“Caso esta carta chegue em suas mãos, significa que estou morta. Significa que eu falhei. Talvez você não acredite, mas tenho noção no terror que provoquei e nas mortes que carrego junto comigo para meu túmulo. A vingança é um prato que se come frio. Foram longos dez anos que findaram sem resultado, mas, quem sabe, compartilhando minha história, pelo menos a justiça seja feita (embora não acredite que contar com a lei e ordem resulte em bons resultados aqui em Corvis).
Eu e minhas irmãs não provocávamos mal algum a essas terras, muito pelo contrário, éramos médicas, herbalistas, criadoras de elixires e talismãs que protegiam os cidadãos mais desafortunados... mas vivíamos em Corvis, uma das três cidades de Dechaeon, esse reino amaldiçoado pelas bruxas cinzentas. O magistrado Borlock sabia que nossa existência era pacata, mas ele foi convencido por alguém superior, alguém que suspeito que fizera lavagem cerebral no mesmo e espalhou a informação de que, embora naquela época não fossemos ameaça, em breve seríamos, pois vivendo tão perto das estrigas, logo seríamos contaminadas pelo mal que rodeia esses pântanos.
Magistrado Borlock decidiu que seria melhor prevenir do que remediar, deveríamos ser punidas. Estávamos prontas para isso, para sermos exiladas de Corvis, para longe das bruxas, porém, sem direito de defesa, nos surpreendemos com a decisão final do líder da cidade. Foi decretada a nossa execução. Muitos foram contra, mas estes, de forma obscura, foram coagidos a mudar de ideia, assim, mal pude acreditar quando a execução foi efetivada e que uma semana depois, em um período cabalístico para todas nós bruxas (A mais longa das noites, na verdade, trata-se de um sabá, uma antiga reunião de bruxas que acabou se tornando uma comemoração estúpida, sem grandes motivos para existir).
Vocês, meus caros leitores, já devem saber de mais da metade da história, portanto, vou apressar meu discurso. O carrasco usou uma lâmina ladra de almas para eliminar minhas irmãs. Eu soube isso apenas um ano depois, quando tentei teorizar os fatores que geraram minha sobrevivência. A primeira de minhas irmãs foi decapitada e o carrasco sentiu a dor fria de manipular uma dessas armas, resistiu e partiu pra segunda de minhas irmãs e em seguida para terceira. Percebi seu corpo cambaleante ao se direcionar a mim. Devorar as almas de minhas irmãs foi demais para ele, portanto, quis o destino que o mesmo não tivesse forças para arrancar inteiramente minha vida. Ele até que tentou.
Eu senti o sangue quente jorrar de minha garganta. Eu morreria ali lentamente... então, ela surgiu. Veio em uma vassoura alada, emitindo uma risada que mais parecia um grasnar, totalmente como se espera que uma bruxa de histórias infantis deveria fazer. Seu nome, soube mais tarde, era Agnes Abramelin, uma bruxa cinzenta. Ela atacou, amaldiçoou e atentou contra a execução, mas o que conseguiu fazer definitivamente foi tirar-me de lá e estancar meus ferimentos.
Sim, Agnes me salvou e, não, Agnes não fez isso por mera bondade. Eu seria sua arma. Elas, vindas bem de dentro da Floresta Cinzenta, farejam pessoas como eu, mulheres cujo destino torna-se inevitável. Passeis semanas em delírio febril, mas sobrevive sob o tratamento de Agnes. Ela despertou o conhecimento em mim, instigou o ódio em meu coração, uma doença que eu nunca consegui curar e, mesmo ainda voltada à bondade que um dia eu servira, meu destino havia sido selado: dali a dez anos eu atacaria Corvis e acabaria com ela!
Presumo que vocês julguem que minha atitude amoral foi coagida pelo poder sobrenatural de Agnes, mas não. Ela tinha razão. Corvis está contaminada. O mestre do Magistrado Borlock tem olhos em cada esquina, esta cidade inteira está sob seu controle, um bando de idiotas viciados em sangue sobrenatural. Sim, estou falando de mais da metade da milícia, do vendedor de roupas finas da esquina, do gnomo engenhoqueiro que manipula as manivelas do elevador mecânico da zona comercial. Estou falando do fazendeiro plantador de milho e de seu filho bastardo, gerado quando a esposa ainda era viva e também dos barqueiros que rondam a cidade. Eles estão por toda parte, provocando crimes hediondos, matando e estuprando, refestelando-se em bacanais de sangue e vísceras. Corvis é uma cidade morta, os estrangeiros que a visitam são coagidos de forma sobrenatural a demorar-se na cidade e muitas vezes encontram um fim lento e doloroso.
Eu perdi minha inocência e a distinção de bem e mal há muito, mas ainda tenho a capacidade de discernir que Corvis é um câncer potente, um tumor que decidiu não se espalhar, que decidiu chamar suas vítimas para dentro dele. Corvis precisa morrer!
O carrasco, o estranho homem de olhos de relâmpago é um Vetala, uma cria vampírica adotada por uma família de nobreza morta-viva. Ele, do qual ainda não sei o nome, já se apossou de Corvis há anos. Não há mais cura, nem sua morte irá prevenir isto.
Vocês, meus caros leitores, façam o que bem quiserem com esta informação. Detenham-no ou fujam. Vocês já são conhecidos dele, já fazem parte de sua eternidade. Que os deuses os ajude.
- Agatha Neophante
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