenhosa na criação destes aparatos quanto é na fabricação de caravelas.

 O quinto sinistro, magro como uma sombra e pálido como a morte, aparece diante Noturno afim de enfrenta-lo e dispara um raio tortuoso e infalível que teria atingido certeiramente o peito do lupino, caso este não tivesse usado o braço esquerdo para se defender. O membro atingido, entretanto, necrosa imediatamente em resposta ao enxame de larvas que começa a fender a pele de Noturno de dentro para fora. O líder da tribo do lobo toma uma atitude drástica e abocanha o próprio braço fazendo o sangue jorrar aos borbotões enquanto as presas dilaceram pele, músculo e tendões.

Então, os olhos do líder da tribo do lobo se tornam vermelhos e vivos. Sua pelagem eriça enquanto seus ferimentos vagarosamente se regeneram. Voraz, ele uiva envolvido por uma fúria incontrolável e poderosa, incorporando assim o espírito de Zoe, pois é assim que as tribos unidas de Chattur’gah chamam o frenesi de um furioso implacável. Sem distinção de aliado ou inimigo, Noturno alcança o sinistro que lhe fizera tomar aquele estado e o rasga no meio, prosseguindo caminho até Sarrash.

No solo, Kaluya e Ibsez somam forças para enfrentar os três sinistros, mas as magias lançadas contra os mesmos parecem ser dissipadas devido a concentração que estes depositam no artefato. Kaluya pede auxílio à Pinatotec, então, controla o vento e o impulsiona para cima do último monolito possuído. Com força sobre-humana, o líder da tribo do elefante agarra-se a bocarra do javali de pedra, domando-o e forçando seu movimento para a direção dos três sinistros. Afim de desviar do encontrão, os lordes de Ankhashadalûr abrem uma brecha na concentração e Ibsez conjura uma coluna de chamas maximizada pelo conhecimento oculto encontrado nas terras da tribo. O pilar de fogo incinera os três sinistros e os transforma em pó.

Noturno aparece diante de Sarrash com sua sombra se projetando ameaçadoramente. Annanaki é chutado da altura do zigurate, mas é salvo pelos ventos de vendaval de Kaluya que carregam o líder da tribo do sapo para longe da batalha, mortalmente ferido.

Imerso no espírito de Zoe, Noturno atraca-se à Sarrash e se joga de cima do zigurate fazendo os dois caírem muitos metros diretamente no solo inundado pelos cadáveres da guerra. Não satisfeito, o lupino desfere uma dezena de golpes brutais rasgando e retalhando o oponente de forma feroz. O corruptor contra-ataca o frenesi do inimigo conjurando um espírito natural desolado: galhos saem das profundezas do mundo e se misturam à treva, eles se enroscam em Noturno sugando sua força e vitalidade a ponto de Sarrash voltar a ter vantagem e arremessar o lupino para longe.

Espírito natural desolado

 

Esfomeados pelas almas de tantos mortos, Sarrash consegue convencer inúmeros espíritos naturais desolados a comparecer em Ankhashadalûr apelando para uma magia de pacto poderosíssima. As presenças do submundo se enroscam nos bárbaros das tribos unidas ainda vivos e começam a devorar.

─ Avante, tribos unidas! Olhem para o céu! É a constelação do portador da luz! – grita Ithias, montado nas costas de um imenso pássaro-roca. O céu brilha intensamente desenhando os contornos da constelação luminária e os espíritos naturais desolados recolhem-se para os refúgios de trevas. Ithias abandona sua montaria caindo lentamente com a ajuda de uma magia de levitação, já o pássaro-roca ganha os contornos de uma criatura humanoide conhecida.

            Por um momento, a guerra se silencia. Os bárbaros das tribos unidas reconhecem a presença de Kaiross, uma das entidades do limite do mundo. Sorridente, o excêntrico druida se aproxima do corruptor convencido da vitória. Sarrash vocifera:

─ Isto nunca vai acabar, irmão! Eu fui criado para renascer! Sou a semente eterna! Minha derrota aqui apenas adiará o fim inevitável e agora eu sei exatamente quem terei de aniquilar primeiro!

Kaiross ri zombeteiramente do corruptor e diz:

─ O que achou da sua última refeição? Ela caiu bem para o seu estômago? Você parece estar um pouco empanturrado, irmão – então estala os dedos.

            Sarrash sente uma dor agonizante no estômago, suas entranhas se contorcem numa fome insaciável. O corruptor cai de joelhos e sente a pele de seu abdômen rasgar. A muda de uma planta desenraiza de suas tripas e cresce ganhando proporções enormes, adquirindo mais galhos, folhas e raízes enquanto desmancha e retalha o corpo de Sarrash inteiramente. A partir do estômago de Sarrash uma floresta densa começa a nascer e ela cresce, floresce e devora toda Ankhashadalûr, deixando-a inundada pela vegetação típica de Chattur’gah.

─ Dessa vez não tem volta, Sarrash. Eu controlarei você. – sussurra Kaiross.

***

            Ithias volta às ruínas dos gigantes de outrora, mas dessa vez acompanhado de Kaiross.

─ Está arrependido de algo, velho? – pergunta o druida.

─ O luxo de arrepender-se virá apenas nos dias que antecederão minha morte, por enquanto, a aceitação do risco é o que me motiva a continuar.

Kaiross assente com a cabeça e sua vontade faz com que os portões de pedra, marca da entrada das ruínas, se ergam e deem passagem para uma câmara longa e escura. Ithias empunha seu cajado de oliveira novamente, bate uma das extremidades no chão e uma luz emana da outra. Sozinho, ele adentra o lar da pré-história de Draganoth. Ele terá alguns anos até que um grupo de heróis certos volte a se reunir...


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