Que sombra é aquela que sorve no alto da colina?




            O mensageiro que havia resolvido apressar seu serviço e decidira cavalgar até o vilarejo de Passo do Andarilho mesmo que, para isso, tivesse de enfrentar uma estrada longa durante a noite, não somente estava exausto após a jornada, mas também disfarçava em seu rosto o medo que passara há poucos minutos, ainda na vereda que levava à Taverna do Velho.

A taverna era o único estabelecimento que ainda permanecia de portas abertas e luzes acesas naquele aparente vilarejo pacato àquela hora da noite. Passo do Andarilho é um lugar conhecido por ser um ponto comum entre comerciantes, mascates e mensageiros. Já passava muito da hora de dormir, mas ainda havia uns bocados desocupados aproveitando-se da cerveja e da lareira da taverna. O motivo disso é que Passo do Andarilho não se podia permitir dormir por inteira, já que as visitas inesperadas eram frequentes. O mensageiro era apenas mais uma dessas visitas inesperadas.

Somente uma das janelas estava escancarada e foi de lá que o mensageiro pôde ver e ouvir movimento no lugar. Ele amarrou as rédeas de seu cavalo nos alicerces de madeira que compunham a sustentação do alpendre da taverna. Havia cadeiras de balanço solitárias acompanhadas de pesados cobertores velhos no saguão, o vento do norte às balouçava e o ar era como um sopro de gelo por causa da proximidade com o rio responsável pela reserva aquífera daquele vilarejo.

            Assim como os clientes da Taverna do Velho, o mensageiro preferiu o calor provido pela fogueira e a cerveja, entrou no estabelecimento e foi recebido por olhares que eram mistos de susto e desconfiança. Ele se aproximou da bancada da taverna e o taverneiro veio ao seu encontro:

            ̶ O que o mensageiro deseja?

Este era um senhor maduro, com pouco cabelo no topo e muito pelo na barba e braços, seus olhos eram estranhamente acusadores. Ele reconheceu o ofício do visitante, pois este trazia atrelado ao seu ombro direito, uma bolsa de couro contendo pergaminhos.

            ̶ Uma caneca de cerveja, igual à de todos.

O taverneiro puxou a caneca abaixo do balcão e começou a enchê-la num barril próximo. Havia outros cinco indivíduos no lugar, todos sentados em cadeiras próximas à lareira, aproveitando o calor, a cerveja e o tabaco. Entre esses havia um homem velho de barbas compridas e grisalhas cujas demais cadeiras estavam todas voltadas para ele.

            ̶ Desculpe-me se estou sendo invasivo, senhor taverneiro, mas não pude deixar de notar seus olhares. Por acaso pensam que não sou de confiança?

O taverneiro colocou a caneca transbordando cerveja no tampo do balcão e disse:

             ̶ Seus olhos também não pareciam estar bem.

             ̶ De fato, e nenhum de vocês manteria olhos calmos se tivessem visto o que eu vi!

Um dos hóspedes da taverna levantou-se abalado e exclamou:

             ̶ Você viu um cavaleiro cavalgando uma montaria sangrenta!

A adivinhação impressionou o mensageiro por um minuto:

             ̶ Certíssimo. Deduzo, então, que aquele sujeito faz visitas frequentes ao redor desse vilarejo. Ele permaneceu em meu encalço durante algum tempo, nunca vi a minha pobre montaria correr tanto! Porque a milícia de Passo do Andarilho não dá cabo àquela bizarrice?
Ouvindo isto, o velho tirou seu cachimbo da boca e em meio a fumaça revelou:

             ̶ Ninguém aqui pode lutar com o que só se permite ver quando quer. Nenhuma espada de soldado é capaz de ferir alguém que não é feito de pele ou osso, mas sim do frio, da névoa e da lamentação.

O mensageiro boquiabriu-se duvidoso:

             ̶ A que se refere, senhor?

            ̶ Ele refere-se a uma aparição, mensageiro. Um fantasma, um espírito ou um espectro, como queira chamá-lo.

Respondeu o taverneiro enquanto limpava o balcão:

           ̶ Conversávamos sobre isso quando o mensageiro chegou. É uma história conhecida em Passo do Andarilho. Clérigos vieram de outras terras e abençoaram o túmulo no alto da colina. Eles prometeram que a aparição do cavaleiro sangrento desapareceria para sempre, mas, de fato, nunca aconteceu.
          
             ̶ Não vi túmulo algum no meio do caminho.

O velho acabara de depositar mais tabaco em seu cachimbo e, observando as chamas fascinantes da lareira, explicou:

             ̶ O túmulo de Rosalyn de Arthas é o motivo da existência sobrenatural do cavaleiro sangrento. Você não o viu, pois a estrada desce no caminho que o traz até este vilarejo, enquanto o túmulo encontra-se num acúmulo de pedras próximo ao nosso rio.

            O velho contador de histórias, que o mensageiro descobriria, mais tarde, ser o responsável pelo nome da taverna na qual estava, ajeitou-se na cadeira de balanço num acomodamento típico de um narrador que está prestes a dar ênfase à sua história e enfeitiçou sua plateia descrevendo o que ocorrera há muitos anos em Passo do Andarilho.

Este foi o seu relato:

Conheci Arthas em sua juventude, um garoto que foi se tornando forte com o tempo, conhecido pela lealdade para com a milícia e por seu comportamento ordeiro. Ele possuía uma voz de comando ímpar. Adquiriu respeito, mesmo que, de fato, nunca quisera alcançar algum. Ao contrário do que se pode imaginar de alguém tão diligente, Arthas era simpático e amigável e permaneceu assim até que a sua moral foi atingida.

Arthas casou-se muito cedo e muito cedo se tornou viúvo. Sua esposa se chamava Rosalyn e era uma jovem bela de cabelos dourados e olhos verdes como a grama num amanhecer. Rosalyn possuía um dom para o canto e tinha o sorriso mais luminoso que um homem poderia ter a sorte de ver todos os dias. Ela morreu devido à praga e seu túmulo foi escavado no alto da colina mais próxima à Passo do Andarilho, lugar que ela visitava diariamente por apreciar a correnteza lenta do rio.

Rosalyn era filha de um velho taverneiro do Vale do Percurso, um sujeito sortudo que soube aplicar suas peças de ouro no negócio certo. Quando Arthas e Rosalyn se casaram, ele presenteou o casal com o dote equivalente a algumas centenas de peças de ouro e um corcel de raça fina, vindo das terras litorâneas de Sazancros.

Vivia nessas terras, também, um jovem militante chamado Donovhan. Este era um garoto mimado sem qualquer razão, pois nascera de berço pobre, mas mantinha o queixo erguido como alguém da nobreza. À flor da idade, ele foi recrutado e colocado sobre a proteção de Arthas que o treinou na arte da espada e do escudo. O militante, protagonista desta história, via Donovhan como um diamante bruto que precisava ser lapidado e, por isso, tinha grande apreço à missão de colocar juízo na mente do menino.

            Certo dia, entretanto, Arthas recebeu a notícia de que seu pupilo havia morrido vítima de uma lâmina estocada no peito. O responsável por isso era outro jovem chamado Willham, um aprendiz de ferreiro conhecido por sua prodigiosa arte em fabricar espadas e por, certa vez, ajudar um pobre aldeão a não ser esmagado pelo peso de uma carroça a qual Willham ergueu usando como alavanca o próprio corpo.

Tomado por uma ira que é digna somente dos ordeiros, Arthas sabia qual era o seu direito. Encontrou Willham e exigiu um desafio, o ferreiro destemido armou-se de sua melhor espada e não teve outra escolha a não ser aceitar o embate. A luta foi rápida. Arthas era um veterano e, por isso, superior à falta de técnica de Willham. O combate terminou com o ferreiro tendo sua garganta mutilada por um corte rápido e infalível da lâmina do soldado.
Ao término da luta, frente ao jazido corpo de seu oponente, Arthas ouviu o choro de uma mulher. Esta se chamava Valentina e era a esposa de Willham. Valentina caiu aos prantos, arrastando-se humilhada até o corpo de seu amado, olhando incisivamente para Arthas, dona de um ódio impiedoso, porém, ineficaz.

Naquele momento, o coração de Arthas encheu-se de arrependimento e a ira dos justos tornou-se piedade. O militante conhecia o futuro daquela mulher, seria infeliz e miserável, ele havia condenado aquela jovem. Ninguém ofereceria trabalho à parceira de um traidor, muito menos se casaria com alguém de estirpe tão irrelevante.

             ̶ Tu ainda tens chance, senhora, mas ela não será em Passo do Andarilho. Esqueça-se de seu marido, esqueça-se de seu passado, daqui a três dias retornarei e te levarei ao Vale do Percurso, a cidade mais próxima daqui. Lá, eu contarei a sua história a um velho conhecido que não se importará em acolhê-la e ele lhe arranjará um trabalho.

Dito isso, entregou um saco com peças de ouro à Valentina e voltou ao seu ofício. Planejou cuidadosamente o que diria ao seu velho sogro e como o convenceria a aceitar a mulher. Estava convencido de que ele aceitaria, pois era o dono de uma taverna que necessitava de atendentes.

Três dias se passaram e, como prometido, Arthas estava na porta da antiga casa do ferreiro e pôde ver Valentina à sua espera, vestida para viagem e com sua trouxa a tiracolo. O militante cavalgava o corcel herdado de sua mulher, um imponente garanhão cujo relinchar soava como uma trombeta de guerra. Montaria perfeita para uma viagem que duraria três dias.

            O cavaleiro, em seu porte militar, decidido a olhar sempre para além do caminho e a moça triste de olhos fugidios não compartilharam qualquer palavra. Viajaram em silêncio inquietante, fazendo pausas a cada duas horas para que o corcel se alimentasse da fina grama e os cavaleiros da ração de viagem.   

Na segunda pausa do terceiro dia, faltando pouco mais que a metade de um para chegar até o Vale do Percurso, Valentina puxou furtivamente uma adaga com o cabo incrustado por uma ágata negra e a enfiou nas costas de Arthas tomando o cuidado para que o instrumento de morte atingisse entre a terceira e a quarta costela da vítima.

Arthas sentiu o toque gélido da lâmina seguido pelo calor intenso do próprio sangue derramado aos borbotões. Ele firmou-se nas rédeas para não cair e o corcel, como se também sentisse a dor do dono, relinchou e arriou com as patas dianteiras poderosas trotando no ar.

O militante permaneceu na cela, Valentina, porém, tombou. A queda a fez girar algumas vezes no chão e torcer o tornozelo. Joelhos, cotovelos e rosto foram rasgados a tom da carne viva e a dor intensa quase roubou sua consciência. Ofegante e suja, Valentina usou os restos de suas forças para pôr-se de pé e foi nesse momento que Arthas atravessou-lhe a garganta com a mesma espada que havia usado para matar seu marido. A expressão nos olhos de Valentina se confundiu num misto exótico de inocência e ódio. Arthas jamais saberia se o último pensamento da jovem foi o de arrependimento ou o de satisfação.

O militante arrancou o punhal de sua carne e sentiu a dor lacerante. Percebeu que o ferimento se infeccionara rapidamente e tentou analisar a adaga, mas ela se desfez em ferrugem e cinza enquanto a ágata negra tornou-se pálida e acinzentada.

             ̶ Magia negra...

Ele iria morrer. Sabia que lhe restava poucas horas. Não havia alguém em toda aquela região que pudesse socorrê-lo, muito menos alguém que combateria a necromancia que envenenava seu sangue. Iria morrer, estava decidido. Valentina preparara tudo. O cavaleiro pensou em apenas duas opções: continuar sua viagem até o Vale do Percurso e morrer na entrada da cidade ou torcer para que seu companheiro o carregasse sem tombar por dois dias até seu vilarejo natal, Passo do Andarilho. Optou pelo segundo. Queria morrer perto de sua mulher.

Deu meia volta e retornou pela mesma estrada que havia percorrido. O sangue caiu feito riacho sobre a cela e as pernas do cavaleiro. Quatro horas depois, o garanhão estava também tingido do vermelho mais rubro. Quando Arthas resolveu não parar para um descanso, sua montaria, de alguma forma, reconheceu o desejo de seu dono e decidira manter o trote pelas demais horas que fossem necessárias.

A noite do primeiro dia, cercado por uma escuridão que era ainda mais tenebrosa por causa dos delírios do moribundo, Arthas foi tomado por uma consciência paranoica que o convenceu a odiar a sua história sem sentido.

Em seus pesadelos quase reais, deduziu que Valentina havia planejado aquilo cuidadosamente desde o primeiro olhar de rancor que compartilhara consigo enquanto esta se debruçava sobre o corpo do marido morto. Assim que ficou sozinha com seus pensamentos, a covarde assassina juntou tudo de valor dentre as economias de Willham e decidira gastar tudo na arma mais letal. Uma aldeã nunca teria tanta riqueza para tal compra a não ser que tivesse roubado um bom montante de peças de ouro ou que um nobre caridoso a tivesse ajudado:

             ̶ É claro! Fui eu... fui eu quem a ajudei.

Lembrou-se Arthas, em pleno delírio. Ele havia oferecido à pobre aldeã um saco contendo dezenas de peças de ouro, uma riqueza que, para qualquer aldeão, era muito mais do que o suficiente.

             ̶ Cruel é o destino. Eu comprei a minha própria morte!

O fato colaborou para que seu ódio aumentasse e todos sabem que o rancor atrai maus espíritos. O último dos momentos de alívio de nosso protagonista foi quando finalmente avistara o túmulo de sua esposa.

Até aquele momento, a ira havia sido a responsável por manter o pouco de vida que restara em Arthas. Ele manteve-se consciente por tempo suficiente para avistar o acúmulo de pedras que demarcava o túmulo de Rosalyn. Seu corcel estava banhado de sangue e suor, seus cascos estavam fendidos e ele ofegava com a força de seus poderosos pulmões.

O garanhão não conseguiu. Tombou repentinamente no chão sofrendo a morte pelo sufocamento que seu destino sangrento reservara. Arthas ainda mantinha-se consciente, seu rosto era da mesma cor escura daquela noite cuja lua enorme e amarelada assistia impactada o sofrimento do cavaleiro.

Ele rastejou e rastejou, movendo-se milímetros a cada grande esforço e morreu a dois metros de alcançar o túmulo de sua amada.

[...]

Na Taverna do Velho, o ancião terminara a história na mesma hora que o fumo de seu cachimbo acabara.

             ̶ Isso aconteceu, realmente?

Perguntou o taverneiro, absorto pelo final pouco conclusivo da história.

             ̶ Há verdade em cada palavra que escolhi usar, senhor taverneiro.

O velho expressou seu melhor olhar de indignação e sabedoria.

             ̶ Eu não invento histórias.

             ̶ Há algo que não se encaixa nessa história.

Informou o mensageiro.

             ̶ E o que é?

            ̶ Arthas e Valentina morreram isolados entre os vilarejos de Passo do Andarilho e Vale do Percurso. Ninguém estava lá na hora do ocorrido.

             ̶ De certo...

             ̶ Quem, então, lhe contou essa triste história?

O ancião calmamente retirou um pacote de tabaco de suas vestes e o amassou, com a paciência típica dos mais velhos, em seu cachimbo, então, respondeu:

             ̶ Se você souber escutar, meu caro viajante, descobrirá que há muito mais vozes a serem ouvidas do que as declamadas pelos meros mortais.

            Naquela noite, uma criatura que era sorvedouro de sangue, ofegava no alto de uma colina e esta carregava uma silhueta humanoide bizarra de olhos pálidos e veias saltadas. Ambas observavam as luzes que emanavam da única janela aberta da Taverna do Velho.

FIM.





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