Introdução à Retrospectiva 2022

 

 

Um bloco de anotações qualquer...

Nas profundezas da Ordem Arcana de Mordae existe a maior biblioteca do mundo, bem, talvez, de muitos mundos, já que trata-se de uma miscelânea compartilhada entre pelo menos setenta e dois planos. Os alunos da Ordem Arcana têm acesso apenas aos primeiros andares do que supõe-se serem trezentos níveis de corredores labirínticos repletos de guardiões mágicos, magia antiga, conhecimento perdido e, é claro, livros, infindáveis títulos de livros deste e de outros mundos.

Mas, neste momento, não estamos acompanhando um explorador qualquer. Borrado de pó, pálido devido à ausência de luz do sol e mais esquálido que um zumbi faminto, encontramos um bardo. Seus cabelos são muito mais que ruivos, são ígneos, um tom alaranjado feito chama que não se extingue. Desceu mais uma longa escadaria até um andar que já não fazia sentido saber qual era e, ao avistar a luz eterna de velas, assobiou uma breve magia para apagá-las. Sim, ele devia fazer aquilo, pois seu nome era Mathariel e, devido a uma maldição muito antiga adquirida quando as Ilhas de Maldûn ainda eram vivas, sua mera presença transforma uma tímida chama num incêndio... assim, o bardo explorador invocou Collete, sua iluminação voluntária e também uma pixie muito curiosa.

Collete espirrou assim que sentiu o bolor dos livros:

– Caraca, você ainda tá aqui, aiwë?

Apático (coisa que, diga-se de passagem, era um temperamento bastante raro em Mathariel) ele analisou mais uma estante e puxou um livro grosso com capa de pedra.

– Ainda não encontrei o que procurava, lassë.

– Você é realmente teimoso. Sabes que já se vai um ano nessa procura interminável aqui, dentro da biblioteca planar? Isso não é saudável pra ninguém, independentemente do quão fantástico você é.

– Teimosia, não, perseverança. Um dia, estava lendo um livro que encontrei logo nos primeiros trinta andares da biblioteca e me surpreendi com uma citação: “Nunca houve muita esperança. Apenas a esperança dos tolos”. Me atenho à ela.

– Realmente, uma tolice. O que espera encontrar?

– Uma luz no fim do túnel. Algo que toque meu coração. Os ventos me levarão ao que fazer...

– Mas nem venta aqui embaixo.

Mathariel riu enquanto se esforçava para colocar o livro de pedra no canto novamente, então, quis o destino que no seu exato milionésimo espirro, ele deixasse cair justamente o livro mais pesado que havia encontrado até então.

O livro de pedra caiu pesadamente e de seu impacto ressoou o barulho de um trovão poderoso que mais parecia o estouro de uma erupção acompanhado por um terremoto que fez os alicerces daquele e de muitos andares da biblioteca tremer. O barulho persistiu mais alguns segundos, preenchendo de surpresa todo o silêncio labiríntico, livros caíram de suas estantes e se espalharam desorganizadamente nos corredores e, em seguida, a capa do livro de pedra, que agora estava em migalhas, esquentou-se como o calor de placas tectônicas.

– Merda... – Collete sussurrou e a maldição de Mathariel agiu.

Em segundos um incêndio se alastrou e o bardo só pôde correr:

– Até agora não tinha rolado nenhum erro crítico!

– Você precisa sair daqui, aiwë, precisa sair agora! – Collete implorou enquanto acompanhava o bardo num voo desesperado.

– Não... você não entende! Foi muito difícil conseguir a pedra de arcanium. Elas são uma das coisas mais raras de Draganoth e eu só posso usar uma vez. Se eu sair da biblioteca planar usando ela, todo esse tempo de pesquisa terá sido em vão!

– E você acha melhor tocar fogo em todos os andares da biblioteca enquanto corremos? Não... pior! E se você despertar um dos guardiões? Você sabe que nem mesmo você será capaz de lidar com um deles. Eles foram criados sem alma e sem coração, nenhuma das suas canções pode ludibria-los.

– Eu... eu... preciso pensar!

E queria o destino mais uma vez brincar com a sorte de Mathariel, pois o bardo, por descuido, tropeçou num dos livros caídos e tombou. O incêndio tornou-se maior e parecia ter forma. Mathariel pôde ouvir as chamas sussurrando “Eu posso te ver. Um dia vou te encontrar, bardo trapaceiro!”

Mathariel então agarrou-se ao livro em que ele havia tropeçado, encontrou a pedra de arcanium em suas vestes e entoou

uma antiga magia. Dois segundos depois estava no centro da Ordem da Arcana, cercado de fuligem e cinzas... com um único livro nas mãos.

[...]

Tempus é um plano minúsculo. Uma cápsula imune ao tempo e espaço. Uma dúzia de esferas vigilantes rodeavam o local formado de polias e engrenagens. A impressão que se tem quando dentro Tempus é de estar dentro de um imenso relógio dourado no qual você tem o controle de ajustar os seus ponteiros. Ali, digamos que na maioria das vezes, é um esconderijo para Mathariel e é ali que encontramos o bardo mais uma vez depois de todo aquele desastre narrado anteriormente.

Mathariel está insatisfeito (outra sensação rara no bardo). O livro que lhe restara de uma escolha infinita mais parecia um bloco rasurado de anotações escritas no idioma comum. Ele conjurou suas magias de adivinhação sobre o item e não discerniu auras mágicas. Folheou o livro várias vezes e não encontrou magia... era, definitivamente, um livro sem qualquer valor, jogado naquele andar da biblioteca planar por mero desprezo de um dos guardiões.

– Perdão, aiwë, mas a situação é engraçada – Collete dava gargalhadas – você devia escrever um livro “Como perder tempo na sua vida”.

Normalmente Mathariel não se chateava com piadinhas, especialmente vindas de Collete, mas aquela situação havia chegado a um extremo.

– Posso resumir minha última década em uma única palavra: fracasso. Foram muitos os meus planos e nada deu certo. Minha guilda não vingou, meus heróis foram dominados por illithids, gastei um favor que a Ordem Arcana me devia, levei um fora de Hela d’Helm, virei um dos sujeitos mais perseguidos de todos os planos e agora perdi uma grande chance de encontrar algo realmente significativo!

Collete caiu mais uma vez na gargalhada. Queixar-se não era comum para Mathariel e ver aquela novidade trouxe muita felicidade para a pixie.

– Mas, do que se trata o texto, afinal? – ela perguntou curiosa.

– É uma narrativa simplificada, suspeito que apenas um roteiro que seu criador pretendia enriquecer num livro de verdade. Esse título não é de meu conhecimento, então, é possível que o escritor sequer tenha colocado seu plano em prática...

– Qual é o título?

– Deixe-me ver... aqui está, se chama “Escuadrão Dezastre”... bem, como pode ver, também nunca foi revisado. Foi escrito por um bardo chamado Drogomyr...

[...]

– Magnífico! Interessante! ...Esplêndido! – Doutor Kalico fuçava a maquinaria de Tempus.

– Melhor não tocar em nada, irmão – Arya alertava enquanto encostada de braços cruzados numa engrenagem parada qualquer. Ela jamais confessaria, mas estava definitivamente com medo de todo aquele espaço

Arya e Doutor Kalico são da raça felina e também são irmãos, vindos de uma das muitas tribos de Chattur’gah. Arya era uma felina de pelagem branca que seguia o estereótipo bárbaro que sua terra natal descrevia, já Kalico era completamente o oposto, tinha pelagem negra, vestia-se como um urbano e se interessava por tudo, exceto combate físico, coisa que sua irmã sabia conhecia muito bem.

– Diga-nos logo, JoJo, o que você quer? – perguntou Arya impaciente com as interjeições do irmão. Tudo interessava Doutor Kalico, ele era uma enciclopédia viva com páginas infinitas, mas Arya achava a maioria dos interesses do irmão desnecessários, sua clava clamava por quebrar ossos de watalla e isso ela já não fazia a algum tempo.

Uma gnoma, velha conhecida de Arya, parou de apertar uma porca com uma chave de torque maior que sua cabeça. JoJo estava no segundo andar de uma criação robótica de genialidade considerável, criar coisas era seu passatempo, mas o tempo não passava em Tempus, logo, a gnoma se perdia em momentos incalculáveis aperfeiçoando seu robô gigante. Guardou sua ferramenta numa bolsa de espaço sem fim e tirou de lá uma chave de fenda flutuante.

– Preciso de mais algumas peças. Um metal estranho, vindo das estrelas, encontrado na Espinha do Mundo e guardado por velhos senis... eu diria que é até fácil encontrar, difícil é sair vivo e são do encontro com aqueles caras...

– ...e para que isso tudo mesmo? – Arya indagou.

– Eu não sei, Arya, já falei, eu apenas estou dando ouvidos à dissonância. Você também é uma clériga, não é? O que você faz quando Zoe lhe pede algo?

Arya não precisou responder.

– O que é isso, JoJo? – interrompeu Kalico – não parecem ser anotações suas – o felino tinha um bloco de notas na mão.

– Não são mesmo. Isso pertence ao Mathariel, há muito ele jogou fora, mas parece que o chão de Tempus é sua lata de lixo.

Doutor Kalico folheou as anotações e ficou intrigado:

– Eu conheço esses sujeitos da história. D’Angelo... Ryuujin... são eles, Arya! ... e aqui... deixa-me ver... sim! Aqui estou eu, escrito com “C”, ao invés de “K”, mas, definitivamente, sou eu. É a nossa história!

Arya arrancou o bloco de notas de Kalico.

– Mathariel está contando a história sobre esses sujeitos? O que eles têm de especial?

JoJo precisou se esforçar pra desviar sua atenção da própria criação. Ela tirou um novelo e um par de agulhas de dentro da sua mochila de carga e guardou o item novamente pensando consigo mesmo: “porque eu gastei peças de ouro com um kit de alfaiataria? Eu nunca precisei costurar...” e, enfim, respondeu:

– Oh, não, não... Essas anotações não são de Mathariel, são de outro sujeito... Drogomyr, o nome dele, eu acho...

Kalico tomou o bloco de notas da irmã para si novamente, analisou e em dez segundos observou algo:

– Não, JoJo... essas anotações são do próprio Mathariel. É exatamente a mesma letra, o mesmo pingo na letra “i”, a curva nos “l”, a acentuação reta no início e curvilínea no final, os tremas feitos em pequenos círculos da direita para a esquerda... eu já li muitos livros escritos por Mathariel... ou isso são anotações dele ou é uma falsificação épica...

JoJo não parecia muito interessada, pensou cinco segundos e falou:

– Não entendo como bardos funcionam.

Doutor Kalico ficou intrigado... talvez ele também não soubesse.

[...]

Em outro lugar, Mathariel dedilhava sua lira cujo as cordas eram feitas do fio de cabelo das dez musas que inspiraram os dez maiores heróis da história de Draganoth. Sendo um dos maiores bardos do mundo, aquela canção era capaz de deixar estupefato qualquer mortal, qualquer indivíduo terminaria de ouvir aquela música perdidamente apaixonado pelo bardo, exceto por Hela d’Helm.

– Diga-me, querida Hela, vänya de minha vida... esta canção a deixou minimamente excitada? – infelizmente havia sido uma pergunta muito séria.

– Já lhe disse, Mathariel... eu sou comprometida – respondeu a, também, barda.

– Quem é seu esposo mesmo?

– Bahamut, o deus dos dragões metálicos.

– Não parece grande coisa... aonde havíamos terminado?

Hela d’Helm é uma humana de beleza estonteante, as canções que dedilhava em sua harpa, a sabedoria que demonstrava em suas palavras, a coragem que reservava em seus atos e o carisma que esboçava em seu sorriso haviam chamado a atenção de Bahamut que, de fato, é o deus dos dragões metálicos. Ah! Outra coisa importante sobre Hela é que ela tem mais de três metros de altura.

– O fracasso com a Ordem da Arca...

– Oh sim! Me lembro! Pensei bem e, para falar a verdade, com um nome desses, com esse “ordem” no título, vindo de um bardo afrontoso como eu... tinha tudo para dar errado, não é?

Hela d’Helm assentiu com um sorriso encantador que fez Mathariel se esquecer de novo o que estava fazendo.

– Como é mesmo o nome disso que estamos fazendo? ­– indagou o bardo.

– Terapia. Você concordou em participar disso. Isso é... deveras importante depois daquele seu acidente com os cristais de drakhain...

– Oh, sim! Terapia. Um estudo magnífico, de verdade, mas certamente funcional apenas nas mentes humanas ou similares, acho que não está sendo efetivo na minha mente dracônica!

Hela d’Helm suspirou:

– Com quem estou falando agora?

Mathariel ficou um tanto incomodado com aquela pergunta aparentemente ilógica e respondeu:

– Com Drogomyr, é claro... quem mais seria?

[...]

Arya e Kalico subiam a Espinha do Mundo por uma nova trilha.

– Não é que o destino sempre nos carrega de novo para essas malditas montanhas? Eu perdi um grupo aqui, sabia? Já lhe contei essa história, não é? Tinha uma baleia encalhada no topo de uma dessas montanhas e... irmão, está me ouvindo? – resmungou Arya – Kalico?

– Hã? Ah, sim. Verdade... baleias são... enormes... – respondeu o felino perdido em pensamentos.

– Normalmente quem não cala o bico é você. O que está acontecendo?

– Estou curioso...

Arya revirou os olhos. Ela conhecia o irmão muito bem, agora, o foco dele era desvendar um enigma criado pela sua própria cabeça e, muitas vezes, a resposta era insignificante.

– Esse bloquinho de notas do Mathariel... – o detetive tentou continuar.

– Quê? Você roubou isso de Tempus!? – exclamou Arya em tom acusatório.

– Roubei nada. Não ouviu o que a JoJo falou? Mathariel jogou isso fora...

– Muito bem irmão, agora você virou um goblin fuçado de lixo – desdenhou Arya.

– Você brinca, mas os goblins andam evoluindo muito deste o final da Quarta Era e...

– O que tem o bloco de notas? – interrompeu Arya ao antevir o discurso politicamente correto do irmão.

– Não sei. Meu instinto diz que ele é de extrema importância. Sabe aquele sexto sentido que eu tenho e já tentei lhe explicar o que é?

– O mesmo que fez você abandonar nossa família lá em Chattur’gah? – cutucou Arya.

– Esse mesmo! – respondeu Doutor Kalico ingenuamente nada ofendido – todo esse pequeno resumo escrito aqui parece tão devidamente encaixável, como se dezenas de peças de várias histórias pequenas se montassem feito um quebra-cabeça pra formular uma única... campanha. Acho que essa é a palavra certa... tipo, que coincidência Ryuujin não estar em Asura quando o reino foi derrotado, se ele estivesse lá, seu código de honra não o deixaria fugir, eu acho que aquele velho da barba sabida devia estar tramando alguma coisa... e o D’Angelo com todo esse prelúdio profano e ainda assim recebendo as dádivas de um deus bondoso? E afinal, quem é esse tal de Capitão Rocha Cinzenta? Não me lembro dele e ele parece importante na história... então...

– Bem, temos tempo de viagem o bastante, porque não vai contando? Se essa história fala sobre você, em algum momento deve ter citado à mim... quem sabe, do nada, apareça alguma informação sobre a localização de um watalla...

Doutor Kalico voltou para o início das anotações todo empolgado. Raras as vezes Arya se interessava em ouvir sobre suas teorias...

– Começamos pelo capítulo um, “Corvis, a cidade onde tudo começou”.

[...] Continua na segunda parte do conto.

  

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