Cena 3 - A mansão do condenado

Jessamine, sacerdotisa de Velaska

 

                Arya empurrou mais um nobre da frente de todos. Contra o protesto de todos ela apenas rugia e assim, Dente de Leão escoltou Mufasa para um espaço sem pessoas. Harman saiu de debaixo das pernas da felina respirando um grande “ufa!”.

O desafio começa agora, Vistani – rosnou Arya empunhando uma arma feral feita dos ossos de um dragão e farpada com dezenas de pedaços de espadas que haviam sido quebradas durante a guerra contra a mesma criatura.

− Começo a me questionar se deveria estar aqui – brincou Harman, mas já tinha tomado a decisão desde que abandonara a segurança da Ordem da Arca – onde está o cabeça de abóbora? – observou.

Depressa, Dente de leão correu usando suas quatro patinhas e escalou uma estátua que representava um nobre qualquer que havia decidido se eternizar naquela forma tosca de mármore. O tarou se pôs a procurar e avistou o companheiro a dezenas de metros.

− Está ali, acho que se perdeu no meio da multidão – comunicou, em seguida gritou pelo guerreiro, sua vozinha era um pequeno trovão estridente.

Dente de leão teve a impressão de que Chatrieri olhou na sua direção, mas, se sim, resolveu ignorar e continuou seu próprio caminho para distante de onde o restante do grupo estava.

− O que está acontecendo? CHANTRIERI! – tentou mais uma vez, então aconteceu algo esquisito e sobrenatural, o leshy com cabeça de abóbora simplesmente desvaneceu como um fantasma e desapareceu completamente da vista de qualquer um – melhor continuarmos sem o da foice. O cretino gosta de fazer as coisas sozinho.

                Arya não se importava, Harman lamentou um guarda-costas extra. Enfiaram-se juntos nas ruas que levavam ao desastre.

[...]

Minutos atrás, Chantrieri era o último da fila guiada por Arya até fora da multidão desesperada. As gavinhas e os tocos de madeira curvilíneos se desdobravam desenhando sua silhueta. Assim era um leshy e havia muitos tipos diferentes de sua espécie, ele tinha o corpo feito de galhos e raízes e a cabeça era uma abóbora com um rosto medonho desenhado. Costumava usar armaduras pesadas, mas havia perdido a sua recentemente em um episódio que preferia não lembrar, assim, desfilava com seus quase dois metros de altura, corpo curvado como o de um troll. Também costumava usar uma segadeira, sua arma predileta, pois representava seu elo com Velaska, uma das muitas divindades que representavam algum aspecto da morte neste mundo, porém, assim como sua armadura feita de placas escamosas de dragão negro, havia sido furtada, por isso, o que tinha em mãos era uma espada curta que pertencia à Grizma, uma arma muito pequena que ele usava eficientemente, porém, parecia uma agulha sob suas posses.

Sentiu o toque gélido em seu ombro e isso despertou em si uma vaga memória. Buscar memórias era uma jornada para Chantrieri e a cada dia que passava ele se sentia mais longe de seu objetivo. O toque pertencia à Jessamine, uma das bruxas que havia desafogado sua existência do poço das almas, ela era sacerdotisa de Velaska e uma guia. Riste às mãos dela flutuava um crânio humano, talvez o foco de alguma de suas magias.

− Siga-me sozinho, campeão. Nosso caminho é a solidão... – ela sussurrou enquanto perambulava para uma direção oposta à dos aliados de Chantrieri, seu corpo não possuía massa, era uma névoa que só tinha formas para o guerreiro e, por isso, era trespassada pela multidão sem qualquer efeito.

Assim ele fez. Abandonou os amigos esperando encontra-los posteriormente.

[...]

O rangido do portão de ferro se assemelhava ao murmúrio de um fantasma. Chantrieri estava na entrada dos jardins que dava acesso à mansão dos Goldstein. Jessamine havia soprado sua magia e os portões se abriram como se puxados por mãos etéreas.

O guerreiro tinha pouco vínculo com aquela mansão, sabia que ela pertencera a um pouco aventurado nobre que carregara a alcunha de lorde das sarjetas quando em vida, sabia também que Grizma, um dos amigos da Ordem da Arca, havia usurpado esse título se autonomeando filho de Lorde Goldstein. Sabia que aquela mansão esperava ser exorcizada e que muitas almas vigiavam o local. De fato, o sobrenatural permeava aquele lugar e Chantrieri sentiu o frio tenebroso assim que meteu o primeiro pé na terra úmida do local.

Era terra que muito se assemelhava a de um cemitério. Ela cobria o ladrilho que serpenteava cercado pelo jardim morto até a entrada da mansão. As árvores tortas eram povoadas por corvos assustados que levantaram voo quando notaram a presença de Chantrieri. Jessamine caminhava adiante, seus pés descalços incapazes de pisar na terra firme.

− Estamos sendo observados. Posso sentir isso – emitiu Chantrieri em meio ao silêncio.

− Eles nos vigiam, campeão, mas não tema, a deusa vela por você e ela reina sobre os fantasmas e espectros.

Não era a primeira vez que Jessamine dizia isso. Chantrieri era motivado pela sua jornada de autoconhecimento, as lacunas nas suas memórias eram desagradáveis de se conviver, se sentia nu num universo em que todos tinham suas doutrinas e escolhas motivadas pela nuvem de acontecimentos que lhe ocorriam. Ao guerreiro restava apenas uma fé cega enquanto o quebra-cabeça de sua vida passada era montado e as bruxas de Velaska eram as únicas capazes de ajuda-lo nisso.

− Não posso abrir essas portas – Jessamine falou interrompendo a linha de raciocínio de Chantrieri.

O guerreiro adiantou-se e empurrou as grandes portas num estrondo poderoso. Jessamine assistiu ao líquido viscoso que era o sangue leshy circulando pelas veias amostra do campeão, impulsionando seu esforço contra o paredão de madeira.

O cômodo à frente era um salão com duas escadarias que se encontravam no ápice delas diante uma segunda porta pesada localizada no segundo andar. Já no primeiro podia-se enxergar as decorações bizarras que muito combinavam com o aspecto sobrenatural do lugar. Eram quadros melancólicos de rostos insanos, móveis feitos de mogno muito antigo, o assoalho cheio de pó e as teias de aranha eram as nuvens no teto da mansão. O que significava tudo aquilo? Que tipo de nobre enfeitaria sua mansão daquela forma?

Do lado direito haviam barras de bronze que formavam um portão do tipo sela. Jessamine caminhou até lá revelando que aquele deveria ser o caminho:

− Os jardins dos Goldstein. É este o caminho – ela falou.

Chantrieri não costumava questionar e adiantou o passo. A madeira que formava o chão estalou e a poeira era varrida sob seus pés. De repente a sensação de estar sendo observado dobrou.

− Os quadros, Jessamine, eles parecem estar se mexendo – alertou o guerreiro.

                E, de fato, estavam. Duas figuras fantasmagóricas atravessaram a tintura como desafogadas do mar de memórias do pintor.

− São inimigos, campeão. Espíritos ensandecidos. Não adianta tentar convencê-los.

 Chantrieri sacou a espada curta de forma desajeitada:

− Que Velaska me ajude!

Jessamine sussurrou uma magia e a espada curta de Chantrieri obteve uma aura esverdeada, como uma chama esmeralda.

[...]

                Quando em vida, os fantasmas que se apresentaram deveriam ser membros da nobreza. Eles destacaram suas espadas longas espectrais e seus olhos brilharam num tom amarelo pálido. Seus mantos seriam de seda, suas mãos estavam adornadas de anéis fantasmas, seus rostos ostentavam ora tristeza, ora raiva.

Desapareceram num piscar e reapareceram tão próximos de Chantrieri. O guerreiro tentou desferir um ataque com sua espada, mas ela apenas o atravessou sem efeito. O fantasma em seu flanco preferiu usar a própria mão do que a arma espectral e a afundou no peito de Chantrieri arrancando de lá parte de sua vitae, depois levou a nuvem espiritual do invasor à boca e a sugou.

Chantrieri sentiu o frio mais terrível de sua vida. Girou a espada e tentou acertar aquele sorvedouro, mas o ataque se perdeu no manto fantasmagórico. Às suas costas, o segundo fantasma fincou-lhe os dedos no âmago e passou a devorar a essência do guerreiro.

Chantrieri espetou a lâmina novamente, mas ela parecia sem efeito. O guerreiro tinha muita vitalidade a gastar, mas os espíritos famintos devoravam com velocidade, sendo tão efetivos em devorar a essência que o frio em Chantrieri ficou ainda mais intenso. Era como estar sendo atingido por mil agulhas que se enterravam vagarosamente em sua pele e perfuravam seu espírito ao invés da carne.

Ele tentou golpear um dos fantasmas mais uma vez, mas este se afastou esquivando e mantendo distância. Uma linha de energia espiralada e esbranquiçada saía do corpo de Chantrieri e sorvia na boca do fantasma. O outro fantasma fez o mesmo. O guerreiro ganiu, caiu de joelhos no chão e quase podia enxergar sua alma saindo do corpo. Tentou olhar para Jessamine, mas não notou mais sua presença.

A espada curta caiu de seu punho.

Chantrieri estava sozinho e, logo, morto.

[...]

 

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