O Plano


[Este conto é a continuação de Contratos sem rosto 📖)

Peças de prata são dispostas sobre o balcão do mercador.

- Eis suas frutas e legumes, querida Camilla, mas, antes de ir, pode me dizer se Samir está bem?

- Sim, ele apenas teve que se ausentar por alguns dias. Negócios, talvez, mas, porque a pergunta? - a curiosidade de outrem parecia incomodar a jovem ajudante do taverneiro.

-Ah entendo. Minha intenção não é bisbilhotar, mas as pessoas já comentam que faz uma semana que não o veem. Isso não é de costumeiro da parte dele. Enfim, espero que ele possa trazer algo espetacular para mostrar ao povo de Berith

Camilla apenas sorri pega sua compra e caminha até a taverna.

***

O cheiro da relva molhada e o ar umedecido trazem lembranças de uma época de aventuras, desfechos gloriosos e perdas traumáticas. Há uma semana e dois dias que caminho ao lado do troca-faces e penso: roubar uma coroa? A ideia me parece absurda e insana. Parece algo incabível, mas eu jamais voltaria atrás com minha palavra desde assinei aquele tipo de contrato mágico que nunca tinha visto. Estou a mercê de suas tramas.

O próprio troca-faces, de nome Absalon, me esclareceu alguns pontos importantes para o que iríamos fazer dentro de alguns dias. Primeiro, ele me disse que não era o arquiteto do plano, mas sim alguém  interessado e que existiam mais três personagens a serem apresentados. Em seguida, disse-me que minha fama era importante e, aparentemente, este recurso seria necessário para isso. Por fim, o ponto que achei mais enigmático, é trazer conosco a jovem Clarisse. Eu queria impedi-la de prosseguir conosco, mas o encanto realizado pelo troca-faces é de fato forte demais. Ela está conosco, com a proposta de se apresentar em uma casa nobre.

Estamos os três nas margens de um lago dentro dos bosques de Altaneira a espera dos “outros”;

- Senhor Samir, eu sei que já disse isso a você, mas, seria uma honra poder tocar ao seu lado. Um dueto, talvez – falou-me a jovem de cabelos dourados, pele alva e de ingenuidade ímpar.

Clarisse de Águas Claras, filha da duquesa de Águas Claras (cidade situada em Azran) e uma aspirante a bardo.

- Certamente, minha cara, será magnifico - respondi esboçando meu melhor sorriso - enfim, já entardece e eles ainda não chegaram. Por onde andam seus amigos, Carlos André? – este foi o nome que o troca-face resolveu usar ao se apresentar a Clarisse. Agora ele era um homem comum, de nome e rosto comuns.

- Eles virão, na verdade, um deles acabou de chegar – o troca-face emite um breve assobio melódico como o canto de um pássaro e os olhos de Clarisse começaram a pesar até que ela caiu em sono profundo. Um encantamento, eu logo notei.

- Ela não precisa saber. A reunião logo começara, será mais seguro para ela dessa forma – aquele sorriso esnobe no rosto do troca-face me causava nós no estomago. Deixei Clarisse deitada sob a sombra de uma árvore.

- Onde está o seu aliado, então, criatura de muitas facetas – indaguei com olhar felino, mas logo notei sem esperar a resposta do mesmo.

- O que é aquilo? - apontei na direção de um pássaro. Um pássaro de tinta.

A ave se desfez como água escura, escorrendo de um galho e tomando a forma de um homem de cabelos tão negros como a tinta de um pincel. Sua pele tão alva como a folha de um pergaminho e seu manto era feito de tinta e penas escuras que pingavam eternamente, como uma chuva de inverno.

- Hulliak - pronunciei quase inaudível - você é Hulliak coração de tinta!


Hulliak Coração de Tinta


Exclamei surpreso. Ouvi de Guillath, meu mentor,  muitas histórias sobre Hulliak, o coração de tinta, mas nunca cheguei a conhecê-lo pessoalmente.

- Livrada de um fim prematuro, criada para viver um novo futuro! Oh, criança perdida, encontrada, salvada para ser reerguida! Oh, filho da licantropia, quando crescido treinado para futuro incrível! Com seu branco violino herdado e merecido! Oh, Samir, o felino! Os cinco nos fazem sentir, amedrontados, afugentados, acorrentados, mas nunca, silenciados! Nem só de canção e história alimente-se a plateia.

O homem de tinta gesticulou declamando um poema, seu olhar fixo penetrou nos meus olhos, e eu o percebi vendo a minha alma. Como ele sabia sobre a minha infância sombria? Minha mente vagava perdida em pensamentos, sobre meu mentor, sobre as histórias de Hulliak e, no fundo, aquelas lembranças que estavam trancadas, retornaram como um vendaval varrendo a planície. Lembranças sobre eles. Sobre os cinco.

Saí de meus pensamentos após ouvir duas vozes.  Novas vozes naquele lugar.

Um deles era um escrivão de sangue, já o tinha visto em Berith, Icabod é o seu nome, seu manto negro carregava o espectro da morte e seu cabelo vermelho era sangue e fogo vivo. Ele se aproximou de nós e, ao seu lado, um homem de manto e chapéu. Tentei observar, com meus olhos felinos, o seu rosto, mas não consegui enxergar nada, não porque estava escondido, mas porque não existia nada! Era transparente como vidro e invisível como o ar.

- Como descrito no livro de sangue, “O conto da coroa”, no nono dia, após a queda do espectro da agonia, derrotado por Zaifaz, o ceifador da morte, um grupo se reuniria nas margens do lago do Bosque de Altaneira. Este é o fim do capitulo quatro  - O escrivão escrevia um manuscrito e ditava o que escrevia.


Icabod, o Escrivão de Sangue



- Vejo que todos estão aqui. Agradeço a todos que vieram de boa vontade participar dessa errônea, porém necessária, decisão – o homem invisível apresentou-se - e peço desculpas por forçá-lo a vir, Samir, imaginei que, como um discípulo de Guilliath, você recusaria, então tive que pedir a Absalon que o trouxesse mesmo contra sua vontade.

- Você fala como se se conhece meu mestre, mas nada sei sobre você ou o que vocês querem com uma coroa – disse Samir encarando o homem translúcido.

- Eu sou Faíng, o nunca visto, mas você deve conhecer-me devido a outra alcunha.


Faíng, o nunca visto


De fato esse nome era familiar, porém, o Faíng das histórias de Valerie morreu protegendo a sua amada da aparição de um dos cinco.

- Posso lhe provar que sou quem você pensa que é! - o homem invisível retirou de seus pertencentes um espelho de beleza exuberante, emoldurado com prata e com espaços para nove safiras. Apenas quatro safiras estavam incrustadas nas bordas da moldura, entretanto.
- Este é o Espelho de Sephdra! - Exclamei apontado boquiaberto para o artefato.

 - Exato, e por meio dele, conseguimos informações para nosso plano, plano que será narrado por Icabod, em seu livro de sangue.

O escrivão de sangue abriu o manuscrito e, cercado pelos heróis da aventura em volta de uma fogueira verde azulada de aspecto fantasmagórico, começou a ler.

-  Capitulo cinco: A Árvore dos Mil Espíritos.

(Continua)
  

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