A morte do último Thane



            Nunca pude esquecer o dia que meu pai decidiu mostrar-me a primeira das minhas lembranças de morte. Era um dia de nuvens gordas e cinzentas que teimavam em não se romper vítimas dos trovões distantes. Meu pai, o experiente caçador Gidheon Thane, claro, contava que aquele ronco no céu era provocado pela magia das bruxas e que estas tinham o poder de controlar o tempo. Todos os dias ele esperava por mim em frente à janela de seu quarto, no segundo andar da cabana em que mantínhamos moradia solitária e cercada por uma floresta feita de pinheiros despidos de folhas, tapetes de lascas de gelo e ventos rasteiros.

A janela não era modesta. Ela era propositalmente grande, como um par de portas que levavam ao telhado do alpendre erguido em frente de nossa moradia. Todos os dias, ele competia com o sol e se acordava tão cedo quanto as galinhas. Ficava sentado em frente ao janelão escancarado, tomando o frio intenso no rosto, os olhos direcionados à tundra que compunha o terreno à frente da cabana.

Todos os dias, também, eu levava seu desjejum: um pouco de chá, leite e a metade de um pão adormecido que ele dizia ser um desafio para os seus dentes. Ele começara com o hábito de observar horizontes desde que mamãe morrera vítima dos perigos da floresta, o mesmo perigo que ele me treinava, desde cedo, a enfrentar.

Descíamos quando o sol começava a ameaçar derreter o tapete branco que cobria a tundra. Usávamos sempre a mesma árvore velha e morta, mutilada diversas vezes pelo toque do fio de nossas espadas. Toda manhã aquele tronco era, para mim, uma das criaturas horrendas da floresta e seus arranhões, tentativas que minha espada fizera para alcançar a carne entre suas costelas.

Certa vez, meu pai e eu sentamos ao redor de uma fogueira amena. Ele chuviscou um tipo de pó negro sobre a lâmina de sua espada e a riscou numa pedra. Para minha surpresa o metal incendiou-se perigosamente, como uma tocha que afasta os maus espíritos. Dizia ele:

             ̶ É preciso usá-la rapidamente e, em seguida, apagar as chamas para que o metal não seja danificado.

Ele me explicou enquanto deslizava a lâmina na neve que impregnava suas botas.

             ̶ As bruxas, meu filho, odeiam o fogo. O calor de uma fogueira queima mais do que a carne delas, queima também seus espíritos! O espírito de uma bruxa é feito de enxofre!

E repetia:

             ̶ Luc, escute: um Thane nasce para caçar e matar bruxas. Incendiar seus espíritos malignos é a única prova de que elas serão definitivamente destruídas.

            Luc era meu nome. Minha irmã, Eleanor, única mulher viva em nossa cabana, certa vez contou-me que meu nome significa sorte no idioma das fadas e que ele me fora dado por minha mãe, a senhora Lianna Thane.

            ̶ Um Thane tem ainda mais motivos para caçar e destruir uma bruxa, caso ela tenha sido a responsável pela morte de outro Thane.

Meu pai sabia que eu precisava de mais preparo, mas, quando o sol encontrava-se a pino, estava eu, atrás de uma árvore seca e caída, controlando o fôlego roubado pelo medo e confrontando o frio que deixava a ponta de meus dedos roxos, especialmente porque eles tocavam o punho de uma espada gélida. Ele me deixara ali, após sussurrar em meu ouvido:

             ̶ Quero que fique aqui, Luc. Quero que fique aqui e que estoque sua lâmina o mais alto que puder quando a bruxa saltar por cima deste tronco. Você vai fazer isso?
Assenti com a cabeça trêmula. Foi naquele dia que Gidheon Thane agarrou sua vingança e a amarrou com cordas grossas e, com o único tecido de seda que restara em nossa casa, cobriu os lábios da senhora na floresta:

             ̶ É preciso amarrar com força, filho, se não elas escapam! A boca deve ser mantida fechada para que ela não pragueje contra seu captor.

Explicava ele, ofegante, montado em cima da bruxa de cabelos assanhados que acabara de derrubar. Ela estrebuchava como um animal que peleja pela própria vida e meu pai a socava forte na cabeça e nas costas até que, atônita, ela permitiu ser amordaçada.

             ̶ Sua primeira conquista, Luc! Esta é a sua primeira!

Ele comemorava enquanto a puxava por sobre o gelo, arrastando-a como um trenó, com a ressalva que este sangrava e deixava o rastro de pele em meio ao tapete de lascas de gelo. A bruxa, uma senhora maltratada pela vida ermitã, mantinha-se inconsciente e eu observava aquilo com um misto de alegria e medo.

Como se tratasse uma galinha antes de ser cozinhada, meu pai rasgou as vestes da anacoreta, deixando-a seminua, com a beleza de seu corpo cálido e bem desenhado à mostra.

             ̶ A pele nua e alva são símbolos da sedução, Luc. Não sinta remorso, um Thane deve reconhecer seu voto de jamais aproveitar-se do corpo de sua caça. Lembre-se, as bruxas devoram as fadas para manterem-se jovens e atraentes. Estas são as mesmas fadas que protegem nosso humilde lar e a floresta que nos cerca.

Concordei em meio ao silêncio, senti o cheiro de arnica, uma erva que meu pai dissera ser sinônimo da presença de bruxa e que exalava do corpo dela, depois, saí do lugar de esfolamento quando meu pai começou a arrancar os dentes de sua presa. Ele me disse:

            ̶ Um Thane precisa acabar seu serviço!

            Fui ao encontro de minha irmã. Eleanor, jovem e graciosa, parecida em todos os traços com minha mãe, ela era quatro anos mais velha que eu. Uma mulher desenvolvida para seus dezessete invernos. Ela estendia roupas torcidas no varal em frente ao alpendre da casa mantendo sempre o olhar vago e distante que ela adquirira após a morte da genitora.

            ̶ Vocês capturaram uma?

Suas vestes estavam molhadas e transparentes no busto e seus cabelos, antes tão bem penteados, ocultavam seu semblante.

             ̶ Sim.

             ̶ Como ela é?

             ̶ Um monstro.

Entrei em casa e enchi um caneco com água, em seguida, sentei-me na cadeira do saguão de entrada, onde passei a apreciar o trabalho rotineiro de minha irmã. Não demorou a meu pai aparecer, arrastando sua caça abatida e irreconhecível.

             ̶ Hoje, vocês dois assistirão o inferno apagar-se no céu!

Assim meu pai chamava a fogueira que incendiaria a alma da bruxa. Ele me exigiu auxílio, derrubamos uma árvore próxima ao túmulo de minha mãe e arrancamos sua casca, em seguida, amarramos o corpo mutilado ao tronco de modo que ele ficasse a quase dois metros de altura do chão.

Já era noite quando terminamos e meu pai disse:

             ̶ Na hora certa.

Hasteamos a bandeira de carne e osso, acumulamos lenha e óleo em sua base e meu pai deu-me a honra de atear o fogo à madeira.

Ficamos os três olhando as chamas tornarem-se serpentes ígneas e lamberem as pernas da maléfica. O cheiro da carne humana queimando foi exalado e, enquanto eu e minha irmã cobríamos o nariz e a boca, meu pai o respirava com satisfação. A quantidade de tempo que leva para que um corpo inteiro fique carbonizado é surpreendente, a noite muito avançou até que pudéssemos ver a pele do rosto da bruxa derreter e visualizarmos seu crânio.

Minha irmã, trêmula, nunca saberei se pelo frio ou pelo medo, aproximou-se de mim e entornou-me com seus braços.

             ̶ Pai, esta e a bruxa que matou a mamãe?

Gidheon Thane permitiu-se uma pausa dramática:

             ̶ Eu espero que sim, Eleanor. Eu espero que sim.

Não ousamos sair daquele lugar até que a fumaça desaparecesse no céu por completo, na esperança de ouvir o barulho da alma de enxofre da bruxa trovejar.

Isso aconteceu nos primeiros anos após a perda de minha mãe. Viveríamos mais cinco longos anos sem a aparição de qualquer ser que ousasse nos intimidar com magia negra. Os dias permaneceram cinzentos, porém, calmos. Meu pai nunca perdeu o costume de sentar-se em frente à janela de seu quarto e esperar pelo desjejum que eu o entregaria em seu posto de vigilância.

Certa vez, meu pai e eu nos embrenhamos mais distante na tundra. Era um dia em que o sol havia abençoado aquelas terras com beleza, derretendo a neve desde cedo e dissipando o tapete branco e monótono sob nossos pés, apesar disso, havia frio intenso porque o degelo fazia pingar gotas cortantes do alto dos pinheiros gigantes e parecíamos enfrentar o princípio de uma chuva. Então, estávamos devidamente agasalhados, com três roupas de pele pesadas sobre o corpo e uma touca no topo de nossas cabeças frias. Meu pai apontou para o céu e disse:

             ̶ Ali, Luc, em direção ao arco-íris! Um presente das fadas.

            Meu pai sempre dizia que as fadas eram as protetoras de nosso lar. Os Thane haviam realizado um pacto com as pequenas criaturas há muito tempo. Gidheon dizia:

             ̶ Enquanto protegermos essa tundra, a sorte das fadas jamais nos abandonará. Esta é a sina e a bênção dos Thane.

A natureza ficava cada vez mais verde conforme avançávamos e quando, enfim, chegamos ao nosso destino, meu pai ficou absorto de contentamento. Ele olhava deslumbrado para quatro monólitos idênticos encrustados na terra. As rochas imensas pareciam apontar para o céu da clareira como um dedo e havia símbolos estranhos desenhados em suas superfícies planas. Elas estavam ordenadas em um círculo e, no meio, havia um pequeno acúmulo de água límpida que parecia brilhar graças à incidência dos raios de sol.

             ̶ Um círculo das fadas, filho.

Ajoelhou-se ante a fonte cristalina, lavou o rosto e bebeu a água.

             ̶ Venha, Luc. Aprecie a dádiva que elas nos concederam.

Eu fiz o mesmo que meu pai. Ao tocar a água me surpreendi com a temperatura fresca e agradável da mesma, um conflito com o ambiente gélido.

             ̶ Esta é a água dos milagres, Luc. Capaz de curar enfermidades, eliminar o veneno do sangue e parar o sangramento do mais terrível ferimento!

Eu e ele bebemos e agradecemos aos seres que nos rondava. Então, retornamos para casa, ambos contentes. No caminho perguntei:

             ̶ Pai, porque as fadas não aparecem para a gente?

            ̶ Nenhuma fada pode ser vista com facilidade, filho. Elas só aparecem uma vez por ano e, mesmo assim, apenas nos espiam. O vislumbre de um ser feérico pode encantar o coração de um mero mortal e este correrá o risco de, literalmente, morrer de amores.

            A partir desse dia, nossas visitas ao círculo das fadas tornaram-se constantes. Pelo menos três vezes por semana. Certa vez, quando bebíamos a água milagrosa, num ritual que meu pai tratava como religião, nos deparamos com o brilho prateado de uma espada encrustada no centro do círculo. Agarrei seu punho e a retirei do lugar com um sorriso estampado na cara. Ela era leve como um galho e o fio, frio como gelo. Apresentei-a ao meu pai:

             ̶ Veja pai, outro presente das fadas!

Gidheon Thane analisou a lâmina com aversão no rosto:

             ̶ Isto é ferro frio, devemos destruí-lo.

Meu descontentamento foi imediato. Voltamos para a cabana e, embaixo do alpendre, coloquei a espada sobre a bigorna e meu pai a quebrou com três marretadas rápidas:

             ̶ O fogo não derreteria esta lâmina. Ela precisa ser quebrada e jogada no rio.

Ele percebeu minha insatisfação, curvou-se em minha direção e tocou-me no ombro, explicando-me:

             ̶ Não é uma arma para um Thane, filho. O ferro frio é como veneno para as fadas e elas não são nossas inimigas.

             ̶ Então, porque ela estava no círculo, como uma oferenda?

            
            ̶ Não era uma oferenda, era uma súplica dos seres feéricos. Eles não podem se arriscar com o ferro frio, uma lasca pequena que se enterra na pele deles e a morte é certa.
           
             ̶ Como eles conseguiram uma espada de ferro frio?

           ̶ Provavelmente tomaram de uma bruxa maldita e a depositaram na fonte milagrosa, pois as bruxas não podem tocar aquela água.

Eu tinha muito a aprender com meu pai. Foi o que fiz nos anos posteriores, quando o inverno nos castigou.

Quanto mais a relação entre mim e meu pai se estreitava, mais distante e revoltoso era o relacionamento entre meu pai e minha irmã. Ao longo dos anos, eles discutiram inúmeras vezes, principalmente sobre os assuntos que afastavam Eleanor de uma vida de verdade.

            Nunca tivemos muita coisa e raramente fazíamos viagens à aldeia mais próxima para comprar mantimentos. Quando havia a necessidade, meu pai preferia ir só. Muitas vezes, perdemos móveis que ele decidia vender em troca de míseros trocados usados para comprar o pó negro que banhava com fogo a lâmina usada para caçar bruxas, outras vezes queimávamos a madeira para afastar o inverno rigoroso.

Apenas três móveis de madeira de grande porte sobraram na pobre cabana: o baú da cozinha que guardava os condimentos, um velho guarda-roupa localizado no quarto de meu pai e que armazenava apenas três mudas de vestimenta, bem como os pequenos sacos de pó negro e uma mesa com contadas três cadeiras em que nos reuníamos para jantar todas as noites.

            Foi nesta mesa que, certa noite, como todas as demais noites, servíamo-nos de uma sopa rala que Eleanor, agora tão adulta que chegava a lembrar ainda mais nossa mãe, havia feito. O silêncio desse momento era tão natural que não nos assustávamos com ele, mas, aquela treva nos reservara uma discussão há muito postergada. Eleanor começou:

             ̶ Pai...

             ̶ Diga, filha.

             ̶ Porque não abandonamos esta casa?

Encolhi-me na cadeira, pois sabia que meu pai desgostava do assunto:

             ̶ Porque somos Thane. Caçamos e matamos bruxas nesta floresta. Precisamos de uma cabana perto dela.

Novo silêncio, nova interrupção:

             ̶ Mas já se passou cinco anos...

             ̶ As bruxas esperam pela nossa desistência, Eleanor. Elas são pacientes.

             ̶ Nós vamos morrer aqui!

             ̶ Não vamos.

             ̶ Como o senhor pode ter tanta certeza?

             ̶ Somos os Thane...

Eleanor ergueu-se repentinamente de sua cadeira e arremessou a tigela de sopa na parede:

             ̶ Esse nome não significa tanto assim!

Pelo mais breve momento, pensei que meu pai tentaria relevar a situação, mas ele conseguiu ser mais repentino que minha irmã. Levantou-se e tombou a mesa com a facilidade de alguém que se acostumara a carregar o peso de troncos pesados por toda vida. Movido por passos decididos, ele alcançou Eleanor e a jogou contra a parede. Ela desabou no chão e suas pernas já não tinham mais forças para se erguer. Eu me afastei da briga, buscando um esconderijo nas sombras.

            Gidheon, porém, não havia acabado. Alcançou o pescoço de minha irmã e a ergueu. Da treva, eu vi as vestes que cobriam o ombro de Eleanor se rasgarem ao entrar em contato com a quina do baú da cozinha onde estávamos. O pano de sua roupa deslizou instigante por sobre a pele alva de minha irmã enquanto meu pai a encarava com olhos cheios de sangue.

             ̶ Beberás sopa na tina dos porcos, ingrata!
A ira de Gidheon Thane era tamanha que ele se esquecera de afrouxar o aperto no pescoço de Eleanor. Ela sufocava sem conseguir se defender ou espernear, usava ambas as mãos para aliviar a torção que o pai fazia em seu pescoço. Me intrometi:

             ̶ Pai!

Ele não me ouvira. Insisti:

             ̶ Pai! Você está sufocando ela!

            Ele me ouviu e a largou. Ela desabou novamente, dessa vez em cima do baú, sentada, tossindo e apalpando o pescoço que havia ficado roxo. Gidheon se recompôs, levantou o pano rasgado por sobre o ombro da filha, cobrindo a leviandade e disse:

            ̶ Para o seu quarto. Agora!
Eleanor correu como uma bruxa que escapara da execução de seu caçador. Meu pai tomou o fôlego dos recém-acalmados e foi ao encontro da mesa tombada:

             ̶ Ajude-me, Luc.

Eu o fiz, prontamente. Ele centralizou a mesa no meio da cozinha, assim como estava antes, apanhou minha tigela, despejou nela o resto da sopa que havia sobrado na panela e exigiu-me:

             ̶ Coma.

             ̶ Mas, e o senhor?

             ̶ É você quem precisa estar forte, filho.

Eu obedeci num misto de medo e respeito.

             ̶ Ela não fez por mal, pai. Ela apenas se sente sozinha.

Gidheon Thane permitiu-se outra pausa antes de falar:

             ̶ Você é jovem, Luc. Talvez, ainda não tenha percebido os estímulos de sua irmã.

             ̶ Não entendo.

             ̶ O jeito que ela se comporta desde a morte de Lianna.

             ̶ Ela deve estar com saudades, pai.

       ̶ Saudades se cura chorando, Luc. Você lembra se alguma vez a viu chorando de saudades?

Tentei me recordar, mas, por mais que quisesse uma resposta positiva, apenas neguei com um meneio de cabeça.

             ̶ Eu não acho que as bruxas tenham ido embora. Eu temo que elas estejam mais próximas do que nunca...

Enfiei o resto da sopa na boca, mas não tinha fome, pois a minha mente se ocupava com a dúvida de um Thane.

Antes de me ausentar, meu pai chamou-me a atenção:

             ̶ Luc, quero que amanhã você leve-me o desjejum, como todos os dias.

            No dia posterior, após acompanhar meu pai na vigilância em seu quarto e depois do treino com a espada, ele me falou:

             ̶ Amanhã viajarei até a aldeia. Tentarei vender a lenha, as lebres que cacei durante a semana e algumas galinhas. Precisamos de mantimentos e prevejo um inverno longo. Quero que você junte o máximo de madeira e caça que puder, Luc. Nós nos dividiremos em duas áreas para isso.

            Escutei ansioso, não devido ao trabalho extra que eu me sujeitaria, mas porque a viagem de meu pai seria uma chance de tirar Eleanor da treva de seu quarto onde, eu supus, ela ficaria durante um mês, de acordo com o que acontecera outras vezes. A viagem de ida e volta à aldeia duraria pelo menos três dias.

Terminei a caçada mais cedo, num dia que me julguei sortudo por encontrar dois pares de lebres e uma árvore caída recentemente, ainda adequada para o fogo, então, visitei minha irmã em seu quarto. Ela estava mais despenteada que das outras vezes e seu olhar continuava distante:

             ̶ Eleanor, trago boas notícias.

Ela não deu a mínima:

             ̶ Papai visitará a aldeia daqui a dois dias!

Eu pude ver algumas lágrimas de alívio em seu rosto. Aproximei-me de sua cama improvisada no chão. Eleanor estava vestida com um cobertor sujo que exalava o cheiro do suor dela e eu gostava disso. Ela tomou-me nos braços e acariciou-me os cabelos da nuca num gesto carinhoso que misturava a ternura de uma amante e a proteção de uma mãe. Eu suspirei e permaneci num sonho, mergulhado entre os seios aquecidos dela. A fragrância tornava-se cada vez mais adocicada, era um perfume que exalava de minha irmã, um perfume totalmente novo nela, mas que de alguma forma me parecia familiar.

            “Arnica!”

Pensei comigo mesmo. A paz em minha mente tornou-se terror. Eu estive caindo nos encantos de uma bruxa e esta bruxa era Eleanor, a minha irmã!

            Calmamente, afastei-me de seus braços e retribuí um sorriso de contentamento que ela esboçava em agradecimento à notícia. Senti os dedos álgidos dela deslizarem sobre minha pele, esvanecendo em sentimento:

             ̶ Preciso voltar à floresta. Tenho de juntar mais madeira, mais tarde nos vemos.

Abandonei o quarto sem esperar por reação dela e corri. Corri para a floresta. Caí algumas vezes, ralei meus joelhos e derramei lágrimas de uma dor que é muito maior que o de uma ferida. Ao alcançar a perdição no interior da floresta de pinheiros eu gritei em desespero, caindo e me arrastando no chão.

“Minha irmã é uma bruxa!”

A frase se repetia na minha cabeça e ecoava dolorosamente. Até o fim do dia, a dor permaneceu, mas eu sou um Thane, nascido para se adaptar a isso. Derramei um pouco de pó negro que carregava comigo na lâmina de minha espada e a risquei numa pedra. O fogo serpenteou e eu me senti controlando-o. Pela primeira vez reconheci a honra de ter nascido predestinado.

“Não! Ela não é mais minha irmã! É uma bruxa! Uma devoradora de fadas!”

Na noite anterior, meu pai mostrou-me que ele desconfiava a algum tempo de minha irmã e, se ele não tinha feito nada contra ela até aquele momento, seria por causa da imensa tristeza de matar a própria filha. Decidi, então, realizar a minha própria matança. Criaria, eu mesmo, a lembrança solitária de uma morte... e que fosse a da cálida Eleanor.

            Voltei para casa, resoluto. Dormi pouco, mas o sentimento de minha obrigação acalentou meu cansaço. No outro dia, ouvi as recomendações de meu pai com pouca avidez e esperei até que ele desaparecesse além do horizonte que iluminava a tundra ao amanhecer. Reconheci a silhueta de minha irmã vigilante, observando por entre as frestas da janela de seu quarto. Era, decididamente, um olhar vil.

Fui à cozinha e preparei um chá. Meus pés iam e voltavam em círculos desordenados, enquanto que em minha mente o pandemônio se alastrava. Eleanor deve ter ouvido meus passos nervosos, pois saíra de seu quarto para averiguar. Eu a vi tarde demais, oculta sob as sombras de dentro da cabana. Tomei um susto, não estava preparado:

             ̶ Você está bem, Luc?

Tentei me recompor. Ela não parecia capaz de ler a minha mente.

             ̶ Estou. Apenas o frio... ele... está muito intenso.
Eleanor concordou de seu esconderijo. Seus passos, simplesmente, não entoavam qualquer som. Ela se aproximou e pude vê-la bem agasalhada.

             ̶ Você vai sair?

             ̶ Sim. Sei que o frio é um perigo, mas preciso tomar ar.

Eu queria proibi-la de fazer isso. Seria mais fácil mata-la furtivamente, em seu quarto, onde não haveria escapatória, mas não poderia força-la do contrário. Ela iria suspeitar! O Luc de sempre apenas se contentaria ao vê-la livre. Disfarcei um sorriso e disse:

             ̶ Não vá muito longe. A floresta é cheia de perigos.

Ela assentiu e, agarrada aos grossos panos, caminhou para o lado de fora. Eu a observei tomar o rumo da floresta, seus passos se desenhavam em cima da neve. Eu iria persegui-la, mas precisava da segurança de uma distância da qual ela não pudesse me ver, senão, tudo estaria acabado. Ela iria me amaldiçoar.

            Corri aos tropeços até o quarto de meu pai. Naquele dia, as janelas grandes nem tinham sido abertas. Escancarei o guarda-roupa e peguei um punhado do pó negro.

             ̶ As bruxas temem o fogo... o fogo queima mais do que suas carnes... queima também seus espíritos.

Notei-me sussurrando os ensinamentos de meu pai. Parti.

            Acostumado a agir ocultamente, para que as atentas lebres não noticiassem minha presença, fiz o mesmo enquanto perseguia a minha irmã. Eu era um lobo, prestes a avançar furtivo em sua presa, mas o mesmo sentimento que deduzi invadir o peito de meu pai invadia o meu naquele momento. Eu precisava de mais tempo. Eu a perseguia caminhando no esmo enquanto reforçava, a mim, a importância daquela missão, com a mão firme prendendo o punho de minha espada.

Quase uma hora depois, Eleanor parecia ter alcançado o lugar que queria. Ela cavou a neve nas raízes de uma árvore e denunciou o buraco que era o esconderijo de sua magia negra. Retirou de lá um livro com a capa vestida de musgo, que era o tomo de uma bruxa maldita contendo as maldições que aprendera com o tempo, sabe-se lá da onde ou com quem. O segundo item que ela tirou era ainda mais surpreendente: uma lâmina longa e prateada, obra de finíssima forja.

            “Ferro frio”

Pensei. Minha irmã caçava e matava fadas, talvez, apenas por rebeldia de ser uma Thane. Eu não queria acreditar, mas parecia óbvio! Eu deveria ter agido antes, agora ela estava armada, embora duvidasse que ela soubesse manejar uma espada tão bem quanto eu. Meu pai me treinou dia após dia para ser um espadachim melhor que ele.

            Eu decidira atacar, mas notei que a caminhada de minha irmã não havia acabado. Eu continuei a perseguindo, talvez ela me levasse até a sua mestra ou, quem sabe, ao esconderijo de uma convenção poderosa. Precisava me arriscar.
Ela caminhou para distante, por um caminho que eu já conhecia.

            “O círculo das fadas!”

Era para lá que ela estava indo. Ainda mais cuidadoso em meu esconderijo, a vi chegar ao lugar sagrado de meu pai. Ela apertava fervorosamente o tomo contra o corpo e mantinha a lâmina de ferro frio noutra mão. Eleanor aproximou-se de um dos monólitos e o empurrou. Empurrou até que, surpreendentemente, a rocha se desprendesse do chão, como uma árvore de raízes curtas.

            “Ela vai destruir o santuário das fadas. Eu não posso deixar que ela faça isso. Não posso! Preciso agir! Agora!”

Banhei minha espada com o pó negro e a risquei. O fogo da vingança concentrava-se sobre minhas mãos. Saí lentamente de meu esconderijo, os passos furtivos e decididos.

            Apunhalei minha irmã pelas costas. O calor de minha lâmina deve ter a alertado, pois ela me percebeu no último momento, ela conseguiu evitar o maior impacto, caso contrário, o metal certamente teria encontrado seu coração.

O resultado, entretanto, havia sido fortuito. O sangue começara a irromper-se de seus pulmões e alcançar a boca da bruxa. Atônita, ela caiu no chão, vulnerável:

             ̶ Luc!

A praga que ela iria jogar sobre mim foi impedida por uma cusparada vermelha que invadira sua garganta. Eu senti o feitiço dela ludibriar minha mente, porque agora ela parecia indefesa, de seus olhos saltavam lágrimas, a mão que antes segurava a lâmina de ferro frio, agora, pedia clemência.

             ̶ Você não é mais minha irmã!

Gritei tomando forças para brandir minha arma contra Eleanor, mesmo assim fechei meus olhos para não assistir a vida dela se esvair de forma tão torturante.

            Para minha surpresa, ela conseguira defender-se usando o tomo como escudo. A capa úmida do livro maldito apagou as chamas de minha espada, eu a arranquei do livro e minha irmã usou o resto de suas forças para manter-se agarrada ao tomo. Imediatamente usei minha espada ainda quente contra a vítima, mas esta foi mais rápida e acertou-me no joelho com a lâmina de ferro frio.

A dor foi intensa, cambaleei e só não caí porque usei o monólito do círculo das fadas como encosto. Eleanor levantou-se e, ainda agarrada ao livro, fugiu para dentro da floresta. Seu sangue derramava-se aos borbotões tornando-a uma presa fácil de ser rastreada. Antes de partir e terminar o ofício, eu me ajoelhei frente à água milagrosa e a bebi como um lobo voraz e sedento. Senti a ardência vigorosa invadir meu corpo e aliviar o ferimento em meu joelho, em seguida, continuei a perseguição.

Acendi minha espada novamente. Pouco me importava se ela iria derreter ou perder o fio e se desmanchar para sempre, eu haveria de ter tempo para enterrá-la no peito de minha irmã e queria estar preparado para qualquer emboscada. Meu pai alertara-me sobre as táticas ardilosas das bruxas.

            Não houve, entretanto, qualquer emboscada. Eu persegui Eleanor pelo rastro de sangue que a cada passo ficava mais presente e a encontrei numa caverna que, julgo, nem eu, nem meu pai havíamos nos deparado com esta antes.

O lugar exalava o cheiro de arnica e era escavado numa rocha remendada pelas raízes profundas de uma árvore que havia crescido teimosamente sobre seu topo. A entrada era coberta por uma lona de couro, eu a afastei de minha visão para me deparar com um lugar que continha uma fogueira fraca, estoque de madeira e um conjunto de recipientes danificados. Notei que alguns haviam sido roubados da cabana.

Eleanor estava de costas à entrada. Descabelada e tingida de sangue, notei que ela mergulhara na insanidade das bruxas, pois quebrava suas unhas enquanto tentava riscar a parede da caverna:

             ̶ Eleanor, irmã... Por quê?

Minha voz saiu trêmula de nervosismo. Minha irmã manteve-se calada e eu sentia o calor na minha espada, enquanto esta começava a perder forma. Eleanor começou a balbuciar algo irreconhecível e aquilo me causou terror

            “A maldição da bruxa!”

Eu deduzi. Precisava agir imediatamente!

            Investi contra minha irmã e cravejei a espada derretida em seu peito, segurando-me firme ao corpo que desabava lentamente no chão enquanto a última unha quebrava-se arranhando a parede.

             ̶ Morra criatura vil! Você não é dona de minha irmã! Você não mais fará mal a um Thane!

Como previra, ao arrancar a espada da carne entre as vértebras de minha irmã, a lâmina arruinada quebrou-se e imaginei o fogo corroendo Eleanor por dentro. Gosto de imaginar que aquela chama eliminou primeiramente o espírito da bruxa, em seguida, a minha verdadeira irmã, que ainda mantinha os olhos arregalados com as lágrimas descendo como riacho e limpando seu rosto do sangue regurgitado.

Segurei-a e a deitei confortavelmente no chão, então, deixei que as lágrimas invadissem meu rosto também.

            Os momentos que vivi após isso são os mais traumáticos da minha vida. Assim como meu pai fizera um dia, despi minha irmã de seus trapos ensopados de sangue, depois, arranquei seus dentes, um a um, num ritual de minha própria tortura psicológica. Ela era uma bruxa e deveria ser eliminada como tal. Decidi que a queimaria dentro daquela caverna, junto com tudo que ela havia guardado no esconderijo.

Aproveitei o estoque de lenha e a fogueira precária que já estava acesa no recinto e montei uma pira na qual assistiria o corpo de minha irmã transformar-se em cinzas até o fim e, talvez, o terror em meu coração se esvaísse junto com a circunstância.

Usei o resto do pó negro para atiçar o fogo no corpo de Eleanor e senti o cheiro de queimado de sua carne. Procurei nas sombras do esconderijo o tomo da maldição. Encontrei-o protegido pelo escuro, quase no mesmo lugar em que havia dado o golpe fatal em minha irmã. Abaixei-me para pegá-lo e notei uma claridade ígnea muito intensa dentro da caverna. Virei-me para observar a bruxaria e me deparei com formas alaranjadas que se desenhavam sozinhas nas paredes do lugar.

            Agora que o odor da arnica havia se dissipado, pude sentir o cheiro do pó negro que se queimava nas paredes da caverna absorvendo o calor da pira em que eu havia ateado fogo. Desenhos feitos a dedos manchados pela poeira inflamável. Eles tomavam formas escabrosas e pareciam revelar algo. Esperei ansioso pelo aviso, talvez aquilo me trouxesse informações sobre a convenção inteira, sobre as responsáveis por manchar a vida de minha irmã.

As formas pareciam querer mostrar um grupo de humanoides que supus ser uma reunião de bruxas. Elas brandiam armas e conjuravam suas magias contra uma criatura gigantesca que foi se formando a partir de oito extremidades que se interligaram e formaram as patas de uma aranha monstruosa enorme.

            A forma aracnídea empalava, com suas inúmeras pernas, o corpo de dezenas de bruxas, uma destas estava sendo devorada pelas pinças afiadas da criatura. O fogo atiçara minha curiosidade, eu precisava encontrar uma forma de saber mais, mas onde poderia procurar por essas informações?

            “O tomo!”

Sem pensar duas vezes, alcancei o livro maldito e o abri. Ele estava trespassado pelo corte de minha espada e o calor que antes havia nesta, queimou as bordas do corte estragando quase todo o conteúdo, mas eu o folheei e consegui encontrar a forma aracnídea desenhada em suas páginas, assim como estava desenhada nas paredes da caverna.

A luz emitida pela fogueira me auxiliava a enxergar as letras miúdas das escrituras, eu pude reconhecer uma palavra registrada muitas vezes:

             ̶ Aklo...

Eu sussurrei.

            No próprio tomo existia a definição do termo. Ele significava “fada macabra” ou “fada negra” e, da forma mais simples: “fada má”. Meus olhos percorriam as páginas rasgadas à procura de maiores informações e eu as li em voz alta, compartilhando com minha consciência:

             ̶ Os aklos, as fadas macabras, possuem formas diversas. Elas enganam suas vítimas, manipulando-as a participarem de seu jogo, até que fiquem interessantes o suficiente para serem devoradas. Elas adoram o gosto da carne de um arrependido...

As lágrimas irromperam de meus olhos:

             ̶ ... os aklos e as fadas verdadeiras guerreiam desde o início das eras num confronto que chega a ser quase errôneo conceituar como a luta do bem contra o mal. Os aklos querem muito mais do que somente a maldade.

Eu mal conseguia folhear o livro, mas mantive a leitura:

             ̶ Diferente das fadas, aklos não se escondem da vista dos mortais, porém, os enganam, normalmente tomando a forma de seus entes mais queridos...

O fogo se alastrou numa velocidade que não foi planejada, ele me ameaçava perigosamente, mas eu me mantinha atônito. O livro caiu de minhas mãos, o fogo o lambia, a vontade de existir esvanecia de minha mente. Eu, então, me deparei com a parede nas profundezas da caverna, a mesma que minha irmã arranhara antes com seus dedos ensanguentados, lá estava escrito:

             ̶ Papai

O “i” da palavra se desmanchando numa linha tortuosa que seguia até o chão, traçando o mesmo caminho que o dedo de minha irmã havia feito ao deslizar para a morte. O risco me guiou até o chão onde jazia a espada de ferro frio, encrustada entre duas pedras.

            Caí de joelhos e decidira, naquele momento, deixar-me consumir pelo fogo, ele haveria de me levar, assim como levaria o corpo de minha irmã. O fogo já havia alcançado o tomo e agora o transformava em cinzas. Essas cinzas voaram até o meu rosto e cobriram-me de fuligem, depois, aqueles rastros ígneos alcançaram a espada de ferro frio e enfraqueceram diante meus olhos. Desabei no chão aos prantos, sustentando-me com joelhos e braços.

Do lado de fora, a fumaça alcançara o céu, assim como a vez que assisti a bruxa amarrada ao tronco se tornar cinzas. O inferno se desmanchando no céu...

            Alcancei a lâmina de ferro frio e, em meio ao turbilhão de fogo, corri e saltei para fora do meu destino ardente. Tossi até a exaustão, depois, me debrucei sobre o tapete branco da tundra e dormi.

Acordei, sabe-se lá quantas horas depois. Levantei-me e cambaleei, caminhando trôpego até a cabana. Meu pai não chegara. Claro que não, ele só chegaria dali a dois dias. Alcancei o interior daquilo que eu já não considerava um lar, apossei-me de uma pá e encaminhei-me ao túmulo de minha mãe.

Lá, mesmo exausto, cavei a terra movida até sentir o baque com a madeira do caixão que meu pai havia improvisado. Com esforço, tirei o esquife do buraco e o rompi. Não havia corpo lá, ao invés disso, dezenas de estilhaços de ferro frio. O ferro frio que não havia sido jogado no rio, mas sim escondido sob a mentira de meu pai. Não! Decididamente, não era o meu pai... era a criatura aracnídea.

Fiquei sentado ali noite adentro, secando minhas lágrimas e meu desespero. Não havia mais lamentação, estava decidido: mataria o resto da minha família. Acabaria com os Thane!

            No dia posterior, descansei o corpo, a mente e enterrei o caixão e o ferro frio novamente, cobrindo todos os vestígios. No outro, treinei com a espada que minha irmã havia me ofertado. A lâmina fria que eliminaria Gidheon Thane.

Meu pai chegou ao final do terceiro dia, o céu já estava escurecendo. Ele escancarou a porta e me encontrou na cozinha, depositando as tigelas de sopa na mesa:

             ̶ Estou exausto.

Sentei-me à mesa e esperei o resultado. Surpreendi-me com a segurança que havia alcançado depois de todo meu preparo psicológico dos dias anteriores, meus ferimentos estavam cicatrizados e sob a luz tênue de uma lamparina, meu pai sonolento não noticiou qualquer diferença, nem sequer no meu olhar incisivo de vingança. Ele sentou-se a minha frente e quase não me encarava, apenas depois beber toda a sopa, sem a ajuda de uma colher, perguntou:

             ̶ Onde está Eleanor?

Meu peito saltou. As lamentações que eu me permitira nos dias anteriores haviam lavado a existência de minha irmã da minha mente, precisei falar o que pensei primeiro:

             ̶ Ela não saiu do quarto desde que você foi para a aldeia.

Torci para que ele não fosse averiguar, eu não havia sequer preparado o quarto para enganá-lo. Ele se levantou repentinamente, olhou-me decidido e disse:

             ̶ Certo. Amanhã eu a tirarei de lá. Agora preciso dormir.

Assenti aliviado. Recompus-me e quando já me sentia longe do perigo, Gidheon me alertou:

             ̶ Luc!

             ̶ Sim, pai?

Eu estava de costas para não correr o risco de ele notar o medo estampado em meu rosto:

             ̶ Amanhã quero que leve o meu desjejum no quarto, como sempre.

             ̶ Sim...

Ouvi seus passos subindo a escada e só consegui relaxar quando o escutei roncar.
Estava na hora.

            A treva se torna mais escura quando pressente uma noite de assassinato, os sons, entretanto, ecoam mais do que deviam. O ranger das tábuas no assoalho eram quase ensurdecedores, cada degrau da escada foi vencido pela decisão de terminar aquela noite com o sangue de meu pai molhando minhas mãos.

Abri a porta e me deparei com a penumbra. A silhueta de Gidheon se movia ofegante no chão. Saquei a espada cuidadosamente e me ajoelhei para alcançar o chão em que meu pai dormia. Voltei a lâmina para baixo, para que seu gume se enterrasse profundamente no peito da vítima. Lágrimas decidiram descer naquele minuto, as últimas gotas salgadas do meu reservatório.

Enterrei a espada até que ela alcançasse o chão. A carne trespassada de Gidheon foi retaliada com facilidade, escutei seu ganido de sofrimento seguido pelo derramamento de sangue quente. O líquido vermelho escorrendo pelo assoalho e se acumulando nas brechas entre as tábuas. Logo, ouvi os pingos ecoantes que choviam no térreo da casa.

Não houve resposta de meu pai. Sua respiração apenas tornou-se ofegante e enfraqueceu conforme os segundos se passaram. Pensei:

            “Ele não deveria reagir assim. A criatura deveria revelar a sua forma... quero dizer, eu não li isso em parte alguma do livro, mas, deveria ser assim, não é?”

Ao invés disso, aquele corpo apenas aceitara a morte, aos poucos o silêncio tinha o som do gotejar de sangue. Meu peito encheu-se de remorso. Eu estava enganado? Eu matei meu pai. Eu matei minha irmã e meu pai... em vão!

             ̶ Pai?

Ele não respondeu à súplica:

             ̶ Pai, por favor, me desculpa!

Nada.

            Arranquei a lâmina de ferro frio de seu peito e a deixei desabar no chão. As lágrimas se refizeram, esfreguei as palmas de minhas mãos ensanguentadas no meu rosto, o pânico e a loucura se alojaram na minha mente. Eu era o assassino de tudo!

Então, um braço me agarrou, ele era monstruoso e cheio de pelos eriçados, como dúzias de alfinetes. Num fôlego que engoliu todo o eco do recinto, Gidheon tornava-se a criatura aracnídea. Tornava-se um aklo!

            Assisti a cena, aterrorizado. Uma das patas saiu pela boca do corpo de meu pai e esticou-se, rasgando pele e músculo. Os olhos tornaram-se sangrentos e mais sete órbitas se acenderam, rubras, na escuridão do quarto. Eu me afastava enquanto a criatura se avolumava, tingida de sangue e terror, Procurei pela lâmina de ferro frio, ela estava perigosamente muito próxima das patas da criatura. Lembrei-me destas como afiadas lâminas que atravessavam as bruxas no desenho da caverna. Ela terminava sua metamorfose, eu me trancafiava no guarda-roupa.

É impossível manter-se furtivo em meio ao pânico, tudo que você é capaz de fazer é limitado pelo fôlego curto e os batimentos de seu coração. Havia, entretanto, silêncio do lado de fora do guarda-roupa. Silêncio que foi interrompido por um baque agressivo da criatura no lugar de meu esconderijo. Segurei as portas do móvel enquanto ela o lacerava, estocando com suas patas que criavam buracos na madeira, me ferindo profundamente no ombro. Eu precisava pensar rápido... e pensei:

            “O pó negro!”

Era ali onde Gidheon guardava a preciosa alquimia. O lugar tinha o cheiro daquilo, tateei as vestes que estavam ali e o encontrei, ensacado em pequenos punhados. Estava disposto a morrer incendiado se levasse a criatura comigo. Segurei a poeira que me carregaria a vida e me deparei com um grande questionamento:

            “Não há nada que eu possa usar aqui para atear fogo!”

            Era o fim, Os membros da criatura feriram acima de meu joelho e eu gani de dor, ela, então, encerrou os ataques. Observei-a pelos buracos que ela mesma havia feito com as patas. A criatura estava ofegante, seu sangue grosso despejava-se sobre o assoalho.

            “O ferro frio é um veneno para as fadas!”

Ela morreria, enfim. Isso valeria a minha morte depois de tudo. Ouvi-a golpear com força alguma coisa e, em seguida, o vento frio da noite adentrou o quarto. As janelas, propositalmente grandes, se escancararam e, cambaleante, a criatura aracnídea deslizou-se no telhado do alpendre, fugindo para a floresta.

            Saí do guarda-roupa ferido, considerando-me sortudo por ainda estar vivo. A lâmina de ferro frio ainda estava ali, encostada à parede abaixo da janela. Observei a criatura monstruosa deixar seu rastro de sangue na neve enquanto empunhava a arma venenosa novamente.

            “Ela morrerá...”

Tentei me convencer, mas uma conclusão me acertou pesado na cabeça:

             ̶ O círculo das fadas!

Sussurrei. Ela usaria o lugar para regenerar seus ferimentos e livrar-se do veneno. Eu deveria fugir dali o mais rápido possível, mas havia em mim, naquele momento, um ódio que me fizera rilhar os dentes e ignorar a dor que me causava o ombro e o joelho empapados de sangue.

             ̶ Um Thane precisa acabar seu serviço!

            Saltei para o alpendre e me deixei deslizar até cair em frente ao saguão da cabana. Senti o meu pé esquerdo, mas ergui-me decidido e corri, como pude, seguindo o rastro de sangue. A lua minguante não é a maior aliada de um rastreador noturno, mas eu tive de arriscar.

Apenas quando a escuridão se tornou cegante, me lembrei do pó negro que peguei do guarda-roupa de meu pai. Ele estava ali, friccionado em meu punho nervoso. Derramei sobre a lâmina de ferro frio e a risquei numa pedra fazendo-a acender tão ardente que parecia a chama de uma tocha. Lembrei-me da conveniência:

            “O ferro frio não pode ser destruído pelo fogo”

Teria mais que apenas alguns minutos de luz com aquela espada em chamas.

            Não demorou e eu me deparei com a criatura trôpega, deslocando-se metros a minha frente. Seu movimento era prejudicado pelo seu tamanho e porque as árvores nas profundezas da floresta eram menos esparsas. Infelizmente, ela se encontrava próxima demais do círculo das fadas, então apressei o passo, aproveitando-se de meu tamanho diminuto. Meu rastro de sangue era tão visível quanto o da criatura.

Em momentos, estávamos ela e eu em frente aos quatro monólitos gigantescos. Eu interceptei seu caminho, exausto, porém, decidido de minha tarefa. Manejei a lâmina de ferro frio como a cruz que amedronta o demônio, golpeei dois de seus membros letais e fui arrebatado de seu caminho, num golpe que me arremessou contra uma das árvores ao redor da clareira. A lâmina de ferro frio voou longe.

            Caí de joelhos e a vi, quase sem vida, arrastar-se até a água milagrosa. Senti que meu corpo alcançara o limite e que eu só tinha mais uma chance para finalizar aquele embate. Procurei pela espada que ainda estava em chamas e, em meio ao seu caminho, notei o monólito poderoso desenraizado do chão. Minha irmã havia feito aquilo, eu a impedi de prosseguir com a derrubada, agora, ele estava convenientemente no meio do caminho da aranha.

Corri impulsionado pela violência de um grito que mistura saliva e sangue e choquei contra a rocha imensa. Primeiro ela não fez qualquer movimento, depois, rasgou a terra e o céu, num grunhido gutural que desabou sobre o abdômen da criatura aracnídea.

Sem forças para erguer a pedra, o inimigo ficou impedido de se deslocar, mas isso não aconteceria por tanto tempo. Ela arranhou a relva a sua frente, alcançando as margens da fonte de água, trouxe pingos que escorriam entre os pelos de suas patas até próximo à sua boca, mas antes que pudesse absorver aquele orvalho da recuperação, eu estava a sua frente, armado com a lâmina de ferro frio.

            Ela olhou para mim, numa expressão que misturava raiva e clemência e eu decidi que ela não merecia minhas palavras. Como se guiado pela leveza de minha espada, cortei a cabeça da criatura num único golpe. Seu sangue jorrou e misturou-se à agua milagrosa.
Impulsionado pelas dores no corpo e o cansaço, tombei dentro daquele líquido impuro e esperei a morte. A morte do último Thane.

[...]

            Não é fácil morrer. Eu, no entanto, queria.

A cegueira me alcançava. Uma cegueira branca e iluminada que vinha de cima, do céu. Era como pequenos pontos bruxuleantes e distorcidos na imensidão do firmamento. Era tudo muito bonito, até que meus olhos, mesmo cansados, se adaptaram.

Fadas. Pequenas e flutuantes fadas, com suas asas de libélula e sorrisos travessos no rosto.

             ̶ Então, a vorpal lhe foi útil, Luc?

Eu ouvi a voz graciosa de uma mulher. O tempo parecia haver parado e mesmo o vento ou a neve encerraram-se quando o modelo de perfeição feminina apareceu nu e cálido à minha frente.

             ̶ Não seja bobo, meu querido. Está claro que você não vai morrer.

Eu parei de sentir dor, repentinamente.

             ̶ Eu sou uma rainha, mortal. Uma rainha que reconhece o valor de seus súditos, por isso, sua família nunca vai morrer.

Não sabia o que aquilo significava, mas eu não podia falar. Eu não queria falar. Eu não precisava falar. Ela voltou a sorrir e me trouxe paz:

             ̶ Não se preocupe. Tudo será feliz e eterno de agora em diante, meu querido príncipe. Meu amado Luch Thane.

FIM


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