Cena 1 - O exorcismo de Dreymora

 

Sir Tercius Doravant; Paladino da Igreja dos Anjos de pedra

                Um dia inteiro se passou e Lady Dreymora Barrymore se manteve inconsciente. Estava em seu quarto, deitada na larga cama com lençóis de cetim, ao seu lado, Breego, um tarou, braço direito de Dreymora, trocava constantemente os panos encharcados que descansavam na cabeça da jovem febril. Os dedinhos minúsculos de Breego se entrelaçavam numa preocupação notável.

Grizma era a terceira presença no quarto de Dreymora. Sentado à mesa, ele retirou a máscara de porcelana branca de expressão neutra que lhe tapava metade do rosto, escondendo a bizarra cicatriz que lhe trespassava o olho. Seu cenho era de preocupação, às vezes agarrava o próprio peito, onde uma cicatriz recente no formato de estrias negras podia ser vista, mas o aperto que tinha ali era o de uma angústia que se instalara em seu coração, algo que ele nunca tinha sentido de forma tão potente. Em primeira mão descrevera aquilo como uma sensação de medo, agora sabia que era algo mais. Estava realmente preocupado com Dreymora, apesar de ter conhecido ela a tão pouco tempo.

Ergueu-se da cadeira e espiou atrás da cortina do quarto para além do vidro limpo, observou o campus da Universidade Barrymore, estabelecimento cujo Dreymora era reitora. Ele viu os jovens alunos com suas fardas azuis de mago e chapéus pontudos e tortos, também reconheceu alguns professores excêntricos, ninguém lá embaixo sabia da condição da reitora. Perdeu-se em pensamentos, lembrou-se da Ordem da Arca, havia deixado seus amigos havia dois dias, mandara notícias sobre sua urgência, mas agora que estava distante deles e perto de Dreymora se sentia inútil. Definitivamente, ele nada poderia fazer para aliviar a febre e os pesadelos da maga.

Grizma, preciso de sua ajuda – disse Breego, seu olhos de rato como duas amêndoas grandes e molhadas.

                Grizma se sentiu aliviado por finalmente poder mostrar utilidade e assentiu com a cabeça:

− Existe um poderoso exorcista no Templo Sagrado dos Anjos de Pedra, seu nome é Sir Tercius Doravant – o tarou agarra uma das mãos de Dreymora em tom de súplica – ele poderá ajudar neste caso, mas – desconsertado, Breego tenta encontrar as palavras – os paladinos de Splendor, eles sabem do meu passado, serão resistentes à minha diplomacia, mas, quem sabe ouvirão você.

                Grizma tinha muitas perguntas a fazer naquele momento e uma das principais era sobre o passado de Breego, mas resolveu não julgar e decidiu que era mais importante a saúde de Dreymora.

− Farei de tudo para encontra-lo e convencê-lo, Breego – respondeu Grizma com seu sotaque de sílabas longas e tônicas.

Dreymora Barrymore, maga e tutora da Universidade Barrymore

 

                Grizma olhou para Dreymora uma última vez antes descer as longas escadarias que se estendiam por toda universidade. Ele já havia estado uma vez nesses andares antes, mas durante a noite. De dia ele conseguiu enxergar mais detalhes. Os livros se acumulavam nas paredes da universidade em três longos andares, como alvenaria, pareciam ser organizados pela cor ou tipo de matéria-prima. Os alunos, desacostumados a ver visitantes sem farda com exceção dos professores, olhavam curiosos a corrida do aventureiro para alcançar o exterior do campus.

Não fazia tanto tempo que Grizma tivera acesso à primeira ala da Torre, mas sua mente é perspicaz quando se trata de centros urbanos, por isso, o que para alguns parecia ser um labirinto de ruas sem saída, para o acostumado andarilho, encontrar o que ele queria era um tanto fácil, especialmente por se tratar do maior templo das redondezas, uma construção poderosa, porém melancólica, apresentava o mármore branco incendiado pela luz do sol crepuscular. As gárgulas eram as únicas figuras cinzentas que se contrastavam com o resto dos pilares que erguiam a morada dos clérigos e paladinos do deus da justiça.

                Grizma se surpreendeu por não encontrar tantos devotos como previra, atravessou a orla que desenhava os anjos de pedra ostentando a espada e a balança sem ser incomodado e como se o destino lhe reservasse, encontrou um único aparente paladino da divindade heroica. Ele mantinha-se ajoelhado em prece cavalheiresca apresentando o riacho branco que eram os seus cabelos tão alvos quanto mármore. Grizma resolveu não incomodar enquanto o paladino fazia suas preces, mas para sua sorte, ele não demorou muito. Antes mesmo do devoto virar-se, falou:

− Eu sou Lorde Grizma e procuro por Sir Tercius Doravant à pedido de Lady Dreymora Barrymore – forçou tranquilidade e respeito na voz, mas o coração à boca impediu que soasse tão convincente.

− Lorde Splendor me abençoou com respostas hoje – o cavaleiro aproximou-se Grizma com sua armadura de metal brilhante e fechou suas manoplas sobre o ombro daquela súplica – eu sou Tercius Doravant, milorde, e estou disposto a ajuda-lo.

                Grizma arregalou os olhos de espanto. Desnorteado pela facilidade e coincidência, ele só pôde pensar que os deuses de alguma forma estavam o ajudando ou à Dreymora. Sem rodeios, o aventureiro explicou à Tercius o cenário ocorrido e o paladino assumiu que era a pessoa certa a realizar o exorcismo.

− Adiante, jovem – continuou Tercius, agora com um pequeno livro vermelho cercado por um terço nas mãos. Sir Tercius Doravant inspirava confiança, seu nariz e queixo afilados desenhavam traços estrangeiros em seu rosto, os lábios tão finos que pareciam se perder na alvura de sua pele e um olhar tão austero que parecia apunhalar o medo daqueles que ele encarava, por isso, Grizma foi invadido por uma calma instantânea.

A dupla voltou ao campus da universidade e o barulho das botas metálicas de Sir Tercius destoava de tudo que podia ser encontrado no lugar. Diante da cama de Dreymora, Sir Tercius fincou sua espada longa no assoalho do cômodo, ajoelhou-se como se numa nova prece à Splendor e serpenteou o terço entre os dedos da mão direita, enquanto com a esquerda segurava o livro vermelho.

− Afastem-se – ele comandou e observou Breego fazer o indicado.

                Grizma teve a impressão de que Breego e Sir Tercius se conheciam e não pareciam amigos. Faria muitas perguntas ao tarou depois de tudo aquilo, mas, por enquanto, colaborar com aquele exorcismo era mais importante.

Grizma, sênior da Ordem da Arca e lorde das sarjetas

 

− Perdão, Sir Tercius, mas estive junto à Lady Dreymora quando essa situação começou e pretendo me manter próximo até o fim.

                Sir Tercius admirou-se com a coragem do aventureiro, embora desconfiasse que a decisão dele iria mudar em breve. Apenas assentiu com um balançar singelo de cabeça. O que Grizma presumira ser uma oração tornou-se um cântico religioso e a voz grave de Sir Tercius preencheu o quarto com a fé de Splendor. De início nada acontecera até que de repente vidros se quebraram, cortinas esvoaçaram e gavetas saltaram de suas cômodas. Os livros de uma estante próxima saltaram contra Sir Tercius, mas não eram pesados o suficiente para aplacar a armadura do paladino. Grizma esquivou-se de xícaras de chá e esbofeteou almofadas tentando evitar o efeito poltergeister do exorcismo.

                O idioma sânscrito ressoava intimidador vindo da boca de Sir Tercius e em sua mão as contas do terço deslizavam agilmente entre os dedos. Em determinado ponto, o pequeno livro vermelho de orações foi arrebatado pelo vento forte que emanava de todos os lugares, mas o que quer que estivesse reagindo às orações do paladino tinha conseguido fazer isso tarde demais. O tórax de Dreymora se ergueu como se tivesse sofrido uma descarga elétrica, suas unhas cravaram fundo na pele abrindo passagem para tímidos filetes de sangue muito vermelho. Finalmente, os olhos de Dreymora se abriram e a íris enevoada, cinzenta como nuvens de chuva, se arregalaram. A maga possuída ameaçava seu exorcista num idioma muito antigo.

Sir Tercius então arrancou sua espada do assoalho e mostrou o símbolo da igreja dos anjos de pedra incrustado nela. Uma ventania muito forte estapeou o paladino que, insistente, voltou a liberar suas palavras sagradas como uma torrente divina sobre o mal. Grizma, nem ninguém que participava do ritual conseguiria deduzir a quantidade de tempo em que ele foi finalmente executado, mas provavelmente menos que alguns minutos (embora esses minutos parecessem infindáveis).

De repente tudo que flutuava encontrou o chão e pôde-se ouvir o baque de dezenas de itens despencando. Exausto, Sir Tercius ajoelhou-se levando a mão ao gorjal da armadura. O terço despedaçou e suas minúsculas esferas se espalharam pelo quarto. Grizma, ao mesmo tempo que assustado, estava deslumbrado com a situação. O corpo de Dreymora repousou inerte na cama e apenas uma listra inofensiva de sangue escorria de sua boca. O recente amante chegou ao seu lado e tocou-lhe a mão fria, sentiu sua pulsação fraca e observou os olhos enfraquecidos se abrirem com esforço.

− Funcionou – disse Breego se aproximando e analisando sua mestra – ela está livre, finalmente. Devia ter arriscado fazer isso muito antes!

                Grizma deixou esboçar um sincero sorriso no canto da boca, em seguida olhou para o paladino e se deparou com o mesmo andando trôpego para fora do quarto.

− Preciso ver como está Sir Tercius – explicou ao tarou que assentiu com firmeza.

                Ao sair do quarto Grizma se depara com a cena sinistra. Com as mãos no pescoço, Sir Tercius engasgava e se contorcia em cima do sofá do aposento de hóspedes. Antes que Grizma pudesse fazer algo, a sala foi repentinamente tingida em jorros de sangue que escorreu deliberadamente do pescoço do paladino. Sufocando com o próprio sangue, Sir Tercius perdia a vida lenta e dolorosamente.

Grizma aproximou-se, pensava tentar analisar o ferimento e fazer algo, mas assistiu ao desdobramento das próximas ações boquiaberto. O crânio de Sir Tercius se deformava criando uma coroa sangrenta de chifres, enquanto sua pele, como se rasgada por um bisturi pela parte de dentro, tornou-se um manto de carne bolorenta. Uma mão feminina e afiada se desenterrou do estômago da vítima, enquanto a cabeça ensanguentada tomava novas feições.

− Livre, tão rápido e fácil – sussurrou a voz da criatura – escolheram a vítima muito bem.

                Grizma encarava a situação incrédulo.

− Você foi o responsável pela minha invocação? – gorgolejava a criatura humanoide de pele pálida, porém, tingida de sangue.

− O que é você? – indagou o herói tentando evitar que sua mente se desmanchasse em loucura.

− Não terei um nome para você, se não tiver um para mim.

                Grizma se permitiu uma longa pausa. Não sabia que resposta dar, não sabia como agir. Ele estava ali, com seus trajes de nobreza, sem suas armas em mãos, sem a noção do que estaria enfrentando.

− Grizma, esta criatura é um ostiarius! Um demônio de sangue – gritou Breego que agora observava a tudo da porta do quarto de Dreymora.

Demônio ostiarius

 

                Essa informação se transformou em outro questionamento que Grizma faria à Breego assim que tivesse tempo. Olhou para o tarou em busca de mais respostas e o viu segurando uma lâmina muito maior que seu corpo.

− Use isto. Vai se sentir mais seguro – falou e arremessou uma lâmina de aço curvilíneo incrementada com runas e um cabo de onde se desdobravam tiras de couro esvoaçantes. Era metal ligado à couro e fitas pretas e vermelhas – ela se chama Corta-destinos!

                As mãos de Grizma agiram quase como que por vontade própria, a espada repousou em suas mãos treinadas e rodopiou ameaçadoramente. Ela tinha o peso e tamanho adequados para o espadachim.

− Uma lâmina de ler’drit? – Grizma se embasbacou – desde quanto você tem isso?

                A exótica lâmina de metal curvilíneo é uma arma usada somente pelos espadachins de ler’drit. Ela é mais longa e letal que uma cimitarra e um estilo de luta muito antigo foi desenvolvido para usar toda a precisão e equilíbrio que esta arma pode conceder. É, não por coincidência, justamente a espada que Grizma sonhara há tempo. No passado, o espadachim possuiu uma, mas ela foi retirada de suas mãos durante uma missão complicada, desde então, os segredos e a fórmula para manufaturar a arma foram perdidos.

Grizma era outro oponente quando empunhava a lâmina de ler’drit. Se sentia como se tivesse nascido com o dom de usar aquele tipo de arma. Numa bravata, rodopiou o corpo e deixou a lâmina cortar o ar durante a passagem, em seguida deslizou a perna esquerda como o bico de um cisne saciando a sede num lago. A lâmina respondeu fiel, seu toque esquentou os dedos de Grizma.

− Não fui eu o responsável por iniciar isso, mas serei o responsável por encerrar – respondeu.

− Porque lutaria contra você mortal? Você não pode me eliminar definitivamente. Agora que sei o caminho, retornarei quantas vezes desejar.

Grizma não tinha ideia do que fazer. Há quanto tempo Breego tinha aquela espada? Até que ponto o tarou sabia que aquela cena iria acontecer? Tudo parecia manipulado demais. O espadachim pouco sabia sobre a criatura infernal que flutuava a sua frente e escorrendo como uma cachoeira sangrenta, não entendia parte do discurso dela, pois não tinha o devido conhecimento. Quem dera se algum amigo da Ordem da Arca estivesse ali.

 

Corta-destinos, lâmina de ler'drit

Como de costume nessas ocasiões, anuviou a própria mente, livrou-se dos questionamentos, concentrou-se no que realmente queria fazer naquela hora e a resposta era lutar. Era dançar junto à nova lâmina que pesava em suas mãos, sentiu que ela implorava para ser usada. Varreu sua fronte com a palma do pé direito, era o que seu mestre chamava de "dança da garça", deslizou a ponta do pé esquerdo ceifando o assoalho e num rodopio, posicionou a lâmina frente ao seu rosto, na altura de seu queixo. A lâmina de ler'drit estreita e horizontal, limitando seu ângulo de visão à direção do inimigo.

– Entendo. É um desejo mortal irracional – zombou a criatura – não deterei sua ganância, filho do nada.

Estendeu o braço em direção à Grizma. Havia crescido garras ósseas tão protuberantes em seus dedos que o sangue jorrava voluptuoso. Apenas através do mero desejo, o demônio fez o corpo de Grizma ferver. O espadachim sentiu cada célula de seu corpo aquecer. O sangue inundou seus ouvidos, do nariz escorreu um filete carmesim, a visão tornou-se turva e vermelha. Em resposta a isso, ele sabia que deveria ser rápido, então saltou.

Motivado pelo fervor da batalha, Grizma sentiu seu corpo deslizar num vento inexistente, como se erguido pela própria vontade. O corpo girou e a lâmina de ler'drit acompanhou o vendaval que soprou de seu movimento, como se o metal pudesse acompanhar o vórtice eólico a sua volta. Um corte limpo, seguido de um novo movimento antes mesmo de pisar na mesa que se interpunha entre ele e o inimigo.

O primeiro golpe acertou a garganta profundamente, um rasgo terrível e mortal foi desenhado na pele pálida e frágil do adversário, em seguida, envolvida pelo movimento enérgico, a lâmina de ler'drit descreveu outro giro rápido e indefensável. Grizma pousou como uma águia na mesa, preparou-se para a retaliação do inimigo, esperou-a por meros segundos até encarar os resultados de sua investida. Ouviu um baque no tapete da sala, sentiu o sangue quente da vítima jorrar em sua face. A cabeça do demônio de sangue estava no chão e o corpo, ainda flutuante, se desmanchava até virar pele e vísceras apodrecidas.

A luta havia terminado sem ao menos ter começado. A lâmina estava trêmula em sua mão, zunindo imperceptivelmente diante ouvidos destreinados, satisfeita com o resultado. Grizma foi preenchido por euforia. Esperou pela reação sobrenatural do indivíduo, sabia que demônios tinham seus truques, mas o cheiro bolorento invadiu suas narinas e o convenceu que a luta estava acabada.

Num plano de fundo, Breego estava impressionado e só conseguiu reagir depois de alguns segundos. Bateu as palminhas provocando um som de aprovação:

– Muito bem, Grizma. Muito melhor do que eu previra.

Aquela provocação do destino já enchera a paciência de Grizma. Ele olhou para Breego em um tom de acusação, pois havia colecionado perguntas demais para fazer ao tarou.

– Diga-me do que se trata tudo isso? – havia uma raiva acrescida em seu tom de voz.

– Acalme-se, amigo. Você completou sua missão de forma esplêndida. Não me surpreende que tenha chamado a atenção de meu senhor. Não se preocupe, vou explicar tudo.

Breego, tarou e membro dos Encarnados

 

[...]

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