[Extra] Cena 1 - A guerra da morte definitiva

 

Fleghias, líder do grupo da Fênix Branca

Fleghias apertou suas mãos nas de Jubei. O corpo do samurai fedia à queimadura pútrida enquanto sua vida inevitavelmente se esvaía. Ele buscou sua espada, mas não a encontrou. Azrael a trouxe, a lâmina dos ancestrais do guerreiro asuran tida como inquebrável agora partida.

Saofeng está quebrada, isso quer dizer que eu estou morto – o rosto do asuran estava deplorável. O olho esquerdo estava escondido atrás de um invólucro queimado, os lábios entrecortados pelo golpe de uma lâmina pesada e pouco afiada, tanto que podia-se contar seus dentes que já não eram muitos. Uma torrente de sangue envolveu sua garganta e ele cuspiu fracamente, deixando o grosso filete de sangue transbordar pelas bochechas. Ele havia perdido metade da armadura shogun que havia lhe sido presenteada pelo imperador de suas terras e a outra metade estava retorcida em seu corpo, cravada na pele, músculo e lhe serrando os ossos. Não sentia sua perna esquerda, pois ela havia sido arrancada por um balor. Lágrimas caíam desesperadamente de seus olhos ardendo dolorosamente – é este o meu fim, não poderei retornar, não alcançarei o descanso eterno de minhas terras orientais, minha alma será crucificada nesse pântano.

− Perdão, Jubei! – lágrimas choviam dos olhos de Fleghias – perdão por tudo! Perdão pela vida medíocre de combates que eu te inspirei a abraçar.

− Você me deu muito mais do que uma vida, senhor. A única coisa de que me envergonho nela é abandoná-la sabendo que não mais poderei protege-lo.

− O inferno não é tão ruim assim, samuca, eu já estive lá e sei que você não vai dar mole à ninguém – Azrael tocou-lhe o ombro e fechou as mãos de Jubei ao redor de sua katana. A boca de Azrael desenhou um sorriso nervoso e amarelo. O tiefling havia perdido parte de suas escamas em cortes profundos e um de seus chifres havia sido arrancado sobrando-lhe apenas um espaço negro e estriado no lugar. Fechou os olhos do amigo posicionando sua mão sangrenta com apenas três dedos, em seguida olhou para o nada esperançoso líder da Fênix Branca, a maior guilda de mercenários de Draganoth e falou – eu espero que ele esteja certo, Fleghias, nossas perdas foram grandes demais, insuportáveis.

− Onde estão Locke Lion e Niobe? – perguntou enquanto se erguia, sua espada bastarda resvalando na terra úmida e suja do pântano do ébano. Tudo estava escuro.

− Mortos, senhor. O grupo oeste continua seguindo adiante, mas seus líderes caíram.

Fleghias suspirou, então ouviu a água do pântano borbulhar. Uma revoada de vrocks crocitavam metros acima das árvores medonhas que compunham o cenário. Uma chuva de crânios explodiu consumindo tudo com sua energia negativa. Súcubos se aproveitaram da distração para atracar-se às filas de guerreiros da Fênix Branca. Guerreiros experientes caíam na lama e afundavam enquanto as diabólicas criaturas sussurravam ordens irresistíveis, enfiando seus rostos na lama até que morressem sufocados ou lhes mordendo os pescoços ou virilhas garantindo um prazer indescritível e fatal. As vítimas das súcubos morriam em deleite, mas Azrael sabia que aquela também era a melhor hora para executar as diabas fincando as adagas em suas gargantas profundamente e rasgando lentamente enquanto cuspia impropérios em seus ouvidos.

Fleghias lutava contra quatro hamatulas espinhosos, a lâmina rodopiando, brilhando como um raio de sol num dia muito chuvoso. As quatro criaturas caíam espetando a lama e as dezenas de cadáveres que se arrastavam nela.

Terror é uma palavra que pouco serve para descrever Xea’thoul, o pântano do ébano. As árvores pareciam se deleitar com a quantidade de sangue que sorvia de inúmeros cadáveres, o cheiro apodrecido, já comum no lugar, tornou-se ainda mais insuportável. Heróis guerreiros vomitavam e pisavam em excrementos e vômitos. Doença e loucura assolavam instantaneamente a saúde daqueles que entravam no pântano. Vargouilles prendiam suas patas ossudas na carne de suas vítimas e picavam-nas drenando o sangue em fartos goles enquanto estas combatiam levas de vrocks, os diabos-abutres.

Um dos heróis da fênix levou as mãos à cabeça num desespero aterrador, largou suas armas e correu até encontrar-se com uma árvore que ostentava um exército de criaturas enforcadas. A árvore, em sua lentidão dementadora, enterrou seus galhos nas vísceras do indivíduo e o ajudou a livrar-se da cabeça. O corpo inerte caiu pútrido no chão enquanto a cabeça adquiria asas vermelhas e membranosas e tornava-se um novo vargouille.

[...]

− Balor! – gritou Victorius, um paladino da cruz-espada que há muito fazia parte das filas de guerreiros da fênix branca. Ele alertava à todos sobre o mais temível entre os demônios enfrentados. Um balor, a personificação máxima de figura demoníaca. O cheiro de enxofre preencheu o lugar e o corpanzil imenso da criatura encruado de escamas e fogo transformou árvores em carvão e secou rios sujos. Um longuíssimo chicote de fogo entrelaçou vítimas sem se importar com escolhas, pois havia guerreiros da fênix e demônios do pântano. Este era o quinto da espécie que aquele exército encontrara no lugar.

Um balor sempre anda cercado por uma constante nuvem de cinzas intoxicantes. Os guerreiros da fênix tossiram forçosamente, as veias de seus pescoços saltando em resposta, muitos se encostaram em árvores ou caíram de joelhos no chão sendo facilmente ceifados imediatamente pelos algozes infernais. Os demônios da pestilência, com seus rostos de crânio de cavalo e corpos cheios de vermes, espalharam a doença pelos cadáveres que quando tocados praguejavam um câncer capaz de definhar músculos e rasgar a pele.

Victorius clamou pela proteção de Splendor e seu mangual brilhou intensamente dourado – deus dos justos, nos tenha piedade – girou a corrente de sua arma e a extremidade de metal farpada era também um turíbulo que fazia chover água benta ao seu redor. Outros dois paladinos de Splendor e mais um clérigo da divindade apareceram incandescentes.

− Este é o quinto, senhor – informou um dos paladinos, o rosto banhado de lama e a ombreira esquerda partida mostrando um ferimento profundo e roxo, seu cenho era de súplica.

− Este é o dia da nossa morte, Wyrd – Victorius há muito já havia descoberto isso – mostre ao nosso deus que é merecedor de estar em seu reino de justiça infinita – tocou-lhe o ombro e uma magia divina de esperança ressoou afetando aquele guerreiro e muitos outros ao redor.

Os guerreiros da fênix despertaram nova coragem. Ao redor de Victorius, a dupla de paladinos, auxiliados pelas preces de um clérigo, davam fim à um glabrezu, um diabo com pele de crustáceo e pinças poderosas que esmagavam cabeças e troncos. Victorius pediu ajuda aos guerreiros da fênix e abriu passagem entre vrocks e hamatulas, seu mangual dourado zunindo queimando e esmagando ossos pelo caminho. Trombetas foram ouvidas, guardiões arcontes se apresentaram diante o chamado, rosnando e empunhando suas espadas bastardas aladas.

Um anjo de aspecto feminino e pele de cor esmeralda fincou sua espada larga na nuca do balor e uma rachadura laranja incandescente apareceu. O balor agarrou ela com seu chicote de chamas infernais e rodopiou o ser angélico arremessando-o contra o chão e chocando-o contra a lama e as árvores grostecas uma dezena de vezes.

Uma velha guerreira da fênix trajando um já surrado gibão de peles segurou firme seu machado e saltou contra o demônio. Seu cabelos cinzentos cresceram rebeldes e o corpo enrugado adquiriu músculos e uma pelagem espessa. No meio do salto, agora ela era um urso com pelagem da cor do céu durante uma violenta tempestade. O machado cravou no braço esquerdo que o balor insistiu em usar como escudo, e lá ficou.

A guerreira ursa urrou, um estrondo sônico atordoou o balor e oito ursos atrozes saltaram em suas costas mordendo e rasgando independentemente do calor infernal que lhes queimava a pele e consumia suas vidas. A velha ursa se chamava Freya, ela segurou o chicote do lorde das profundezas e sentiu sua pele fundir-se à arma. Ela puxou com a força de cem homens e gritou:

− Victorius!

O paladino da cruz-espada esfacelava um vrock à sua frente, ouviu seu nome ser chamado e girando seu mangual correu em direção ao balor. Guerreiros da fênix investiam e empurravam hamatulas da frente de um de seus líderes sem se importar com os espinhos que perfuravam sua carne e envenenavam seus corpos. Num grande esforço, Freya enrolou o chicote do balor em seu braço e num puxão o fez curvar o corpo, ficando ao alcance do mangual de Victorius que lhe acertou no queixo e abriu uma rachadura vulcânica dolorosa.

O lorde das profundezas largou o chicote e livrou o anjo planetar que rastejou até um lugar seguro sendo protegida pelos arcontes guardiões, enquanto o demônio levava a mão ao rosto que se quebrava como vidro. A criatura enfiou as próprias garras no peito e se despedaçou, deixando jorrar seu sangue de lava.

− Foi uma honra... – Victorius livrou-se das presilhas de sua armadura e manto, caiu no chão segurando o ombro muito ferido, seu corpo atlético não havia perdido massa mesmo atravessando a maturidade − ...viver para isto! – e a enchente de lava caiu sobre ele provocando uma morte instantânea.

Freya sentiu o chicote ceder e caiu no chão lamacento observando a cena incrédula.

[...]

− Victorius está morto, senhor – informou Azrael à Fleghias.

− E quanto à Freya e Ghim? – indagou Fleghias arrancando a cabeça de uma súcubo.

− Freya recuou com seus ursos, Ghim avança com as crianças – respondeu enfiando a adaga no crânio de um demônio da pestilência – estou cansado, senhor, estou realmente exausto...

Fleghias cravou a espada bastarda luminescente nas costas de um demônio abutre, aquele era o último de um grupo de vrocks que dançavam de mãos unidas crocitando maldições contra os guerreiros da fênix

− Azrael, amigo... – virou-se para inspirá-lo e o viu deitado na lama de bruços, três súcubos lhe mordiam o corpo e cravavam suas unhas escarlates. Uma delas sussurrava em sua orelha palavras pecaminosas. Nacos de carne vermelha e escamosa foram arrancados do pescoço do tiefling. As súcubos deliciaram-se enquanto se refestelavam em suas vísceras, haviam matado aquele que mais havia eliminado suas irmãs.

− Carmilla, porque nosso destino foi tão injusto – falou Fleghias à ninguém, as lágrimas escorrendo em seu rosto. Investiu contra o trio de súcubos arrancando a asa de uma, guilhotinando a segunda com um corte rápido na garganta e, por fim, derrubando a terceira. Segurou o pescoço dessa e a esganou violentamente, afogando-a num poço de água suja. Os olhos do general da fênix branca eram mistura de loucura e ódio.

[...]

Um dos demônios crustáceos agarrou um dos guerreiros da fênix e o despedaçou em duas partes. As vísceras desabaram no chão amamentando aquela terra maldita. Um grupo de bardos intrépidos que respondiam à Fênix Branca tocavam seus instrumentos musicais em conjunto contra-atacando a dança e o crocitar dos vrocks. O primeiro dos demônios-abutre caiu vítima de uma flecha explosiva. De cima das árvores Shion caminhava como um fantasma, assobiando e dando ordens para outros arqueiros. Uma dezena de flechas alcançou suas vítimas e mais um círculo de praguejadores vrocks foi abatido.

− Morte rápida aos meus inimigos – sussurrou o arqueiro para o arco, a linha retesou carregada de um brilho prata e fantasmagórico e duas outras flechas douradas se formaram nas extremidades da arma. Quando disparadas, as três flechas voaram dançando em espirais até se tornarem um único míssil que estourou no peito de um glabrezu, depois se separaram e tomaram conta dos demônios símios, gorilas gigantes de olhos vermelhos, carapaça óssea e quatro chifres tortos como os de um bode.

Shion cofiou a barba e limpou o sangue e a lama do bigode. Apertou o broche que segurava seu manto e uma magia de cura aliviou a dor em seus dedos.

− Senhor, outra árvore dos enforcados! – apontou um dos arqueiros súditos de Shion.

Shion assobiou para Ghim, logo mais adiante. Ghim era azer, um dos poucos existentes na quinta era. Um dia havia sido um anão, agora era uma figura robusta feita de chumbo e fogo. Cada respaldar de garras na pele de Ghim trovejava como se golpeando uma enorme estátua de metal. Ghim era o mais forte dentre os líderes da Fênix Branca, não por menos, tamanho era seu poder que foi motivo para bênção de seu deus, Hefasto, da forja.

Ghim urrou como um leão e ergueu o machado e martelo flamejantes. Ele estava entregue a uma fúria arrasadora e quando isso acontecia, o calor no lugar subia vários graus. Um círculo de faíscas e cinzas espiralava ao redor do azer. Ele quebrou o queiro de um demônio de pinças e arremessou o machado contra a árvore dos enforcados que, sem muita resistência, foi partida em duas libertando muitos guerreiros da fênix que sufocavam em seus galhos.

− Eu quero chutar a bunda aquele nanico quando tudo isso acabar! – reclamou e Shin pousou ao seu lado, manto azulado, rosto imutável mostrando serenidade e rigidez.

− Isso não é uma tarefa de resistência – ele explicou ao amigo de chumbo – é um sacrifício em massa!

− Fleghias está cansado da imortalidade – ralhou o bravo anão e despencou o martelo no chão fazendo com que um vulcão se desenterrasse na lama a mais de vinte metros de si – as tarefas simples no reinado não iriam trazer descanso eterno para ele – o vulcão instantâneo explodiu na cara de demônios espinhos esmagando suas fuças – e nós dependemos dele, por isso, talvez essa seja a morte da Fênix Branca, Shion.

Shion disparou mais três flechas de energia e elas encontraram súcubos e íncubos escondidas na copa das árvores. Aqueles que caíam ainda vivos eram ceifados pelos restantes guerreiros da fênix. 

− Vamos aceitar isso? – indagou Shion.

− É claro que vamos. Ele é o nosso líder! Atravessamos eras lutando devido a simples existência dele. Agora que ele nos reserva a morte, vamos abandoná-lo? Não senhor. Morreremos se este for o caso. Não entendeu, Shion? Essa história trata-se disso, da última guerra da Fênix Branca.

− Xibalbas estão atacando os bardos – acrescentou Shion, ileso à declaração de Ghim.

− Droga! Quantos tipos de demônios existem?

Xibalbas eram humanoides trajando roupas de nobreza, mas suas cabeças eram caprinas e negras. Eles eram possuidores de almas, contratantes de pactos infernais. Os demônios caprinos exigiam de seus pactuantes ajuda agora, por isso, estrangeiros abarrotaram o pântano do ébano. Bárbaros barbudos com dentes de piranha, um rei sahuagin de uma ilha remota, um poderoso feiticeiro que tinha sua torre escondida nas cordilheiras de Mordae, um svirnefblin ensandecido capaz de manipular magia do caos, todos estes pactuantes infernais.

Ghim investiu contra o bárbaro e arrancou sua mandíbula com um machado. O bárbaro apalpou sua língua sangrenta que se derramava junto com saliva e, enfim, seu crânio foi estourado pelo martelo do azer. O feiticeiro de Mordae conjurou sua calamidade fantasmagórica e invadiu a mente dos bardos com visões apocalípticas, eles soltaram seus instrumentos e levaram suas mãos à cabeça, então passaram a convulsionar expelindo sangue por todos os orifícios.

Shion deslizou na lama e com o arco derrubou o feiticeiro. Disparou uma flecha na mão do adversário que ganiu de dor e ficou preso e prostrado. O arqueiro pisou no outro braço do inimigo visando imobilizá-lo e o fez, facilmente. Retesou o arco, disparou mais uma flecha que afundou nas maçãs do rosto, depois outra que atravessou-lhe a boca. Uma magia guardada no corpo do feiticeiro ativou-se sozinha curando-o rapidamente, a pele sobreposta às flechas de Shion. O arqueiro puxou mais uma flecha, tornou-as um trio e disparou à queima roupa, depois de novo e mais uma vez, então o conjurador parou de se mexer.

Ao lado, Ghim agarrava a língua do sahuagin que havia abocanhado seu braço e agora torrava em contato com a chama de Hefasto. Ghim chutou o corpo do svirnefiblin arremessando-o contra uma árvore e ouvindo o som do crânio quebrando e miolos espirrando.

− Onde estão os cabeças de bode, Shion? – ralhou Ghim.

Shion sussurrou para suas flechas e elas brilharam num tom púrpura, em seguida as disparou alvejando três xibalbas invisíveis. Eles haviam sido marcados e sabiam disso, por isso, agora tentavam fugir.

Ghim pôde ver as silhuetas fantasmagóricas diante a escuridão, martelou o chão e invocou o poder do fogo de Hefasto, uniu-o ao machado e disparou um raio que se transformou num véu ígneo e consumidor. Os restos dos três xibalbas foram dizimados.

Shion, ofegante, olhou a devastação provocada pelo amigo:

− Sem descanso.

− SEM DESCANSO! – urrou o azer e ambos, junto com os guerreiros da fênix investiram com o que lhes restava do fôlego.

O chicote de um balor estalou queimando as árvores cinzentas e dizimando as ruínas de um passado plantado naquela treva. O grupo da fênix branca que avançava pelo leste havia chegado no núcleo de Xea’thoul, onde uma civilização enterrada pelo tempo brotava desmanchada pelo horror terrível do ambiente.

Pisaram nas ruas molhadas de vísceras e o cheiro de podridão invadiu as narinas de todos. Alguns guerreiros da fênix, mente e corpo cansados, vomitaram e caíram de bruços no chão inundando até seus joelhos. Desistiram ali mesmo. Afogaram.

[...]

Ghim e Shion lideraram a tropa de guerreiros da fênix restantes. Havia ladinos que tinham se arrastado por entre os cadáveres de seus irmãos e chegaram até a cidade do ébano com suas mentes fatalmente afetada. Eles sorriam insanamente da morte, por vezes gargalhavam, mas ainda sabiam para que lado estavam lutando. Aqueles que não conseguiram saciar seus questionamentos arrancaram suas vidas com adagas e venenos letais. O líder deles, Azrael, havia morrido, estavam sem comandante.

Um único bardo lamentou a morte de todos os seus semelhantes. Ele começou a tocar uma canção melancólica e maldita que afetou negativamente as mentes de alguns guerreiros da fênix, por isso, Shion teve de executá-lo com uma flecha precisa. Os anões da guilda que antes se mostravam figuras robustas com vastas barbas, agora só lhes sobravam tufos finos e desgrenhados e corpos raquíticos devorados pelas maldições evocadas pelos vrocks. Eles se reunião à Ghim contentes de que o comandante estivesse vivo, receberam o toque acolhedor do azer e a bênção de Hefasto.

− Vamos morrer, senhor – choramingou uma anã.

− Vamos, Bri – foram as palavras escolhidas por Ghim para consolá-la.

A anã entendeu e cerrou os punhos com devoção.

Os poucos magos sobreviventes da guilda usavam magia para criar novos caminhos e fazer o rio de vísceras escorrer. Um dos vigilantes arqueiros da tropa de Shion enxergou uma criatura medonha mais adiante, mas a reconheceu como aliado.

− Fleghias está vivo, meu senhor – contou a Shion – Dlobok está a seu lado.

[...]

Vrocks saíam de um gigantesco tumor cheio de furúnculos que secretavam podridão no pântano. A coisa grotesca se prendia à veias gordas que agarravam os alicerces da ruína. Um poderoso dragão vermelho sobrevoou o lugar, o couro de suas asas rasgado em algumas partes impossibilitando um voo perfeito. As escamas do pescoço da criatura incandesceram enquanto o hálito furioso se expandia da garganta dracônica.

Um véu ardente preencheu meia dúzia de ruas das ruínas com calor. Os vrocks foram consumidos dentro de suas cavernas viscerais. Em seguida, o dragão pousou ao lado de Fleghias.

− Os ninhos de vrocks foram dizimados – a voz do dragão não parecia contemplar a intimidadora presença do mesmo.

− Ótimo, Dlobok – congratulou Fleghias perdido em pensamentos – me faça um favor. Vá embora. Sobreviva e conte história.

− Vou te desobedecer, senhor – respondeu o dragão, que na verdade era um kobold. O kobold que havia dominado parte dos segredos do Draconomicon – a ala leste finalmente chegou. Está devastada. A norte e oeste chegaram antes, mas perderam mais de suas fileiras.

− Leve todos daqui – as lágrimas escorriam incontroláveis do rosto de Fleghias.

− Não vai sobrar ninguém, Fleghias. A escolha já foi feita.

[...]

− Muitas baixas, senhor – alertou Ghim, o azer, que junto às tropas de Shion e alguns sobreviventes de outras havia finalmente alcançado o ponto determinante.

− Obrigado, amigo – olhou para Ghim do seu lado direito, depois para Shion à sua esquerda.

Fleghias cravou sua espada prateada numa ruína bem posicionada, longe do rio de vísceras, alta o suficiente para não ser manchada.

− Carmilla, se minha espada e minha vontade não são suficientes para arrancar-lhe da catedral de sangue, eu espero que a minha morte seja – sussurrou baixo, como numa oração.

Os arcontes guardiões uivaram, os anjos planetares e os daevas pousaram nos pontos altos da ruína. Cada um de um círculo de druidas se transformou em suas versões animalescas prediletas, havia um tigre, um mastodonte e um pequeno camundongo. Um pássaro de proporções montanhescas cobriu o céu cinzento com suas asas laranja amarronzadas e o druidas o chamava de watalla.

− Ainda somos muitos! – gritou Fleghias – e a maioria de vocês sequer questionou minhas ordens para estar aqui e, agora, encaram um final inevitável. Meus irmãos, eu lhes prometi a verdade e assim a trago. A Fênix Branca não ressurgirá das cinzas como das outras vezes, eu consigo sentir isso. Essa é a nossa última e mais grandiosa luta!

Um exército menos treinado mergulharia em desespero esmagador, mas este não era o caso daquela guilda de mercenário que, até então, era considerada eterna.

− Eu não peço para que me perdoem, mas invoco o orgulho de vocês para que façamos deste fim o mais memorável de todos!

A Fênix Branca respirou aquele discurso, houve um silêncio respeitador e declarado à todos aqueles que já haviam morrido e para eles próprios que ainda iriam morrer.

Fleghias virou-se para o norte, sua espada era uma estrela no ébano. Ghim firmou suas mãos de chumbo ao martelo e machado. Shion cuspiu no chão e retesou a primeira flecha emoldurada de energia dourada. A garganta de Dlobok incandescia novamente e as chamas transbordavam de sua mandíbula. Os guerreiros da fênix ergueram suas armas e sibilaram suas magias.

A única cordilheira de montanhas de Xea’thoul se moveu. Tudo nas ruínas estremeceu e rachou, pedras colidiram nas ruas da cidade perdida. A montanha havia acordado. Sua bocarra devoradora de dragões se abriu mostrando milhares de dentes, as garras potentes arranharam a floresta e arrancaram de seus túmulos feras adormecidas. Os picos das montanhas lancetaram o céu, eles estavam incrustados na carapaça da mais colossal das criaturas e finalmente veio seu rugido com o poder de mil trovões.

Fleghias viu seu mundo e suas memórias passarem diante seus olhos pálidos, encarou a criatura e a nomeou num brando sussurro.

− Tarrasque.


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