[Extra] Cena 4 - Desfecho

 


Um borrão cinzento riscou o céu tempestuoso quando Marduk investiu contra o mago invasor. Arcos elétricos se formaram e dançaram relampejando no alto das nuvens perfuradas pela grossa e espinhosa carcaça do Tarrasque. Aensell pensou e dessa reação meia dúzia de magias foram ativadas a partir de rituais que ele havia realizado há muito tempo ou através de artefatos mágicos que cobriam seu corpo. Um globo de força o cobriu de proteção quando Domnaham, a lâmina do deus da guerra, resvalou em sua existência. A cúpula de proteção, indestrutível por quaisquer meios naturais, rachou e estilhaçou como vidro, dando tempo apenas para o mago tornar-se uma nuvem etérea. Repentinamente, Aensell havia desaparecido.

Marduk perseguiu seu oponente, mas agora este era uma centena ao redor de tudo, uma versão bem superior à magia de imagens espelhadas. Cada figura manipulando uma magia diferente. O deus guerreiro investiu contra as quatro primeiras e arrancou-lhes a cabeça num único movimento, então, sentiu o corpo pesar e cair, como um meteoro cairia na terra. Aensell havia invertido a gravidade, Marduk se comprimia nas costas do Tarrasque, entrou num estado de furor e sobrepujou os efeitos do encanto em meros segundos e, então, tornou-se um exército de espadas. Sozinho, ele era a alma de centenas dos seus mais poderosos súditos, as nuvens da tempestade foram engolidas pelo vendaval instantâneo que varreu dezenas das cópias do mago.

Aensell tirou quatro cajados dançarinos de bolsões etéreos criados pela sua vontade. Helladar, um dos cajados, lhe deu poder sobre a visão e os olhos do mago se tornaram inteiramente enevoados com exceção da pequena fagulha iridescente que era capaz de enxergar através de tudo. Consumiu a energia arcana de suas cópias e quase que instantaneamente trouxe o globo de força de volta para sua proteção. Domnaham abriu passagem pela magia novamente quebrando-a como um simples globo de neve e, ainda assim, a lâmina do deus da guerra não cessou. Skaigaard, o cajado das hordas celestiais, invocou Hildegard, o cão protetor e, junto com ele, Aegis, o escudo do guardião. Aensell havia recuperado Aegis de um fosso profundo no semiplano de uma poderosa entidade (que teve o nome esquecido pelo tempo e pela história graças à magia poderosa) e cedido o artefato à Hildegard, que é um guardião celestial sob a forma de um licantropo canídeo, aliado do mago por pelo menos uma era. O escudo foi atingido e um lampejo divino projetado. Aquela luz, provocada pelo retumbar metálico em Aegis, diziam conter a força dos raios de luz que compunham a essência do próprio Splendor e que uma vez foi usada para forjar os mártires consagrados. Marduk ficou cego sob o toque do irmão.

Os olhos do deus guerreiro arderam, mesmo protegido por sua pele de argolas metálicas. Marduk agarrou Hildegard pelo pescoço, arrancou Aegis e ouviu o estalar de ossos em resposta, então arremessou o escudo contra a bocarra do Tarrasque. Aensell reagiu e Hildegard tornou-se brio de energia cintilante, ainda nas mãos de Marduk, fervendo. O deus guerreiro investiu e com sua manopla finalmente conseguiu tocar o mago, segurando-o pelo tornozelo em pleno voo e o arremessando. Em disparada, alcançou o corpo cadente de Aensell que perfurava as nuvens e estava envolto de arcos voltaicos da tempestade. Domnaham enterrou na carne e fatiou músculos e osso, partindo o mago em dois pedaços.

As duas partes do cadáver retorcido de Aensell caiu nas costas do Tarrasque de forma inerte. Marduk sentia o incômodo queimar suas órbitas e atordoar sua mente, ele não pôde perceber quando, do estômago do mago, brotou uma criatura minúscula e ensanguentada. Era um corvo de penas brancas. Este instantaneamente alçou voo, ignorando a tempestade ao seu redor, tornando-se maior a cada segundo até virar um majestoso pássaro-trovão de penas prateadas e existência totalmente arcana. Marduk sentiu o corpo se enervar quando um relâmpago poderoso foi crocitado da criatura, girou o corpo e alimentou Domnaham com magia de destruição, erguendo a lâmina como um para-raios. Uma linha de energia voltaica cortou o ar acima das nuvens durante alguns segundos e um clarão ofuscou tudo nas terras pantanosas de Xea’thoul durante aquele minuto.

Em algum lugar no Anel de Montanhas de Mordae, um grupo de magos da Ordem Arcana cedia seus poderes à Celedris, o deus mortal da magia e atual parte da essência de Aensell, estes dispuseram seus conhecimentos para aquela luta. Um necromante encapuzado sibilou em idioma alienígena e afogou o tecido arcano com o Conhecimento Negro de Moil. Gêmeos anânicos pisaram firme na montanha e libertaram o segredo da Palma dos Três Trovões pela primeira vez após dez anos. Uma feiticeira svirnefiblin projetou sua loucura manipulando a esquecida magia tanatópica. Uma raríssima elfa do Vale de Quéfren teceu a magia dos sete véus. Uma coven de estrigas ressuscitada pelo próprio Aensell usou a magia negra trazida da Floresta Cinzenta e uma múmia milenar canalizou magia através de um lampejo divino.

De volta ao céu às costas do Tarrasque, Aensell, sob a forma do pássaro-trovão, direcionado maior que ele reforçou sua magia e formou um vórtice trovejante incapaz de ser absorvido por Domnaham. Marduk foi finalmente mordido pela magia maximizada e seu corpo estourou tornando-se pedaços de metal e sangue. As forças do deus da guerra foram minadas, suas resistências temporariamente reduzidas e o mago tinha que agir rapidamente.

Através de um impulso telecinético fez os quatro cajados cravarem ao redor do deus despedaçado, na carapaça do Tarrasque, e imediatamente começou seu ritual. O pássaro-trovão se desfez em uma chuva de penas prateadas que se tornaram cópias exatas de Aensell. Dezenas de magos entoaram o mesmo cântico enquanto um círculo de magia brotava como uma teia de luz atracando-se aos pedaços do deus da guerra. Filetes de sangue ergueram o coração de Marduk e bombearam seu líquido divino. O deus da guerra se regenerava com velocidade sobrenatural, mas os olhos de Aensell conseguiram premeditar isso há muito tempo.

Domnaham desenterrou-se da carapaça do Tarrasque sozinha e investiu contra uma das versões de Aensell rasgando seu pescoço. Daí em diante, ela selecionava uma nova vítima a cada rodada, eliminando os manipuladores da magia poderosa que estava em ação e o mago só precisava manter a sua versão original longe do alcance dela.

Um ritual, há muito perdido, usado pelos ancestrais de todas as raças para absorver as essências primordiais, após milhões de anos era pronunciado novamente. Deuses desse mundo e de outros sentiram o poder das palavras sendo enunciadas e tiveram lembranças de seus berços vazios. “Estão criando um novo deus”, eles pensaram, mas seus pensamentos foram devastados pelas infinitas questões divinas.

Aos poucos, uma minúscula esfera de poder concentrado se formava, etérea como um último fôlego. A essência há muito perdida, forjada ao mesmo tempo que as primeiras, gêmea de Splendor, era muito mais tênue do que se esperava. Massacrada, derrotada, aprisionada, tantas vezes, esperando pela inevitável regeneração, esperando pela libertação de seu portador. Ela estava, enfim livre e procurou seu hospedeiro que de braços abertos a recebeu.

O novo deus era uma trindade guiada por um único pensamento, o de que os deuses antigos haviam tido sua chance naquele mundo e era hora de passar o direito de governar voluntariamente ou à força.

Os magos da Ordem Arcana de Mordae se questionaram: “não parece justo?”. Os cavaleiros antes tidos como infernais compraram        a ideia, “livres da eterna maldição?”, eles mal puderam acreditar. Os mazelados, abandonados, excluídos, aqueles que perderam demais na vida pela intrusão de crenças superiores imaginaram um mundo onde eles finalmente poderiam ser vistos e que poderiam ser úteis em alguma coisa. Aquela cena inédita há tantas eras inspirava uma esperança inalcançável, milênios de anos de estudo ignorado, liberdade, honra, coragem. Nascia algo neles, nascia algo pra eles e todos foram atingidos pela vontade irresistível de cooperar, de mostrar para o quê vieram e iriam fazê-lo. Iriam investir contra o mal que os deuses jamais haviam conseguido encerrar. Teriam de lidar com Saulot.

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Nas ruínas de Xea’thoul, um vrock desabou de seu voo, crocitando como uma fera. Suas asas haviam caído e a pele cavernosa agora coçava como uma praga terrível. O exército da Fênix Branca foi comandado a encerrar os ataques enquanto vislumbravam a cena. Os demônios vomitavam e rasgavam suas próprias peles, queimavam de veias salteadas e gritavam em agonia. Aquela dor era a libertação de seus grilhões. Saíam de seus casulos malditos. “Demônios e diabos falsos”, os lordes do Abismo sempre falavam, e ali estava a prova: corpos nus, olhos mortais presos na atordoante nova realidade, belos ao mesmo tempo que terríveis. O verdadeiro exército de Marduk, carne e osso. Livre.

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O conselho da Catedral de Sangue em Karrasq havia decidido coletar almas. O primeiro disse, o segundo confirmou lembrando das pedras de hecatombe. “Saulot irá despertar muito mais cedo do que anunciara”, comentou a vampira Carmilla. “É um risco, mas temos dois inimigos em potencial muito próximos”, o primeiro deles se pronunciou novamente e aquele que não havia se pronunciado ranhou e riu sadicamente “venho lhes avisando sobre um terceiro”. Os quatro se entreolharam. Almas para Saulot precisavam ser colhidas e, como da última vez, resolveram lançar os barões da Mortalha em missões suicidas. Eles nem questionariam.

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Elfos, uma sociedade dita superior. Movida pela beleza, pelas artes, pelo amor. Guiados pela deusa-mãe, haviam chegado à conclusão de que viviam por eles mesmos, pela família e pelas coisas que arrebatavam seus corações. Os yeshuas, o conselho dos maiores sábios tocados pela deusa estava reunido, à exceção de Carmine, aquela que havia nascido para sentir cada sensação com o dobro do ímpeto. Ela não se reuniria, pois já havia tomado uma decisão e era contrária a que ia ocorrer naquela reunião.

O belo Galavant fez o último questionamento, pois, entre os elfos, os súditos podiam questionar o deus. “Viraremos nossas costas por mais quantas eras, minha senhora?” e a deusa, movida pelo amor e extinto de proteção de mãe respondeu: “Até o tempo em que formos necessários” e, então, cada elfo sentiu o chamado e todos tiveram uma opção. Nos meses a seguir formaram-se repentinas caravanas élficas e muitos decidiram voltar para o berço, outros ficaram e tornaram o reino de Shantae a principal morada. A chama cresceu em Carmine e os Portadores da Lanterna foram reunidos como principal conselho novamente.

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Entre os anões não era costume questionar o deus, por isso, quando o herói Adhraim negou as ordens de Godaheim, o porta-voz de Hefasto, deus dos anões e da forja, um tribunal divino ocorreu em frente ao Pendrake (a primeira rocha, onde a história do povo anão estava escrita). Adhraim, que por muito tempo permanecera longe de casa, agora tocava na chama de Hefasto buscando julgamento. Ele, que é um azer, um anão de fogo e chumbo, esperava perder a bênção, mas o deus foi piedoso e ali, dividiu o coração dos anões.

Liderados por Adhraim, uma centena de anões foi voluntariamente exilada das terras do deus e uma caravana protegida por cavaleiros de javalis percorreu o caminho que levava a raça à segunda terra prometida, Corantha. A Montanha Espelhada era mais uma vez o lar de Adhraim, o último dos azer.

“Sinto muito, Adhraim”, disse Valerie, a deusa do belo, com sua voz cristalina atrás do espelho das verdades, “eu cuidarei de você e seus irmãos e, juntos, tornaremos o mundo mais belo”.

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Na Diocese Velaskiana, as bruxas sentiram a roda do destino girar a seu favor. “O que vamos fazer?” perguntou uma representante na convenção e a senhora delas, misteriosa como a religião exige, respondeu: “O que fizemos até agora. Esperamos enquanto agimos. Aguardamos eles se matarem e teremos um exército de heróis. Nossa deusa profetizou que essa é a era dos heróis, precisamos deles em nossas filas”.

A convenção calou-se. Não era do feitio de ninguém ali questionar aquilo. Estavam todos presos no complexo grande plano da deusa ocultista.

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No alto da Torre de Draganathor, um conselho de sábios questionou a decisão do príncipe da vingança: “Deixe que venham. Sempre estivemos preparados. Deixem que se matem e que reconheçam nossa supremacia, só aí investiremos”, Aisenn ordenou. A reunião se acalorou quando um insolente o chamou de covarde e, como vingança, todos que se encontravam ali morreram em desespero enquanto encaravam a face da Dragocracia.

“Já estava na hora de uma mudança de ares”, o rei conspirou.

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Ivanhoeh escalava um paredão no Monte do Farol, lugar de treinamento dos novos campeões da Igreja da Cruz-Espada. Uma águia gigante, montada pelo seu cavaleiro eólico, invocou uma tempestade a partir de suas asas e um grupo de novatos, como Ivanhoeh, sentiu a pressão da ventania perfurar suas peles. Um colega do soldado não aguentou e caiu encontrando a morte imediata e sem salvação. Ivanhoeh choramingou, havia perdido um amigo, talvez, mais que amigo. Encontrou força nos sermões militares de um paladino de Splendor e concluiu aquela fase do treinamento com muitas escoriações.

Lá em cima, diante do templo escavado no cume da montanha de onde uma luz sagrada sempre se projetava, Ivanhoeh disfarçou a tristeza, mas os cavaleiros da Ordem da Cruz-Espada eram muito bons em discernir mentiras e disfarces, por isso, notaram. A ordem foi para que o restante dos novatos apedrejasse Ivanhoeh ali mesmo, diante o olho divino de Splendor.

Mutilado, contundido e humilhado, Ivanhoeh foi comandado à ficar de pé. Seu mentor, um cavaleiro maduro e muito rígido, segurou o queixo do novato e o obrigou a olhar para seus companheiros de treinamento: “Aqueles são seus amigos de agora em diante. Todos eles. O que eles fizeram aqui, salvou não somente a sua patética vida, mas ajudou a salvar todo o futuro deste mundo”. Uma lágrima desceu do rosto de Ivanhoeh, ele não conseguia entender o conceito de tudo aquilo, tinha uma imagem completamente diferente da Igreja da Cruz-espada.

“Você não é mais Ivanhoeh, o soldado, humano e mortal. Você é Ivanhoeh, o santo, o mártir, um herói de Splendor! Seus sentimentos estão bem abaixo do plano da nossa igreja. Você vai entender isso ou morrerá!” e largou o novato no chão. Ivanhoeh caiu de joelhos, nunca tinha sofrido tanto. Olhou para a beira de um penhasco e pensou em pular. Caminhou trôpego até lá, ninguém iria impedi-lo, então, de alguma forma, sentiu o toque caloroso de Splendor em suas costas. Aquilo só podia ser o “chamado”, como os cavaleiros da Igreja da Cruz-espada chamavam, ele era um campeão de Splendor agora e entendia que aquele sofrimento era nada perante ao que iria sentir. Aceitou a carga. Era especial. Era um santo e destinado à Mártir Consagrado.

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“Interessante. Essa profecia existe há muito tempo”, resmungou Ithias em sua biblioteca particular, distante e antiga, nas ruínas dos gigantes de outrora. Ele analisava textos cravados em pedra num idioma muito antigo que um perafita havia ajudado à desvendar.

“E agora, senhor Ithias, o que fará com essas informações?”, perguntou o perafita, uma raça guardiã feita de pedra e magia.

“Muito simples. Fazer o que a profecia manda e jogar tudo no peito dos heróis. Não sou muito de dar atenção à astrologia, mas se essa diz que é pra foder com alguns presunçosos, vou ajudar. Com menos vilões e menos heróis, talvez, haja alguma mudança. Prepare-se coisa, vamos viajar, faz tempo que não conspiro contra meus amigos da Ordem Arcana”.

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A Divina Engrenagem continua a girar seus alicerces. Cada polia, rédea e mecanismo trabalhando incessantemente em respostas. Consciências para corpos de metal e magia são fabricadas através de um código binário divino. Corpos imunes à morte, à controle mental e necromancia.

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Cass, apesar de tudo, era um bom ouvinte. Thuani logo percebera aquilo. “Precisamos contratar mecenas. Gastar muito mais da metade de nossas finanças nisso”, ela disse. Espalhar a existência da Ordem da Arca era essencial. Sorte que Mathariel tinha muitas amizades. Juntavam-se às filas de mecenas de ordem os carismáticos Javert, Jackson, Nikolai e Hella d’Helm. Precisavam começar do início, mas um início com estilo.

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