Epílogo 1 - Manicômio
- Carlos... – Nikaia gania de dor enquanto regurgitava as poucas sílabas que ainda era capaz de pronunciar - ...me ajude! ...Eles... estão... em... toda... PARTE! – seus olhos sangravam um líquido viscoso ao invés de lágrimas, isso moldurava sua íris com um complexo padrão alienígena. A pele de Nikaia se rasgava, mutilada em finíssimos filamentos de onde se enraizavam um par de apêndices afiados, similares às presas de um aracnídeo. Carlos podia ouvir a pele rasgando, os músculos rompedo e os ossos estalando enquanto a forma de Nikaia se desdobrava ganhando a aparência medonha de um demônio da Tormenta salivando o sangue ácido que borbulhava quando pingava em sua mão. Ela avançou contra sua face e devorou à dentadas seus olhos... tudo ficou escuro. Carlos apenas ouvia o som de sua respiração e o farfalhar de um enxame infinito de insetos...
Afogado
em terror, ele acordou em uma cama vomitando bile e manchando o lençol branco que
há pouco tinha sido trocado. Sua visão ainda estava turva quando ele conseguiu
discernir o contorno dos móveis do quarto em que ele estava e sentia o
confortante calor da luz do sol que entrava pela janela. Acabara de acordar de
um pesadelo tão real que sua primeira reação foi levar as mãos ao rosto para
saber se ainda existia carne. Então, pôde ouvir o barulho dos pássaros no
jardim afora, eles se banhavam num pequeno bebedouro de mármore, por causa
deles, Carlos distinguiu a primeira sensação de segurança. Estava a salvo no
quarto de alguém.
Tudo
em sua volta foi perdendo o filtro manchado de vermelho e aderindo às cores
reais. “Onde estão os outros?”, “Onde está Nikaia?”, foram seus primeiros pensamentos
e ele ficou um tempo pasmo se questionando se essas preocupações eram legítimas
ou se tinham sido implantadas em sua mente pelo... ... por alguma coisa... a
vontade de alguma coisa que naquele momento ele não sabia nomear. Despiu-se do
lençol, viu-se vestido na camisola de um enfermo, pôs seu primeiro pé no chão
firme, ergueu-se com dificuldade, deu dois passos e um repentino enjoo voltou à
sua garganta. Antes que pudesse expelir qualquer coisa, sentiu o chão ceder e o
corpo tombar desastrosamente no chão.
A
porta do quarto se abriu. Ayala tinha uma vasilha de água e algumas toalhas
limpas nas mãos. Exasperada pôs tudo em cima da cama e correu para socorrer
Carlos.
- Carlos, você... você não deveria fazer
qualquer esforço – a clériga de Lena precisou de algum tempo para erguer o
bardo e empurrá-lo de volta para a cama. Ele se sentou enfranquecido e com os
olhos marejados de inevitáveis lágrimas.
- Ayala, eu... – a surpresa de rever alguém
que há muito havia prometido reencontrar quando até então pensava estar morta
foi dissolvida na sensação de fraqueza e incapacidade do estado atual – eu...
não posso... não posso sentir as minhas pernas!
Ayala compartilhou das lágrimas
de sofrimento do amigo, abraçou-o de forma acalentadora e o ajeitou na cama,
recolhendo o lençol sujo e trocando por outro. Depositou a vasilha de água e as
toalhas na mesinha do lado, acariciou os cabelos de Carlos, suspirou enquanto
notava a perplexidade emitida pelo olhar antes austero do bardo – eu devo
chamar Kai, ele disse que queria ser o primeiro a vê-lo assim que acordasse –
beijou-lhe as costas das mãos – não tente se levantar, ainda não sabemos com o
que estamos lidando. Carlos assentiu. Ayala apressou a sair do quarto.
Carlos
olhou para a água depositada na vasilha ao seu lado e pôde ver o seu reflexo de
olhos profundos, pele esquálida, cabelos frágeis e nitidamente brancos. O que havia
ocorrido com ele? O que fez resultar aquela situação? ...ele tinha medo de se
recordar. Preferiu manter a mente em branco. Era fácil para ele manter a mente
em branco... apagada... sem muitos vestígios de existência. A saliva escorreu
de seus lábios.
[...]
Epílogo 2 - Sepulcro de pedra
Mairon
ergueu o corpanzil armadurado de Kai sobre o ombro com facilidade, depois o
arremessou contra uma das paredes do calabouço. O metal trovejou com o baque.
Ali, Mairon pensou, poderia finalizar a luta: esmagaria a cabeça de Kai com sua
maça atroz, se ela não tivesse sido covardemente distanciada dele enquanto
adormecia exausto da última luta. As correntes poderiam fazer o restante do
estrago, mas o cântico que ressoava da boca de duas clérigas presentes no local
pareciam paralisar a vontade de Khalytos.
- VOCÊS NÃO ENTENDEM!? – gritava Mairon através
de uma boca suja de sangue que lhe segregava das gengivas – 94 DE DANO! FALTAM
APENAS 6 PARA 100!!!
Kai ergueu-se tão rápido quanto
pôde e tornou a investir contra Mairon, empurrando-o em direção à parede do
calabouço iluminado pela penumbra – Contenha-se, amigo! Não é minha intenção
ferí-lo! Estou aqui para ajudá-lo!
As
costas de Mairon tocaram a parede e o som feroz de sua risada depreciativa
ecoou pelo aposento. O bárbaro com a armadura de Kyton segurou o corpo de Kai,
reverteu o posicionamento do combate e tornou a batê-lo contra a parede, dessa
vez o segurando pelo pescoço e sustentando seu peso com ambas as mãos – ME FERIR!?!
VOCÊ ACHA QUE PODE ME FERIR!? VOCÊ É APENAS UMA BOLSA SEM SANGUE SUFICIENTE!?
VOCÊ NÃO TEM VIDA SUFICIENTE PARA SATISFAZER O QUE DESEJO! COMO OUSA ME
INTERROMPER!?
-
Dea!!! Hostem sapientia rapit!!! – ressoava o cântico das clérigas enquanto
Kai tentava largar-se do apresamento de Mairon. O bárbaro perdia as forças e o
paladino revertia a situação.
- VELHAS DESGRAÇADAS! – Mairon transbordava
raiva e seu sangue ficou quente como o inferno enquanto seus olhos reviravam revelando
um par de pupilas extras que dividiam espaço em seu globo ocular. Sua boca
agora era um vulcão onde o sangue de seu sacrifício vital entrava em erupção. Sua
garganta inundou-se de líquido rubro enegrecido e ele expeliu tanta vitalidade
que o calabouço empoçou-se de vísceras. Tamanha não fosse a vontade das
clérigas e a dádiva da coragem do paladino, estes teriam abandonado a situação
ali mesmo.
O cheiro de enxofre tomou conta
do lugar – O LEÕES DO INFERNO!!! – gritou Kai que já havia presenciado a
invocação. Uma das velhas clérigas ergueu o símbolo de Lena, a deusa da vida, e
entoou um novo cântico, uma prece rápida que fez levitar do chão um conjunto de
siglísticas douradas no idioma celeste, um círculo de proteção contra a
maldade. A segunda clériga ostentou o símbolo de Tannah Toh, a deusa do
conhecimento, e invocou uma magia que apenas a alta cúpula do clericato
dominava. Anéis prateados emoldurados com o idioma dos serafins de Terápolis
foram lançados contra a escuridão que se propagava no calabouço, tapando o
saída dos demônios como uma rolha na boca de uma garrafa.
- Sinto muito que a situação tenha chegado até
aqui, amigo – revelou Kai à Mairon – gostaria que nós pudéssemos tratá-lo ao ar
livre como faremos com os demais, porém, as suas circunstâncias são diferentes...
Mairon parecia exausto, tanto
devido aos ferimentos, quanto ao esforço físico. Seus olhos apresentaram menos
sandice ao ouvir a voz conciliadora do paladino - ...apenas mais um cavaleiro
infernal, Kai! Eu te peço! APENAS MAIS UM!!! Eles são mais malignos e
incontroláveis do que você acha que eu sou! VOCÊ ESTÁ ERRADO SOBRE MIM! NÃO IMPORTA
O QUE AQUELA PORRA DE DISCO REVELOU!!!
As correntes, por um momento, retomaram
o controle aproveitando-se que as clérigas se concentravam em outras proteções.
Elas se enfiaram como serpentes nas fendas da armadura de Kai e picaram,
enterraram-se na carne e reconheceram o sangue a ser sugado. Kai ganiu com o
sofrimento da dor, mas manteve-se de pé como a mais firme das muralhas.
Reverteu novamente a posição do combate, manobrou um dos braços do amigo
endemoniado contra a parede e gritou pedindo ajuda das madres – AGORA!
As clérigas de Lena e Tannah Toh
elevaram o poder de suas preces naquele dia, haviam planejado aquele episódio e
pedido em orações fervorosas a magia necessária para conter Mairon e Khalytos.
Entoaram um último e exaustivo cântico e lançaram sobre os braços do bárbaro
uma corrente de brilho prateado que tornou-se uma algema numa das extremidades
e uma âncora na outra. A algema cravou-se no pulso de Mairon e Kai tomou distância.
A âncora caiu em direção ao solo e desapareceu etérea entre as pedras do calabouço.
A algema prendeu Mairon contra a parece e ele tentou se livrar no momento que
uma segunda âncora dimensional prendeu-lhe o outro pulso.
Kai e as clérigas abandonaram
Mairon na escuridão do calabouço e seus berros de fúria puderam ser ouvidos até
o momento em que o paladino moveu a enorme pedra para frente da entrada da
prisão do assecla de Khalytos.
[...]
Epílogo 3 - Raven Blackmoon
Os cabelos da nuca de Raven
Blackmoon se eriçaram quando Lorianne beijou-lhe o pescoço. As duas emitiram um
risinho de cumplicidade. Ambas estavam nuas no alpendre de um dos inúmeros palácios
da cidade de Valkaria, onde a visão para a estátua da deusa suplicante era divina.
Elas mantinham o romance em segredo, mas gostavam de aventurar-se a serem
descobertas, coisa que nunca havia ocorrido. Lorianne, a estrela do coliseu de
gladiadores montava um unicórnio em suas batalhas durante o dia e apalpava o
seio de sua empresária feiticera à noite. Naquela noite específica o tesão
havia encerrado após a primeira orgia.
- Algo te aflige hoje, Raven – afirmou Lorianne
ao notar o olhar perdido da feiticeira vagando pela noite.
- Todos os dias algo me aflige, querida –
respondeu.
- Algo sobre a arena? Teme por alguma luta de
amanhã?
- Há muito parei de temer uma derrota sua,
Lorianne. Nunca deixaria acontecer nada à você – confortou Raven.
- Então...? – Lorianne não gostava de muita
conversa, mas sabia que essas eram necessárias.
- Há muito considerei fazer algo grande para o
mundo. Treinar uma campeã foi uma das minhas primeiras ideias. Como eu era
ingênua.
- Não gostou do resultado? – provocou Lorianne
enquanto vestia suas sandálias gladiatoriais.
- Gostei das vantagens de estar muito próxima
da minha campeão – retribuiu um sorriso – mas o mundo de Arton precisa de muito
mais do que uma pessoa obstinada.
- Sinto muito por não superar suas
expectativas – então, deu-lhe um beijo na lateral do lábio. Raven não retribuiu
a provocação. Ela sabia que Lorianne reconhecia a sua preocupação.
- Talude disse que viu em mim o estopim para
algo muito grande. O nascimento de uma esperança, como ele mesmo disse. Não
tenho ideia se minha trajetória está de acordo com as adivinhações dele.
- Não deveria se preocupar tanto. Talude ainda
é o mestre máximo da magia em Arton, correto?
- De fato. O velho biruta ainda carrega essa
alcunha... mas adivinhações... elas... elas são tão evasivas!
Uma batida na porta dos
aposentos de Raven interrompe o diálogo. Com um mero sopro, a feiticeira escancara
a porta. Lorianne acabara de vestir o vestido. Do outro lado, um guarda da
cidadela.
- Porque me interrompe durante a noite? – ralhou
a feiticeira, ainda nua.
- M-m-mensagem de Arkham... Arkham
Braço-Metálico, minha senhora! – responde o guarda sem jeito.
-
Que outro Arkham poderia ser? ...Adiante... – despreocupada, Raven se vira para
a noite, dando ao guarda o vislumbre de suas ancas morenas.
- Alguém busca sua presença...
- Muitas pessoas desejam ter a minha presença.
O que essa tem de especial?
-
M-m-mestre Arkham disse que esta a senhora conhece!
- Eu conheço muita gente. Seja mais específico!
- N-n-não conseguirei ser mais específico,
minha senhora. E-ele me falou sobre o artista amaldiçoado... que pinta quadros
vivos e que vive em Ridembarr, minha senhora. Grigori... Grigori é seu nome, se
a memória não me falha.
Grigori era um nome importante
para Raven Blackmoon.
- Entendido, guarda. Diga à Arkham que em
breve o encontrarei na milícia. Faça de tudo para essa mensagem chegue antes de
mim, certo? Odeio chegar na casa dos outros sem pré-aviso.
- S-s-sim, senhora – o guarda, então, corre
tanto quanto suas pernas permitem.
Loarianne senta-se em frente a
uma penteadeira e começa a escovar suas madeixas douradas – você foi bem estúpida
com o guarda, querida.
- Gosto do jeito que eles gaguejam – então,
conjura teletransporte exato em direção à milícia.
[...]
Epílogo 4 - Calabouço de Valkaria
Arkham Braço-Metálico, líder do
Protetorado do Reino esperava Raven Blackmoon com ansiedade. O vento incessante
que sempre acompanhava a feiticeira irrompeu pelas portas da milícia e antes
que a feiticeira pudesse se materializar, o guerreiro antecipou sua chegada.
- Bem-vinda, Raven. Que bom que respondeu tão rápido
quanto pôde.
- Seja rápido como um sussurro, Arkham. Um
mensageiro falou sobre Grigori de Ridembarr, há muito a Academia Arcana estuda esse
caso... temos novidades?
- Sobre Grigori... nenhuma. Seria mais fácil
você ouvir sobre Grigori primeiro que eu do que o contrário.
-
Então, do que se trata?
- De um prisioneiro. Você o conhece. Ele o
conhece. Ele participou do caso de Grigori.
A mente de Raven precisou se
esforçar para rever tais lembranças. Muita coisa havia se passado.
- As lembranças ficarão menos fugazes quando o
ver.
-
Deveremos descer as escadas até as profundezas do calabouço. Os guardas
colocaram ele nos últimos níveis sob minhas ordens. Algo em seus olhos me
amedronta.
Os primeiros níveis do calabouço
profundo da cidade de Valkaria tratavam-se de uma prisão clara, com muitas
entradas de ar e iluminação. Os prisioneiros de lá recebem visitas frequentes
de clérigas de Marah que acompanham os perfis psicológicos individuais afim de reabilitá-los
à lei e socialização local. Esse padrão, entretanto, muda conforme os níveis
mais profundos da prisão são alcançados. Escuro, solidão e loucura é reservada
àqueles que habitam o interior da profunda masmorra, monstros ameaçadores
aparecem ocasionalmente no local, vindos de não se sabe onde.
Nada que pudesse atrasar o líder do protetorado e a primeira pupila do mestre
máximo da magia.
Arkham do Braço Metálico
encaminhou Raven Blakmoon pelos corredores escuros e nojentos do Calabouço de
Valkaria durante alguns minutos até que chegassem próximo ao local desejado.
- Porque o indivíduo em questão está preso? –
perguntou a feiticeira.
- Atacou repentinamente a guarda. Ele tinha um
propósito: vê-la.
- Deve ser um gênio, então – debochou Raven.
- Eu diria que um desesperado. Não compreendo
se o que ele fala é conhecimento ou loucura.
Uma chama de curiosidade começava
a inflamar na mente da feiticeira. Meia-hora atrás estava a ruminar o passado.
Sua atenção voltou à cena quando Arkham apontou para a escuridão que ocupava uma
das celas. Raven Blackmoon aproximou-se das barras da cela de forma
voluntariosa:
- Eu sou Raven Blackmoon. Ouvi sobre a sua
ânsia de me encontrar. Pois bem, você conseguiu chamar a atenção, não só minha,
mas do Protetorado do Reino inteiro.
Uma presença pequena e
desfigurada engatinhou com fragilidade pela escuridão do calabouço, vestida com
um manto maltrapilho. O rosto deslocou-se com a aleatoriedade de alguém paranoico
e, então, brilhou intensamente em vermelho. Apenas uma órbita, sangrando no
escuro perpétuo.
- Finalmente... Raven... Blackmoon... – a voz soava fraca
e cansada. Tratava-se de um membro da raça do povo-rato, alguns erroneamente
chamavam o tipo de homem-rato, mas eles tinham muitos nomes, tarou e moreau são
exemplos.
- Você é realmente familiar, tarou. Diga-me o
seu nome – Raven Blackmoon ficava cada vez mais curiosa.
- Eu não tenho um – a voz soou como um
sussurro que estranhamente ecoa pela escuridão - ... mas também não importa. Me
chame de experimento. Rato de laboratório.
- Não estou entendendo...
- Eu estive com eles. Por um momento, fui um
com todos e agora não sei se sou indivíduo ou múltiplo. Sei que já fui
tempestade antes do tudo e agora sou tempestade depois do nada.
- Raven, se afaste da sela... – recomendou Arkham,
travando uma maça estrela num de seus braços metálicos, mas a feiticeira já não
o ouvia.
- Eles sorveram minha família e a minha terra.
Agora luto para que eles vomitem tudo de volta, vivo ou morto – o tarou
curvou-se diante os pés de Raven Blackmoon.
A feiticeira, então, se abaixa
para fitar a pobre criatura.
- ... meu desejo sempre foi ser útil à minha
terra... e à Academia Arcana.
Agora, declaro-me um servo!
[...]
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