A Aurora e o Crepúsculo


- Ofélia, mantenha-se viva!


Samira sussurrou no ouvido da amiga enquanto tratava dos ferimentos. A força da natureza que o grupo ali enfrentava havia erguido das entranhas da terra os espinhos da roseira brava e estes perfuravam o corpo da monge criando irritações vermelhas que se espalharam como febre pelo corpo.


A entidade era o reflexo de Aurora. Um reflexo impuro. Não havia a claridade dos dias mornos nela e sim o sombrio tom alaranjado que o crepúsculo tinge no céu quando o sol morre num dia para ressuscitar no outro. Nos escritos sobre essa batalha, os sábios a chamarão de “Crepúsculo”, a luz que encerra o dia, o reflexo impuro de Aurora.


O Crepúsculo era ali rainha do mundo espelhado. O vento, o fogo e a geada a ela respondiam. Conjurou um nevoeiro denso e impediu que as flechas de Castelo Cinzento fossem eficazes. Ela caminha no ar com a destreza de quem pisa na terra, cuspiu de dentro do estômago a praga de gafanhotos e invocou os relâmpagos da tempestade para arruinar os inimigos. Ela é toda força da natureza.
Castelo Cinzento durou. Suas flechas rasgaram a pele pétrea do Crepúsculo - outra magia que a cercava de invulnerabilidade - mas rendeu-se à rosa brava e à praga de insetos.


- Ada… vejo você em outro mundo. Eu te aguardo, minha princesa. Não morra logo. Cuide dos nossos filhos. Eu tentarei fazer o mesmo… no outro lado do véu…


Todos ouviram Castelo Cinzento delirar suas últimas palavras. Os olhos do caçador viraram brumas quando o relâmpago atingiu-o no peito. Talvez ele nem tenha sentido a pele ser dilacerada pela nuvem de gafanhotos famintos que serraram seu corpo, logo após.


Adhraim não conseguia conter a culpa. Olhava para o Crepúsculo tentando reaver qualquer aspecto de sua querida Aurora. Não. Ela não estava ali. O anão já havia conhecido seu próprio reflexo de impureza e decididamente: não é a mesma existência. Ele sequer poderia considerar que aquilo, voando à altura de uma nuvem violenta, era qualquer parte do âmago da doce Aurora.


- AURORA! - ele gritou.


Crepúsculo fitou-o com selvageria e disparou os raios da tempestade. O metal da armadura de Adhraim esquentou-se subitamente, sua barba se eriçou e os dentes rangeram lutando para não  morder a língua. Ele deu um passo a mais…


- AURORA!!


Mais uma vez gritou. A eletricidade passou a cortar sua pele como uma centena de facas. Mais um passo adiante e livrou-se do escudo.


- AURORA!!!
E mesmo sua resistência anã não era párea à força da natureza. Caiu de joelhos, fadado à derrota.


Samira estava sozinha.


[...]



Samira nunca segurou uma espada tão firme. Ainda não tinha aprendido a lidar com o medo. A angústia dilacerava seu peito e formava um nó na garganta. Pela primeira vez seu receio de morrer era genuíno. Tão pouco tempo havia passado desde o momento em que, deitada nos bancos do Hospitalário, a paladina pôde sentir a bênção de Splendor abandoná-la.


Não havia nenhuma certeza além da que ela deveria lutar até o fim e havia boas chances de aquele realmente ser o fim.


Os raios da tempestade desafiaram o céu e lamberam a armadura de Samira dissipando o choque poderoso que a fez ficar de joelhos. Ela ergueu-se e uma nova rajada trovejante voltou a golpeá-la arrastando-a de encontro a um chão plantado de espinhos da roseira brava… mas o céu tempestuoso e a terra cravejada não foi o suficiente. Samira ergueu-se novamente.


A praga de gafanhotos voou como mil navalhas em sua direção. Samira ergueu o escudo de Halig, no metal dourado do objeto brilhou o símbolo da cruz-espada lustrado pelas lágrimas bentas que jorraram no rosto da estátua do templo de Splendor. Assim como havia pedido a permissão espiritual do antigo portador deste escudo, a paladina fazia o mesmo com o escudo do leão que jazia obscuro ao lado do corpo de Adhraim, recém caído.


Samira ajoelhou-se e defendeu-se com os dois, deixando sua espada de lado, cravada no chão de espinhos. O enxame de insetos veio e se foi, frustrado pela incapacidade de retaliar o metal das proteções sagradas.


Então, a paladina se ergueu mais uma vez e livrou-se de suas defesas, segurando com ambas as mãos a espada que há pouco tempo estava sob a posse de Sapphire. A arma que a elfa cedeu à paladina uma hora antes de ter sofrido a morte vinda pelas maldições que assolam a cidade que se transforma em fantasma.


Naquele instante, nada mais pertencia à ela, a não ser a alma rasgada pelo abandono da fé. Mesmo sua própria vida não a pertencia. Era uma marionete do destino, a última peça do tabuleiro dos deuses. Aceitou aquela submissão com a humildade de um servo e gritou:


- Não haverá força da natureza capaz de me deter, criatura! Você é apenas parte da minha provação!


Crepúsculo engrandeceu-se entornada de ira. Suas mãos se tornaram garras espinhentas e, como do sumo das urtigas, seus dedos brilharam envoltos das chamas de um resto de sol. A forte ventania soprou a força da natureza em direção à paladina de alma retalhada.


Os anjos observam Samira. O vento se dissipa silencioso diante a cena: a paladina pisando sob uma coroa de espinhos e o fantasma demoníaco, envolto de furacão e incêndio, pronto para rasgar seu peito e arrancar o coração.


Eirika, a mãe da paladina, cai de joelhos sob o jardim dos Elíseos, com as pálpebras fechadas, expulsando um par de lágrimas cristalinas, mistura de amor e angústia. Une as mãos e entoa uma prece tão sussurrante quanto o vento: “Proteja minha filha, Splendor. Proteja-a de mais uma amargura. Proteja-a desse destino cruel. Eu imploro!”. Então a terra dos Elíseos se rompeu num terremoto jamais visto e da garganta da fissura, Eirika, a mãe zelosa, aceitou as boas vindas do Purgatório e saltou.


[...]


Samira sentia o calor do próprio sangue derramado espalhando-se como um véu rubro pelo corpo. Sangue grosso viajando pelas frestas da armadura. Havia também a ardência do toque flamejante do Crepúsculo e o barulho ensurdecedor da pressão do vento nos ouvidos, pronto a estourar os tímpanos. Dentro dela, em seu âmago, acontecia o inverso: frio intenso e silêncio.


Os paladinos da cruz-espada falam sobre os momentos que antecedem a morte:


“Mais do que o barulho de gritos de sofrimento e do respaldar de lâminas e assobios de flechas, um campo de batalha é uma cacofonia poética. Quem está na guerra preocupa-se mais em escutar a carne sendo rasgada e o osso sendo quebrado, por isso, nunca descreve o ruído antecedido pela faísca do encontro de espadas como protagonista. Os sons mais agudos tornam-se paisagem no plano de fundo e a rouquidão dos sons mais sutis se sobressalta. É o vômito, as poças de merda e o jorrar de sangue confundido com a sinfonia de uma cascata. Mas existe um barulho que se sobressai ainda mais. É o som do silêncio. O som da sua alma respirando o último fôlego. Nesse momento, todos os ruídos ao redor de si tornam-se surdos e pode-se ouvir apenas o silêncio que ocorre após o distanciamento das batidas do próprio coração. É aí que o guerreiro sabe que vai cair. Morrer.


Explicava a mestra de Samira, num passado nada distante:


“É por este motivo, Mira, que existe o brado de guerra. O silêncio é a arma dos inimigos injustos. É a bênção do assassino e o irmão das trevas. Lembre-se de seu juramento paladínico: peca-se, dentre muitas formas, também aquele que omite e deixa as palavras do malefício se perderem no silêncio. Peca aquele que faz do silêncio uma arma. Quando em combate você perder todos os demais sentidos e te sobrar somente a audição e, ainda após isso, esta gradativamente se esvair, lembre-se do que estou a falar: o silêncio dentro de si é o espreitar dos guardiões da morte que vieram agarrar sua alma e levá-la para o purgatório. Esses guardiões poucas coisas temem, mas vou te dizer, Samira, o que os faz desistir de alcançar sua alma: o brado! Portanto, quando estiver nessa situação, grite! Grite e afaste-se da morte!”


Samira bradou.


O grito rasgou sua garganta e ressoou tão alto quanto um trovão. A espada encontrou o caminho do peito do Crepúsculo e, impulsionada pelo brado, a lâmina atravessou carne, músculo e ossos. Então foi a vez de a natureza se silenciar e Crepúsculo começou a se desfazer em sangue esverdeado, como seiva de árvore.


Sem mais forças, a paladina permitiu-se cair e a espada fez o mesmo caminho, tombando sobre o chão de espinhos. Crepúsculo apertava o peito, lugar onde o ferimento transbordava sua morte e irou-se pela derrota… mas não tinha mais voz ou poder.


Nesse momento, Adhraim sentiu uma luz ofuscante e quente sobre seu rosto e abriu vagarosamente os olhos.

[...]

“Adhraim… Adhraim… querido… erga-se…”

Derramara-se sobre Adhraim a luminescência do início de um dia que, para os analíticos olhos de um vidente, exprimiria o bom augúrio de um futuro próximo e imperturbável. Jazia ao seu redor os contornos dourados dos loiros cabelos de sua amada, cintilantes em seu mistério, apalpando-lhe o âmago, espalhando um calor que verte numa manhã de sol. Agradável e amável toque de um jardim cercado de acolhimento, de onde o anão jamais precisaria sair. As pálpebras do herói se habituaram à claridade e ele sentiu enrolar-se ao redor de seu pescoço e ombros os braços de toque primaveril de Aurora, carícia complacente que precipitava a boa ventura.

“Por ora, você não precisa lutar mais…”

Adhraim pensara ter morrido, pois o corpo, antes inerte, agora não apresentava as mazelas de minutos atrás e mesmo o banho de sangue não manchara seu corpo e suas vestes. No lugar de roseiras bravas, as rosas mantinham-no num berço em acalanto. O anão notou os arredores e viu Ofélia recostada numa árvore, as sobrancelhas arqueando, movimento involuntário de alguém que acorda de um pesadelo. Samira jazia inconsciente, marcas de queimadura no rosto antes intocado, ainda vítima das brasas infernais do Crepúsculo. Aurora agora tocava-lhe a fronte e a banhava com beleza novamente. Depois, a dama na torre, cercada pelo brilho dourado e matinal, ergueu-se e tal era sua imponência que os ventos da tempestade retornaram, dessa vez cautelosos, porém, muito mais ameaçadores.

“Nenhum império que ergue o símbolo das trevas triunfará sobre esta cidade. Que seu maldito culto aprenda isso logo de uma vez, invasor!”

Aurora cerrara o punho e ao seu redor ouviu-se o ruído de vidro rachando. Todo o espelho que vestia o cenário estilhaçou-se, seus cacos agora rodopiavam no interior destruído do Templo de Valerie, e eram notados mesmo sob a escuridão incessante que pairava em Cadic. Cada lasca parecia uma estrela brilhante e distante num céu escuro, flutuante e vagarosa, perdida e sem destino, até que então desabaram no jardim, inofensivas.
“A magia má se foi.”

E realmente havia partido. Lá fora, a escuridão ainda persistia e a tempestade de relâmpagos verdes ainda tremia no céu escondido, porém, reinava sobre as esperanças daqueles que sobreviveram ao confronto com Crepúsculo, a certeza de que aquela treva estava prestes a acabar.

Postar um comentário

0 Comentários

Close Menu