Tenha lindos sonhos

[Este conto é a continuação de Uma jornada inesperada 📖]

O barulho de água parecia ficar mais forte com o passar do tempo. Era possível começar a sentir a umidade tomar conta das botas. Poderia ser um bom sinal. Água tem que escorrer para algum lugar, se não aquele espaço já estaria inundado, dessa forma deveria ter algum meio de sair dali. Mas onde exatamente era ali? E o que estava a fazer naquele lugar? Essas perguntas lhe tiravam um pouco da confiança. Sua mente estava confusa e desnorteada. A ideia de sair era mantida com muita luta, como se estivesse forçando sua cabeça a nadar contra um lago profundo de denso óleo. Por fim, decidiu que era melhor voltar a seguir a água.

Parecia que estava começando a ficar mais interessante para a outra presença a maneira como sua presa locomovia-se. Estava perdendo o rumo e isso a divertida de uma maneira muito particular. Ao contrário do que estava ocorrendo com seu mais novo brinquedo, estava ciente de tudo que ali ocorria. Sua teia havia sido jogada e por fim, alguém tinha sido distraído demais caindo nela.

- Sapphire! Sapphire!- uma voz gritava ao longe. Uma voz conhecida formando um eco pelo local.

Então aquela que estava a caminhar na escuridão revelava-se como sendo a inquisidora. Olhava para um lado e para o outro numa tentativa mal sucedida de ver quem lhe chamava. A voz era reconhecível, poderia percorrer vidas inteiras sem esquecer-se dela. Era sua mãe. Ela sorria sem entender o que estava acontecendo e corria, corria desesperadamente. A voz que chamava por ela, começava a ficar mais alta e mais próxima.

Rever sua mãe seria uma alegria imensurável. Tudo o que mais seu coração desejava. O impulso lhe fazia parecer uma criança que apenas queria chegar até seu destino. O que não daria para abraçar a mãe novamente?  

- Sapphire! Sapphire! – outra voz, mas desta vez masculina. Era seu pai, porém vinha de outra direção.

Ela colocava as mãos na cabeça e sua corrida era interrompida. Para qual lado deveria ir? Não estava enxergando nada sequer a um palmo de seu nariz. Em meio as suas perguntas um estalo lhe vinha à cabeça, como um choque. Aquilo não era real, era? Seus pais estavam vivos? Parecia que sim, mas tinha consciência da morte deles. Não importava agora! Estava com o coração cheio de esperança. Poderia revê-los outra vez, mas para qual lado correr? As vozes enchiam o lugar, transformando-se em ecos, enquanto uma fina teia cor escarlate encobria o seu cabelo no topo da cabeça. Sentiu levemente um fio de teia tocar seu rosto. Num movimento impulsivo, puxava aquele fio que estava entrelaçado a outros e mais outros.

- Sapphire! Sapphire! – as vozes começavam a ficar mais frequentes e desesperadas. – Vai nos deixar novamente, filha? – perguntavam em coro, porém vindo de direções opostas.

- Não! Não deixarei vocês. – enquanto ela tentava correr para qualquer lado que fosse, sentia suas mãos pregadas naqueles fios vermelhos. – Que porcaria! Como pode haver tanta teia assim do nada? E ainda mais dessa cor? – ao livrar-se com muita dificuldade, as vozes cessavam por um breve momento. Ela sentia um medo crescente em seu peito. E agora?

Um pouco de luz entrava por uma brecha, ela conseguia ver a silhueta de sua mãe. Estava presa. Grossas correntes de ferro se ligavam aos grilhões em seus pulsos e tornozelos, percorrendo até sumirem na escuridão da gruta. O olhar dela era penoso e decepcionado, as lágrimas que escorriam dos olhos eram de um vermelho vibrante, caindo em um recipiente que estava depositado no chão. A elfa de cabelos longos e claros poderia ter sido bela algum dia, mas estava com marcas de chicotadas e o rosto desfigurado pelo sofrimento. Assemelhava-se mais a um defunto do que a lembrança de Sapphire tinha em suas memórias.

- Você me abandonou, filha! Por que permitiu isso? Eu não era uma boa mãe pra você? – as lágrimas continuavam a cair e pingar. Agora o barulho de água revelava-se como sendo os pingos do sangue.

- Você nos deixou passar por este sofrimento. – a voz do pai soava do outro lado. Ele também tinha marcas em seu corpo. O cabelo era mediano e negro. Também estava desfigurado, porém o seu aspecto era frio e de desprezo. Estavam apenas com a parte de baixo das roupas e era notável que vários cortes tinham sido infligidos em sua pele. Hematomas estavam espalhados pelo corpo e um dos olhos estava fechado e muito roxo. O outro lhe mirava e era da cor de tempestade.

Dando alguns passos na direção do pai, ela tentava explicar-se, dizer que não era aquilo que ela desejava. Que daria tudo, até a própria vida, se pudesse trazê-los de volta. Foram necessários apenas quatro passos para um grito de dor agudo preencher todo o local. A mãe berrava como se algo a estivesse queimando. Sapphire correu para ela, porém foi à vez do pai berrar em agonia. Aquilo estava torturando-a de tal forma que seu corpo começara a tremer. O que ela poderia fazer naquela situação?

- Me perdoem! Eu não tinha como salvá-los. E-eu não sabia... Eu não sabia! – ela falava entre soluços, enquanto caia de joelhos com as mãos no rosto. Sua cicatriz começava a doer de uma forma que nunca antes havia ocorrido. Ao tocar nela, percebia que sua mão estava úmida com sangue, assim que suas roupas em contato com o solo úmido também se encharcavam da coloração rubra.

- Não deveria ter deixado seus pais sofrerem assim... – uma voz grossa e grotesca lhe dirigia a palavra do alto. – Acredito que você deva pagar por todos os seus pecados, não é mesmo? –

Ao olhar para cima, ela conseguia ver apenas seis pares de olhos a observando, duas quelíceras enormes e oito patas e pontas vermelhas e pontiagudas que estavam a tecer uma tênue, mas poderosa teia ensanguentada. Tratava-se da presença que estava espreitando. Aquele instante de sofrimento e fragilidade era tudo que ela precisava e por tanto estava ansiando. Sua presa finalmente havia caído em sua armadilha e agora estava no ponto certo.


[...]

Os olhos pequenos e desenhados de uma maneira exótica ainda observava com cautela a movimentação dos malfeitores que se afastavam com certa pressa, porém parecendo muito satisfeitos. Esperava que o grupo estivesse a uma distância segura para poder sair de seu esconderijo. Tinha perseguido aquele drow por dias, tentando achar seu paradeiro ou refugio. Por mais que não fosse do feitio dele envolver nos assuntos alheios, aquele sacripanta tinha cruzado o seu caminho de uma maneira especialmente ruim. Precisava encerrar os seus assuntos com ele e não poderia descansar enquanto o elfo negro respirasse.

Quando verificou que estava seguro, saiu devagar de dentre as folhagens mais altas. Um homem de aparência excêntrica encarava o caminho que deveria percorrer. Estava convicto de que da próxima vez que encontrasse com aquele bastardo, um dos dois ia morrer. A vestimenta lhe cobria o corpo por inteiro, apenas expondo as mãos e os pés. Era de um tecido já puído e sujo pelos dias que estavam sem lavar-se. Aquele tipo de roupa era totalmente desconhecido no reinado, possuindo a cor azul escura, enquanto o tecido que vinha abaixo era de um branco encardido. Nos pés tinha uma espécie de sandália feita com madeira. A barba estava por fazer e os cabelos pretos e lisos estavam presos próximos a nuca. Um chapéu de palha simples, porém de estilo estranho estava pendurado em suas costas.

Seus passos eram calmos e precisos. Era praticamente inaudível quando o guerreiro de espadas longas e forasteiras movia-se entre a floresta. Agora era sua vez de perseguir. Estava no rastro daquele desgraçado a dias e agora o via raptando duas damas. Não importava que não fossem humanas. Arrancaria a erva daninha pela raiz e não passaria daquele dia. Estava determinado a realizar tal feito e em nenhum momento sequer pestanejava.

O vento lhe favorecia, pois estava carregando seu cheiro para o lado oposto ao qual ele estava indo. Seria uma perseguição auspiciosa.

As horas se passavam e ele por fim chegou próximo a gruta onde Lar’kull e seus companheiros havia decidido abrigar-se para cometer seus crimes e torturar as elfas. O homem estrangeiro permanecia ao lado de fora, novamente escondendo-se para que pudesse analisar com calma o local e ter vantagem. Era importante que não fosse descoberto para que pudesse pegá-los de surpresa. A tarefa de acabar com três drow não era tão fácil assim, mas valeria o esforço.

- Deem o antidoto para a minha joia querida. Seria muito deprimente se nós não pudéssemos aproveitar de cada reação dela enquanto esfolamos sua pele e lhe despedaçarmos o corpo aos poucos enquanto ela ainda vive. – a voz do raptor era escutada. O barulho de correntes podia ser ouvido.

Ele teria algum tempo enquanto o antidoto não fazia seu efeito. Seria o suficiente para conseguir impedir que aquela barbárie continuasse. Mesmo que tivesse de arriscar sua vida. Era uma causa bem mais nobre que mera vingança. A paciência era uma virtude e um plano era do que ele precisava para ter sucesso naquela empreitada, ambos estavam sendo postos em prática.


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