Era final da Quarta Era quando os
elfos assistiram o fim da invulnerabilidade que o véu tecido por Gaiëha
concedia ao reino de Ellidoränne. Tratava-se da Alma Escarlate, o famigerado
grupo de algozes que trazia, há algum tempo, um rastro de sangue e conquistas
para o deus-lich, o deus das hordas trôpegas, Saulot. Liderava-os Acheron, um
mago vestido de artefatos recolhidos das mais diversas profundezas de
Draganoth, seus olhos brilhavam num amarelo doentio que muito se assemelhava ao
seu sorriso sádico.
Acheron
erguia os braços clamando pela magia da desordem e saraivadas de flechas
partiram das defesas élficas em sua direção. Os yeshuas, ainda alimentados
pelos vestígios da proteção do véu, proveram milagres aos seus irmãos, mas
nenhuma magia divina ou arcana parecia ser capaz de romper o poder da esfera
aniquiladora que o mago, súdito de Saulot, controlava. O artefato, despertado e
trazido de dentro de Xea’thoul das mãos do próprio deus da discórdia, tomava a
tudo, como um buraco negro que engorda a cada vida devorada.
A
alma Escarlate era formada por, nada mais, nada menos, que cinco integrantes,
mas estes não se atreviam a sair da aba de seu líder. Não precisavam, pois
Acheron tinha o poder do primeiro caído e a este, todos os demais da espécie
obedeceriam. Brotavam do chão aqueles que um dia foram castigados por quererem
matar os deuses, todos sob as ordens diretas do mago abençoado pelo deus das
hordas trôpegas. Os defensores resistiram o quanto puderam, mas a esfera da
aniquilação acabou se expandindo demais.
Os elfos que sobreviveram ainda
contam, com sofrimento, sobre o dia que tiveram de assistir aquela parte do mundo
ser devorada e desaparecer. Nada mais cresce lá. A Alma Escarlate veio com um
propósito e não mais que isso se propôs a realizar. Deixou seu rastro eterno e saiu,
largando o pouco de vida que sobrara para trás. Naquele dia, Gwynneth sobreviveu,
pois, a natureza de Ellidoränne à ajudou, prendendo-a à uma teia de raízes no
solo.
Décadas
após, ela ensinava Älkhandi e Velorën a arte da perícia e da magia élfica.
Velorën tinha olhos de águia e habituara-se a caçar, pescar e intuir direções,
Älkhandi tornou-se exímio arqueiro, aprendeu a emanar a magia em suas flechas.
Gwynneth contava histórias sobre o povo que mora além dos bosques élficos, humanos,
sem desdém, muitas vezes, aparentemente, deixando ressoar certo respeito ou
confiança para com estes, num ritmo lento, porém, ainda assim, excêntrico para os
elfos.
“Hão
de sair das defesas de Ellidoränne em breve. Esta é a sina que o mundo ofereceu
às suas gerações, Älkhandi e Velorën” certo dia ela disse em tom de despedida, “Tens
um ao outro e foram abençoados com o amor e confiança que poucos companheiros
de arco têm. Isto será um prestígio e uma maldição”, e bem fez uma pausa.
“O
mundo que os espera além de Ellidoränne está pronto para aproveitar a chance de
nos ver tocando o solo dos antepassados novamente e o mal maior, responsável
por assassinar suas famílias, vive no escuro e se banha com sangue dos irmãos...”.
Ela se referia aos drows de Zanzarrah, incansáveis algozes dos bons elfos.
Ela
continuou: “Haverá muita discordância entre seus dogmas e as leis do povo de
fora, mas será parte da missão aliar-se a estes. Nosso mundo agora convive com
outros e é importante manter esse período de paz entre nossas raças”, concluiu
seu último ensinamento e partiu com a natureza, pois Älkhandi e Velorën já
haviam a visto ser vento, fogo, água e terra.
Mal
puderam ver os vestígios da angústia desenhada no rosto de Gwynneth. Ela
partira, enfiou-se numa árvore e foi ter com os irmãos e amantes yeshuas,
Argalad e Argaladiel. Eles a receberam.
—
Porque a angústia em teu âmago, seladora? Não sabe que ambos partiram para que tudo
o que já foi falado seja concretizado? – Perguntou Argalad, que apareceu na
forma de um virtuoso corcel branco.
—
São planos audaciosos demais aqueles que os yeshuas preparam. Não seria isto
brincar de deus? – questionou Gwynneth.
—
Admiramos sua excentricidade, seladora, mas não podemos permitir a audácia de
sua desconfiança – cortou Argaladiel, em sua forma de águia, rodopiando no céu,
o vento era responsável por trazer seus sussurros aos ouvidos de Gwynneth – Se amam,
e esta é uma bênção que precisa ser usada.
—
Melhor não desconfiar dos planos dos yeshua, pois bem sabe que não é nosso e
sim da mãe de todos. Sabes bem que não podemos mentir para alcançar resultados,
basta-nos o fardo de ter que ocultar – concluiu o irmão, espelhado no lago
cristalino que estava no lugar com a crina esvoaçante.
—
Para o lugar que vão, poucos continuaram vivos para contar história. Lá existem
anciões tão antigos quanto Ellidoränne, tão fortes quanto os senhores yeshua e
é para o caminho destes que vocês puseram meus pupilos.
—
Demos a ti muita confiança, querida Gwynneth, não se zangue – sussurrou Argaladiel
– seu treinamento poupará um, o amor entre eles poupará outro.
—
Aprendeste a desconfiar como os humanos fazem e isto nos é garantia de
necessária índole, nesses dias de treva – continuou o corcel – mas a sombra se
estreita rapidamente e precisamos, também, tecer nossas teias.
—
Há algo mais que eu possa fazer para ajudá-los? Sei sobre os seladores de
portais, já me aventurei na Floresta dos Mil Sussurros, posso garantir, ao
menos, que a natureza de lá não os sufoque.
—
Todo caminho que passarão fará parte da provação – falou Argalad enquanto Argaladiel
pousava num galho baixo.
—
Não há mais nada que possa fazer, por enquanto, querida Gwynneth – concluiu a
águia.
Assim, a elfa, cria da floresta,
silenciou-se. Seus pupilos agora entravam na Floresta dos Mil Sussurros, sem a plena proteção de Gaiëha.
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