[Extra] Cena 3 - Três

 

Pântanos são ensopados de lama, mosquitos e minúsculas criaturas peçonhentas. As árvores que sobrevivem no ambiente desenvolvem raízes protuberantes, finas como arames, elas crescem tortas, quase em súplica. Aqueles que vivem em regiões pantanosas escolhem seus lares varridos da presença lamacenta, erguem suas casas com madeiras tortas e as hasteiam pelo menos três metros no ar. Poucas coisas sobrevivem muito tempo no pântano, tudo é lentamente devorado, mesmo a geografia. Mesmo grandes rochas ou construções poderosas têm seus alicerces rompidos.

Havia uma cidade naquele lugar antes que tudo se tornasse um charco. Quando a umidade veio, ruas e casas desabaram lentamente, devoradas pela lama e pelo ambiente inóspito. Os habitantes, sejam quem fossem, também foram devorados e seus restos esqueléticos foram tingidos pelos musgos e lodo, crânios se tornaram a casa de inúmeros vermes. Nada, enfim, sobreviveria durante muito tempo, exceto aquela cadeia de montanhas.

Inerte e adormecida no meio de Xea’thoul, uma cordilheira de montanhas com picos feito arpões lancetando o céu eterno cinzento insistia em se manter de pé, imune à aniquilação pantanosa. Ali mora um deus aprisionado e seu nome é Marduk. Ele está preso de muitas formas.

A primeira de suas prisões é o pântano, o seu lar de eras, onde ele se tornou senhor absoluto. Vítima de uma magia muito antiga, o deus não pode sair das limitações que formam o arquipélago de Xea’thoul. A segunda, seu corpo, vestido com armadura permanente que lhe cobre cada centímetro, pois sua pele é feita de minúsculos anéis como os de uma cota de malha, seus pontos vitais protegidos por carapaças metálicas enegrecidas, os dedos forjados de farpas, o busto de um material impossível de ser replicado. Por fim, há a prisão de seu desejo, a mais insuportável dentre as três. Marduk é deus da guerra e da vingança e durante eras foi incapaz de realizar as duas. Os mortais venceram e mantiveram a vitória durante muito tempo e o desejo do deus apenas aumentou, fomentado pela sua deplorável situação.

Seu passado é uma história esquecida, poucas vezes contada, pois para aqueles que sobreviveram ao seu exército, contar era motivo de mau agouro, contar era provocar o ódio do aprisionado que, mesmo preso tão distante, poderia ouvir e jurar vingança. Contar seria ofender ao deus que todos sabiam que um dia, inevitavelmente, iria encontrar um jeito de sobrepujar a magia essencial e atacaria novamente. Feito dos aspectos mais humanos possíveis, Marduk nunca iria desistir de sua jornada.

Xea’thoul foi, aos poucos, se tornando lenda. Uma ilha de histórias de fantasmas. Marduk não mais recebeu desafiantes em sua arena, ninguém seria forte o suficiente. Então, a quinta era chegou e um exército varria seu território. O deus regozijou-se com aquilo, cravou suas garras no chão e a fez sangrar, então, seus devotos, o exército que se tornou demônio, ergueu-se e pela vastidão do pântano, naquele dia, uma guerra sem limites ocorreu.

Marduk, deus da vingança e da guerra, prisioneiro de Xea'thoul

 

Marduk assistiu à tudo em cima de suas montanhas. O deus era um misto de sentimentos, havia o ódio dedicado à cada morte de um da sua tropa e havia o orgulho por ver aqueles invasores, em sua maioria humanos, sacrificar suas vidas por um objetivo, mesmo que o objetivo fosse a derrota dele.

  Eles esqueceram que foi você, não foi, deus da guerra? – a voz sublime de outro deus sussurrou como a brisa mais calma.

Marduk cravou suas garras de metal em Domnaham, a espada que domina exércitos, sua desde sempre. O deus havia notado a presença à tempo suficiente de reagir, mas não previu sua chegada, como é o de costume. Ele olhou para o outro deus:

− Você é o protegido da divindade élfica – resmungou Marduk com asco na voz – criado humano para reinar sobre tudo, derrotado pelo desejo fraco. Diga-me, quem realmente esqueceu de sua jornada?

                O deus invasor era jovem e pretensioso, seus olhos eram órbitas estelares, seu corpo formado pelo pó das mesmas, cintilando como centenas de constelações. Havia nele o conhecimento antigo e recente do universo. Ele era o mesmo de sempre e mais outro e apenas ele conseguiria destravar aquele assunto com o deus da guerra.

− Para mim, você, deus demônio sempre foi injustiçado, tomando a culpa de suas crias humanas desgraçadas que, com livre arbítrio, sempre foram presenteadas, mas quando a Splendor se voltam, você sempre é o culpado.

− Encerre seu discurso de empatia, escravo da magia. Acha que isso mudará o fato de que sairei desse encontro com sua cabeça em minhas mãos? – os punhos de metal agarraram o cabo de Domnaham.

− Reserve suas energias, Marduk. Sua espada não será usada contra mim hoje. A luta que mais espera desde que foi aprisionado no pântano do ébano acontecerá hoje.

Atrás dos anéis de ferro que lhe cobrem a boca, Marduk bafejou o som da surpresa.

− Eu estou aqui apenas para lhe lembrar o porquê dessa luta ser tão importante. Você se lembra, deus demônio, quando forjou a essência da tua raça? Lembra-se da euforia guardada na ideia da criação dos humanos? Feitos de suas ambições, modelados com sua vontade, criados para reinar sobre as demais raças. Semelhantes à você.

− Cale-se, verme. Você acha que consigo me livrar dessas memórias se devo à elas minha sanidade? – ganiu Marduk, o barulho de sua pele feita de anéis fervilhando.

− Você acertou. Eles são a maioria. Sempre foram. Eles tomaram conta de todo o reinado e até criaram suas próprias raças e se tornaram outras também – prosseguiu o deus vindo das estrelas – para mim não parece certo eles escolherem outras divindades, muito menos aquela que lutou para que eles mesmos não existissem. Aquele que considerou a existência dos humanos uma quebra no peso da balança.

A mão de Marduk ainda segurava o punho de sua espada e a raiva tornou aquele aperto trêmulo. Domnaham manteve-se firme, mas a montanha inteira estremeceu em resposta à raiva do deus.

                O céu cinzento se partiu permitindo a passagem de uma luz santificada. Um anjo de quatro asas desceu com sua cruz-espada. Outro deus. Irmão de Marduk. Lorde Splendor.

− Acertemos as contas de uma vez, irmão – a voz do deus angélico ressoou como o som de cem trombetas, lá embaixo, o exército que avançava ganhou novos ares e seus medos foram sanados.

− Irmão? – Marduk não podia crer – O que te fez desencostar a bunda santa do seu trono alado e finalmente encarar seu juízo final?

As asas do deus justo brilhavam num tom dourado e seriam como a coroa que acerca o sol para qualquer mortal. Cegaria os menos acostumados.

− A vergonha de ter um irmão dominado pela perdição – afrontou Lorde Splendor. Catarse era o nome de sua espada no formato de cruz, a senhora da grande provação.

Marduk rosnou um som metálico de ódio puro, agarrou Domnaham e saltou contra o adversário numa velocidade inimaginável, um rastro de destruição se formou no ponto de seu abandono junto com um som de trovão vindo da terra e relampejando para o céu que era metade cinza, metade dourado.

Domnaham foi recebida por Catarse e o som metálico das duas fez as montanhas tremerem. Um poder imensurável foi dissipado, nem o vento persistia, por isso, abriu espaço para o vácuo. Escuridão e luz se contrastavam em efeitos nunca antes vistos e inenarráveis.

− Desde quando o deus da precaução resolveu remediar sua existência fajuta com um pouco de impulsividade? – Marduk fez soar a palavra “precaução” como covardia – você está na minha arena irmão. Todos que aqui morrem sorvem suas raivas e vinganças para mim!

Lorde Splendor cravejou sua manopla na fronte do deus demônio e uma luz arrasadora forjou o símbolo sagrado da cruz-espada. Uma dor agonizante atingiu o corpo e a mente de Marduk, ele vociferou furioso levando as garras metálicas ao rosto e respaldando Domnaham na robusta armadura do deus justo.

− FILHO DA PUTA! – rugiu e sua fúria instigou aos glabrezus que lutavam mais adiante no pântano a agirem com mais selvageria, o dobro de sangue foi derramado naquele segundo – NÃO TENTE JORRAR SUA TORRENTE DE ARREPENDIMENTOS EM MIM! EU SOU MAIS DO QUE VOCÊ E OS MALDITOS PRIMORDIAIS ACHAM DE MIM! – na parte cinzenta do céu, um raio de cor púrpura desenhou um arco violento na hora que o deus demônio investiu contra o irmão novamente.

Domnaham foi bloqueada por Catarse. Splendor bateu suas asas e a luz ardeu nos olhos protegidos de Marduk. A lâmina da grande provação relampejou um raio correto e retilíneo que cortou a montanha em dois e atravessou o corpo do deus demônio. Sem asas, Marduk foi ao chão, uma fissura profunda formou-se na terra em que ele prostrou e em algum lugar da pacífica Rivergate, um paladino halfling, num golpe certeiro, salvou a vida de um bebê das garras de um sádico homem-rato. Splendor ergueu sua mão direita e apenas de sua vontade uma lança sagrada se formou, cercada de outras nove, então, arremessou contra o irmão uma coroa de luz perfurante que adentrou a fissura onde Marduk se recompunha, lancetou a pele de anéis metálicos com energia sagrada e, em algum lugar nos salões de um templo em Mordae, um grupo de clérigos havia decidido reunir forças para eliminar os vampiros que frequentavam um covil perto da cidade de Krishnam.

O corpo do deus demônio ferveu, o metal incandesceu até ficar laranja, mas sua silhueta saltou alto em meio à cortina de pó e destroços, Domnaham sedenta de vingança. Dessa vez, em algum lugar na Torre de Draganathor, um assassino arrancou o coração de um nobre que há muito desejava matar. Cinquenta e seis cópias de Domnaham cercaram Lorde Splendor e investiram junto ao golpe principal do deus demônio. Na pequena cidade de Yrale, uma família de nobres decidiu que não podia suportar a falência e se matou enforcada, em Xea’thoul, Splendor sentiu a carga de cem exércitos perfurar sua armadura e foi arremessado contra a montanha.

Splendor recolheu a trombeta da jornada heroica entre seus pertences e a ressoou, fazendo Marduk saborear o gosto amargo das vitórias dos paladinos e clérigos do deus justo na última era. Em segundos, Splendor era uma águia celestial imensa cravando as garras no corpo do deus demônio, então o arremessou contra pilastras rochosas e investiu novamente tomando a forma de arcanjo e cravando Catarse no estômago do adversário. Marduk ganiu de dor e sangue vermelho como o de um mortal, foi cuspido de suas vias aéreas. Em Azran, a espada de um antigo campeão de Splendor voltou a resplandecer nas mãos de seu descendente que decidiu usar o artefato para eliminar a Mortalha.

− Sofra, irmão – pediu Splendor, havia súplica em sua voz enquanto Catarse atravessava o estômago do irmão e o prendia contra a rocha – apenas a dor de um genuíno sofrimento pode salvar sua vida. Faça o que deveria ter feito há eras. Sofra.

Marduk sentia a lâmina sagrada rasgar o metal e esquentá-lo. Segurou as mãos do irmão às suas, livrando-se de Domnaham e vociferou:

− VÁ À MERDA! – empurrou Catarse no próprio corpo, sentiu a coluna se romper – ME DÊ O QUANTO VOCÊ QUISER DISSO, DESGRAÇADO! NADA VAI ADIANTAR! – um riacho de sangue desabou de cima da montanha e causou uma enchente no pântano, vrocks se refestelaram no sangue do deus e crocitaram em fúria renovada – EU NÃO PEDI PARA SER ASSIM! FOI VOCÊ, IRMÃO, VOCÊ E OS DEMAIS MALDITOS PRIMORDIAIS QUE TRANSFORMARAM AS MINHAS IDEIAS EM MONSTROS! FORAM VOCÊS QUE ME TORNARAM O QUE EU SOU! A SUA BALANÇA DECIDIU O QUE ERA O BEM E O QUE ERA O MAL! – a montanha se rachou e parecia querer se mover para longe da dor – ENTÃO, VÁ À MERDA! EU VOU MATÁ-LO! VOU MATAR VOCÊ E TODOS OS OUTROS!!! – a rocha se partiu, Splendor largou Catarse no busto do irmão e uma nuvem de poeira e destroços originou-se daquele ponto. A montanha foi despertada tendo em si garras e presas colossais.

Marduk arrancou Catarse do torso e fez Domnaham voltar à sua mão. O riacho de sangue continuou a ser formado, partindo como uma chuva nas entranhas da montanha. O deus demônio investiu com as duas armas, Catarse fervilhando na mão esquerda. Um golpe feroz com ela e uma das quatro asas de Splendor foi arrancada. O deus justo sentiu e em Sazancross, uma ilha inteira foi dizimada por um grupo de kuo-toahs que finalmente tomaram de volta o lar depois de mais de quinhentos anos. Com Domnaham o deus demônio descreveu um golpe ainda mais potente que cravou numa segunda asa e a fez espirrar a luz divina e, em Nevaska, um jovem esquimó se divertia assistindo um grupo de caçadores odiáveis que haviam estuprado sua irmã morrerem afogados e congelados num rio sem nada fazer.

− VOCÊ PRECISAVA DE UM OPOSTO PARA TRIUNFAR, NÃO É, IRMÃO? PRECISAVA DE ALGO PARA SER ODIADO! – Catarse arrancava a terceira asa e, no reino de Corantha, um garoto esfaqueava pela oitava vez o pai abusador – VOCÊ TRANSFORMOU AQUELES QUE SE INTERPUNHAM À SUA ORDEM, OS MEUS MAIS LEAIS SEGUIDORES, EM CRIATURAS HORRÍFICAS, DÉBEIS, QUE SÓ PENSAM EM PRATICAR A SELVAGERIA E CORROMPER OS CORAÇÕES DA RAÇA... DA RAÇA QUE FUI EU...EU QUEM CRIEI! – Domnaham arrancava a última asa e, no reino de Chattur’gah, uma feiticeira dizimava toda sua tribo que, um dia, havia a apedrejado e exilado – ELES SÃO MEUS! EU OS CRIEI À MINHA SEMELHANÇA, À MINHA AMBIÇÃO E VOCÊ OS ENGANOU, OS TOCOU COM SUA VERDADE ÚNICA E ESCRAVIZADORA! – enfiou Catarse no peito de Splendor e Domnaham em seguida, então, Zenith, a cidade alada, capital de Azran, despencou do céu em cima da cidade que era a sua sombra matando um número incalculável de pessoas – AGORA...ISSO...VAI...ACABAR!!!

Abriu dois caminhos na carne do deus justo e dividiu a parte superior da inferior. Marduk conseguia sentir o gosto do sangue do irmão nos lábios de metal.

[...]

− Você resistiu. Eu calculei isto – a voz do deus vindo das estrelas ressoou.

                Marduk tinha as duas mãos no cabo de Domnaham que ainda estava cravada na montanha. Catarse havia simplesmente desaparecido. A boca do estômago do deus demônio estava ilesa, o riacho de sangue que ele mesmo havia formado não existia. Nada daquilo tinha acontecido.

− O que aconteceu? – perguntou absorto.

− Eu chamo de “A Face de Astaroth”, minha própria versão de assassino fantasmagórico.

O deus demônio arrancou Domnaham da rocha e ameaçou o deus jovem.

− QUEM É VOCÊ!? – vociferou mergulhado em ódio.

− Eu sou o deus da magia, porém, muito mais do que ele. Se você pudesse viajar para outros planos, saberia que tenho incontáveis nomes, mas aqui, aqui em Draganoth, tenho o mais singelo deles. O nome simples de um humano. Eu sou Aensell, aquele que veio das estrelas.

− COMO PODE ZOMBAR ASSIM DE MIM! – o deus demônio tem as mãos trêmulas de fúria. Tudo havia sido nada mais do que uma ilusão mortal, nada tinha acontecido, exceto uma coisa: a montanha se movia, a montanha ainda era feita de garras e presas – EU SOU UM DEUS!

− Eu sou dois – explicou Aensell com serenidade – mas pretendo ser três.

O deus vindo das estrelas havia calculado que aquela luta iria acontecer, por isso, passou milênios em galáxias cujo tempo não era um problema e voltou preparado. O tarrasque rugiu, então o céu desabou numa chuva cujas gotas pareciam espadas.

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