A deusa aranha


  


         Enquanto a doença humana se alastrava nos reinos de Draganoth, havia somente um lugar em que a paz e o natural reinava e esta era a longínqua terra de Ellidoränne, reino dos elfos, banhado em madeira e prata, habitado pelos animais e criaturas mais sagrados. Tal qual era a visão do céu à noite, também brilhavam magicamente pequenas centelhas de luz que se espalhavam por toda floresta santa, esferas de luz que pareciam lanternas flutuantes e estas impediam que a eterna escuridão assombrasse a raça de Gaiëha.

            Elfos, os primeiros detentores da arte arcana, dádiva concedida pela própria deusa e conhecimento que se tornou teoria que foi disseminada para as demais raças. Sim, os elfos se culpam pela estupidez de ter divulgado suas artes, especialmente quando agora observam o novo mundo regido pelos humanos. A magia arcana nunca deveria ter saído dos cercos do império élfico e foi para se afastar do inevitável fim que a raça altiva se protegeu no véu da floresta de Ellidoränne durante eras.

            Afastar-se da guerra dos humanos e do terror causado pelas artes arcanas nas mãos de inomináveis não impediu que um poderoso mal despertasse na própria Ellidoränne. Seu nome era Seymor, uma elfa de grande poder e conhecimento, uma yeshua numa época em que esses súditos poderosos ainda não tinham sido nomeados.

Há quem diga que Seymor muito se simpatizava com as atitudes humanas, tão regadas de irracionalidade e de paixão. Por deveras acreditou ser uma grande qualidade, uma qualidade que só poderia advir de uma raça em que seus representantes tão pouco tempo viviam. O medo da vida e da morte os representava. Os elfos não sentiam isso. Viviam tanto quanto as árvores do sagrado bosque e, na velhice, partiam sem qualquer dor para as hostes imortais, se tornariam honrosamente mentores espirituais de seus filhos ou reencarnariam na fauna e na flora. Nada disso aconteceria a um humano.

“Viver tão pouco tempo os deu temeridade”, ela questionava, “Estudar sobre a vida e a morte é algo desnecessário para um elfo, mas não vivemos em um casulo. Somos tão mortais quanto qualquer outra raça”, e viveu, Seymor, para a sua filosofia. Os primeiros conhecimentos sobre necromancia mal sabemos onde foram encontrados, mas é certo que, embora haja muita incerteza sobre o verdadeiro disseminador das artes negras, Seymor foi uma precursora.

            Sua filosofia estava mais do que certa, a vida e a morte não são assuntos para os elfos, decretou um dia Gaieha, e ao brincar com esta desordem, Seymor recebeu a maldição de tornar-se negra como a noite, sem nenhum direito aos pingos de estrelas tatuados na pele, escura como a treva humana. Isso não a intimidou e seus estudos tornaram-se mais abrangentes, tamanha era sua visível loucura de desafiar a própria deusa que sua raça a castigou.

            Ocorrera, então, o primeiro castigo entre a civilização élfica, o maior e mais temido até os dias de hoje: a marcha pelo deserto do esquecimento. Uma selva de dunas, ventos escaldantes e areia cortante que não somente afetaria permanentemente a mente do andarilho da região, como se responsabilizaria por levar ao esquecimento todos os nomes e títulos do mesmo para todo o resto do espaço e do tempo.

Naquele momento, não por pena, mas por simpatia, pousara sobre Seymor o beijo negro de uma aranha, o sussurro mortal de Veronicca, a deusa da morte. O minúsculo aracnídeo ferroou o pescoço de sua vítima e definhou vagarosamente enquanto secretava todo o veneno da falta de lucidez. Vozes na consciência da primeira representante entre os elfos negros começaram a se propagar, estas encaminhavam Seymor até uma construção perdida, erguida sabe-se lá por qual motivo, uma torre negra no meio do nada, responsável por ocultar qualquer existência dentro dela, seja por meios mundanos ou magia. Aquela seria a Torre de Zanzarrah, o lar dos drows, onde a própria Seymor passaria por sua metamorfose.

            Seymor viveu pela filosofia do não enclausuramento, mas, seja por poesia ou perversidade de Veronicca, a primeira dos drows tornou-se um casulo e por incontáveis anos permaneceu curando-se do veneno e da mente. Ao regenerar-se completamente, brotou como um enorme aracnídeo de dentro de um emaranhado de teias e tornou-se a deusa-aranha. Tanto tempo teve a sós com seus pensamentos que deixou-se afogar pelos sentimentos de ódio e vingança.

Com a ajuda de seus poderes ocultos, muitas mentes ela conseguiu influenciar e apenas vítimas élficas foram corrompidas, pois Seymor desejava vingar-se daqueles que duvidaram de que suas capacidades a levariam para algum lugar. Nasciam os drows, legítimos elfos negros e, com as bênçãos da própria deusa-aranha, também, os driders, criaturas que têm a forma e semelhança da deusa, mas em proporções menos divinas.

            Tamanha atrocidade alertou os elfos de Ellidoränne que há muito tempo viviam em paz, sem a necessidade de um governo ou da lei e da ordem. Convocados foram os mais sábios da raça e entornados de bênçãos da própria Gaiëha, ingeriram as sementes sagradas, tornaram-se, então, os prestigiados yeshuas e, com este título, lideraram os elfos para que rasgassem uma única abertura no véu que protegia a floresta sagrada de Gaiëha do mundo. Marcharam pelo deserto do esquecimento, mas nada temeram, pois os yeshuas eram seus talismãs.

Chegaram à Torre de Zanzarrah e lá houve o primeiro e único embate direto e páreo a páreo com Seymor e seus súditos. A guerra levou muitos indivíduos, muitos elfos que não tiveram a chance de ascender às hostes eternas, mas a deusa-aranha foi derrotada, fugindo, fraca e incapaz para a escuridão do mundo de onde ela nunca deveria ter surgido.

            Porém, este não era o seu fim. Quando, enfim, a noite chegara, devorou as almas dos muitos elfos que ali ainda estavam, prendeu-se no teto de Zanzarrah com suas teias negras e exigiu dos seus súditos drows fonte de alimentação. Assim, vive atualmente Seymor, presa na própria teia, devorando a carne e o espírito de elfos que são levados à torre, até o dia em que seu corpo e sua mente, uma vez mais, estejam regenerados.

            A Torre de Zanzarrah mais uma vez tornou-se oculta, mas não conseguiu ocultar as memórias dos entes queridos nas cabeças de seus sucessores. Deles nasceram famílias. Desses heróis da luta em Zanzarrah nasceram, dentre tantas outras linhagens, os Vangaard.

[Continua: Amantes]


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