Cena 4 - Hecatombes

 

                Harman nunca tinha visto as ruas da primeira ala tão desertas. Desde que pudera meter os pés na torre, todos os dias o pequeno bardo conhecia um pouco mais dela. No geral, tudo era muito bem organizado, moradias nas laterais que todos chamavam de subúrbio e o grande centro urbano no meio, onde as embarcações do Conde Terranova chegavam aos montes. Os canais, por onde transbordavam a água de quilômetros da torre, eram, na maioria das vezes, curiosamente limpos e seus caminhos podiam ser confusos para grande parte dos visitantes, mas tudo era uma questão de costume e saber que todas as ruas da primeira ala desenhavam uma espiral.

As ruas naquele dia estavam sujas. Os pertences de uma centena de nobres abandonando seus lares desesperadamente se acumulavam às poças de sangue e vísceras. Um par de carniçais roía os ossos de uma vítima numa rua próxima e ainda podiam-se ouvir gritos de inocentes sendo caçados pela invasão morta-viva. Tudo começou na Universidade Barrymore, quem sabia de parte da história daquele lugar não se surpreenderia com o resultado.

− O rio da deságua fica muito próximo da primeira ala. Tenho quase certeza que as sarjetas da primeira ala vão dar direto nele. Vocês sabiam que nessa ala não há cemitérios? Quando um nobre morre, seus parentes precisam gastar uma vasta quantidade de peças de ouro para criar sepulcros especiais que normalmente podem ser encontrados dentro das limitações dos jardins de uma mansão – Harman contava a história para seus desatentos ouvintes – mas, embora não pareça, existe muita pobreza nesta ala, a maioria se abriga nas sarjetas, que é um lugar perigoso de se estar. Estes não podem pagar um enterro descente e acabam descartando seus mortos nos canais afim de que eles encontrem um fim na desembocadura do rio.

O cheiro de podridão foi ficando mais forte. Um carniçal solitário foi o primeiro a farejar a presença de novos invasores. Ele estava devorando os restos de um cachorro de rua, quando sua fome o obrigou a fazer uma investida contra Arya, que estava à frente do grupo. A felina de pelagem branca recebeu a criatura com a atrocidade que é a sua clava. As dezenas de lâminas cravadas na clava abriram dezenas de buracos no corpo do carniçal e a mandíbula da criatura se rompeu dando passagem a língua salivante e sangrenta. Arya esmagou a criatura e um espatifado de vísceras se espalhou pela rua.

A Universidade Barrymore possui quatro fundadores. Eles eram sedentos por poder. Certa vez ouvi boatos que todos eles compactuavam com a Mortalha e veneravam o deus lich, mas, de alguma forma, isso nunca foi provado. Bem, talvez o que esteja acontecendo agora seja prova o suficiente. Imaginem se um negócio envolvendo cadáveres existisse. Ladrões de tumbas é um profissão excêntrica, porém, bastante recompensadora, especialmente quando até o corpo da vítima vale uma nota no mercado negro.

Mufasa espiou uma viela adiante e alertou Dente de leão de que aquele não era o melhor dos caminhos. Um grupo de esqueletos débeis era liderado por um campeão da espécie, crânio cinzento, olhos amarelos de fantasma e armadura pregada aos ossos. O grupo decidiu prosseguir sem chamar muita atenção. Dente de leão notou que um dos esqueletos desgarrados vinha em sua direção e sussurrou uma morte dissipante para a criatura. A magia criou um rastro de vácuo dentro da caixa torácica da criatura e a engoliu como um buraco negro, estalando os ossos do esqueleto até deformar e impedir seu próximo passo.

− Suponho que os fundadores da universidade tenham gasto uma boa grana de seus estoques para comprar esses cadáveres ilegais e depositá-los em algum lugar bem escondido de lá e que os pobres que moram na sarjeta, sem muita escolha de vida, acharam que a única boa notícia na morte de um amigo é que o corpo dele poderia ser vendido por uma singela quantidade de peças de ouro, isso quando não havia assassinatos propositais só para garantir uma porção de peças de ouro para gastar no final de semana. Se vocês pensarem bem, a primeira ala é um lugar perfeito para acontecer isso. Ao invés da vigilante guarda draculean, vemos nessas ruas um bando de mercenários de serviço particular, os guardiões cinzentos. Tudo poderia ficar muito bem escondido atrás dos panos.

Dois carniçais apareceram no escuro de um beco, seus rostos já estavam vermelhos de chafurdar na morte, pingos grossos. Arya rosnou enquanto clamava pela força selvagem de Zoe e em resposta os carniçais foram surpreendidos pelo toque invisível de uma garra que os submeteu ao chão, a pele dos mortos-vivos fervilhava enquanto uma mordida invisível lhes mordia as costas profundamente e arrancava suas colunas.

− Acho que isso explica quase tudo, mas não explica esse ataque repentino. Vocês sabem qual a missão da Mortalha? Claro, presumo que todos saibam que é tornar o mundo uma necrópole, mas, como eles pretendem fazer isso? Na era passada, Saulot forjou centenas de pequenas gemas esverdeadas do tamanho de um olho e prendeu nelas parte de seu poder imenso de deus. Essas joias ganharam muitos nomes, hecatombe é o meu favorito, porque expressa exatamente o porquê de elas terem sido forjadas. Ao quebrar as hecatombes, essa essência necromântica toca tudo com a maldição dos mortos-vivos num raio incontável de metros. Os cemitérios se erguem e os zumbis, carniçais, esqueletos, toda espécie de morto-vivo passa a caçar e devorar qualquer resquício de vida. Eles agem como um, são projeções do desejo do deus lich e é isso que possibilita a criação máxima dos seguidores dele, a Mortalha, uma devastadora cidade feita de carne e sangue que devora tudo pelo caminho.

Gema da Hecatombe

Num salto, Mufasa alcançou o rosto de um zumbi imundo e mastigou a face até que os ossos do crânio quebrassem. Dente de leão assistiu à um buraco grotesco crescer no estômago de outra criatura enquanto a carne e vísceras delas eram sugados para dentro do vácuo criado por ele.

− O ataque à primeira ala deveria ser muito mais devastador do que isso, a universidade não tinha estoque de cadáveres o suficiente, dá pra perceber isso. Foi uma jogada fraca da Mortalha, os vassalos dracul vão eliminar essa ameaça inevitavelmente, não tão depressa quanto gostaríamos, mas vão. São poderosos o suficiente. A não ser que o despertar dessa hecatombe tenha sido forçado de alguma forma. Amigos, vocês falaram que nosso Grizma está galanteando uma Barrymore, não é?

Harman! Cale a sua boca e se concentra nisso aqui! rosnou Arya apontando para os arredores.

Campeões esqueléticos guiavam sua horda de esqueletos débeis através de uma rua, um zumbi gigante como um ogro ganhava passagem por outra acompanhado por uma dúzia de famintos semelhantes, enfim, na terceira rua, os carniçais saíam das sarjetas tentando ordenar um ataque mais preciso contra aqueles invasores. Havia muitos inimigos para enfrentar apenas quatro heróis.

Não tem caminho seguro para seguirmos, estamos cercados alertou Dente de Leão dando ordens para que seu leão se aproximasse.

Harman olhou para os lados analisando a situação:

Claro que temos, amigos e apontou para cima, para o telhado das casas.

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