[Prelúdio] Sophia Nayashe



Antes que as minhas lágrimas vertam e se misturem ao sal do mar, percebo que a luz do sol fica ligeiramente trêmula aqui, no sepulcro que é este oceano. Em poucos minutos qualquer fonte de iluminação desiste de se estender para além dessa obscuridade e o que sobra é a sensação de esquecimento.

“Você apenas morre de verdade quando sua história é contada à sua memória nos segundos antes de padecer”, meu pai estava certo. O senhor Moan, humilde pescador, julgo eu, digno de uma sabedoria que nunca alcançou sua prole. Ele tinha tanto medo do mar quanto da fome que passaria se não o enfrentasse, por isso, sobreviveu da mesma forma que um guerreiro sobrevive aos seus desafios. Com bravura.

Minha mãe era alguém de poucas palavras e todos a chamavam de tímida por causa disso, mas a verdade é que ela adorava o silêncio de tudo sendo dissipado pelo barulho das ondas do mar. Não queria, mas quando a necessidade apertou, carregou as cestas de peixes pescados pelo marido, foi ao mercado e aprendeu a atrair a clientela, aos poucos, com a pressa dos pacientes que sabem que tudo vai dar certo no final.

 E mesmo cercados de incertezas e inseguranças, beijaram-se felizes na noite de lua distante na qual descobriram que eu crescia no ventre de minha mãe. Ali dentro, eu, a filha dos Nayashe, um dos noventa e nove templários da fênix, paladina de Phoebe, estava cercada pelo líquido amniótico, mergulhada no oceano que era o âmago de minha mãe. Ali eu ainda não sentia nada, não sabia da dor, nem da lamentação do fracasso, o pior dos sentimentos para uma serva fervorosa.

Agora me vejo sem o calor de Phoebe, esperando que o mar frio me leve hoje, após o extremo fracasso que resultou não somente na perda da dádiva de Phoebe, mas também na morte de uma companheira, de uma amiga e, ouso dizer, daquela que passei a considerar uma irmã: Ofélia, vítima daquela que era tão somente minha missão, resgatar os restos mortais de Aramyn. Agora, se existe uma jornada, ela se estendeu e aguarda por mim, em cima da terra seca, além deste oceano...

...mas esta não é a primeira provação que eu, Sophia Nayashe passei na minha vida.

                Sou a última das cinco filhas de Moan e Mahina. Dediquei a minha infância a admirar os paladinos e clérigos que rondavam a península de Sazancross. Admirava os ver, símbolos de coragem, bem e força, com suas sabedorias guiadas pela deusa fênix, auxiliando o povo de minha terra natal dos problemas mais cotidianos até as cruzadas além-mar, carregando o nome de Mara Aruat para as terras distantes. Ao contrário de minhas irmãs, nunca tive muito boa vontade para ler e decorar livros inteiros, encantava-me muito mais saber manusear o escudo grande, gastar minhas repletas horas polindo armaduras de batalha servindo-me de escudeira e, claro, havia aquela atração quase divina pelos lustrosos martelos dourados dos Campeões de Phoebe.

                Quando completei quatorze anos, sob os protestos pouco insistentes de meus pais, alistei-me na escola de combate, arriscando o futuro que me ligava à rede de pesca e ao barco. Falei-lhes da ambição de me tornar uma guerreira da deusa fênix, de ostentar seu brasão em meu peito e, embora a notícia os orgulhasse, houve relutância.

Até que certa noite, outra noite de lua distante, minha mãe, que até então já havia tido algumas visitas da própria Mara Aruat em sonhos - dádiva que poucas mães da península ousavam afirmar que tinham e quando decidiam compartilhar, por vezes eram chamadas de mentirosas – a própria fênix mergulhou em sua alma e sua voz feminina acalentou sua decisão. Meu pai, homem de muita fé, ouviu minha mãe contar-lhe sobre o sonho na manhã seguinte, uma manhã onde o mar rebentou as rochas ao redor do farol.

Havia sido revelado que Mahina Nayashe iria ceder à deusa fênix uma das coisas que mais amava em prol à bênção que lhes havia arremetido. Eu seria esse sacrifício e meus pais carregariam o grande prestígio de serem a família de uma paladina de Phoebe, ao mesmo tempo que encarariam a certeza de que havia a possibilidade de viverem mais do que a própria filha. Que fosse feita a vontade de Mara Aruat. No sétimo dia após o sonho, meus pais tatuaram a bênção de Mara em seus tal rajah e, assim como eles, minha pele foi marcada para sempre com nossas escolhas.

                Ao adentrar o colégio de batalha me deparei com situações as quais suspeito que a maioria dos heróis das terras distantes não teria a audácia de encarar. Desafiei não somente à adversários, mas principalmente a mim mesma. Fomos treinados a resistir minutos e mais minutos submersos no mar que acercava Sazancross, nos ensinaram a reconhecer a fisionomia de todos os criminosos e a conseguir impor nossa vontade frente às criaturas perversas, fazendo-as tremer a cada mera palavra ressoada de nossa boca. Venci minhas limitações. No maior e último destes desafios, ajoelhamos ao redor da boca de um dos vulcões gêmeos, o Kilauea, formando um anel com paladinos de mãos dadas, aguardando o sopro de Mara Aruat abençoar nossas faces e afirmar que estávamos preparados, negligenciando a necessidade da fome e da sede. Alguns sentiram a dádiva no segundo dia, outros no terceiro ou no quarto, uma parte desistiu e ergueu-se para não mais voltar, então, fui deixada sozinha, muitos dias, contemplando o escaldante mar de lava.

                Recebi minhas dádivas através do sacrifício e, até que finalmente o sopro de Phoebe me alcançasse, não senti a beleza do momento. O acontecimento foi algo melancólico e fatídico, o dia que minha mãe já me disse ter sido o pior de sua vida. Estava exausta, faminta e sedenta, bebendo da própria saliva que se esvaiu nas primeiras horas, cercada pelo nada, dia e noite. Passaram-se incontáveis dias de delírio até que, sem forças e num movimento involuntário meu corpo cedeu e eu mergulhei no Kilauea, rumo ao abraço ardente.

Era a noite de um dia em que as gaivotas partiram cedo da praia e meu pai pôde trabalhar em paz, noite que minha mãe sentiu a dor lancinante em seu peito provocada pelo sofrimento de seu sonho. Ela sentiu meu corpo arder, sabia que algo definitivo havia acontecido comigo. Meus pais desafiaram aquela noite e caminharam até os portões do Kilauea sem a certeza de que seriam atendidos, minha mãe caiu aos prantos enquanto implorava para me ver. Os soldados, acometidos pelo sofrimento de uma mãe, subiram ao topo do vulcão gêmeo e encontraram apenas os restos de minhas vestes, deixadas para trás, rasgadas quando, sem forças, havia, em vão, tentado me segurar às bordas do Kilauea.

Senhora Mahina, eu sinto muito. Ela não aguentou, foi uma falha nossa, deveria haver alguém aqui com ela para que isso não acontecesse – afirmou Kaleo, um dos generais.

Esse não é o fim dela! Não pode ser o fim dela! Mara Aruat, tu que és mãe, como eu, não permita que isso me aconteça. Não tire de mim o bem mais precioso! Não a leve agora! – e esta foi a prece mais fervorosa que a senhora Mahina já teve.

Ao término da prece, acometida pelo sussurro que soprou na sua alma, minha mãe lembrou-se do sacrifício imposto pela fênix e, ainda em prantos, sem inteiramente aceitar, ela se levantou enxugando as lágrimas e trazendo apenas os trapos que haviam lhe restado de sua filha, aninhou-se ao peito de meu pai e ambos aceitaram aquilo como uma redenção.

 A notícia pegou toda a península de surpresa. Apesar de minha postura rígida, sempre fui muito querida pelo meu povo. Eles falavam de meu bom coração, da minha paciência com os necessitados e da temerária coragem que podiam enxergar em mim desde criança. Eu os amava e eles me amavam. Houve luto nos dias subsequentes.

Nos dias que se antecederam ao acontecido, minha mãe voltou a ter sonhos. Eu a visitava e dizia que tudo daria certo, que eu estava bem e que não senti dor ao tocar a lava do Kilauea. Certa vez, no dia em que, juntas, quatro embarcações que haviam se perdido no mar encontraram o caminho de casa mais uma vez, minha mãe me viu em sonhos. A princípio não reconhecera a presença, não sabia se era humana ou não, se era desse plano ou de outro, mas foi acalentada por uma existência que emanava bondade e esperança. Um halo de pura energia incidia em meu rosto, como um raio de sol e os olhos de minha mãe finalmente conseguiram desenhar minha silhueta.

Minha filha está viva! – ela contou ao senhor Moan, que recebera a notícia com a felicidade de um crente. Ele disse:

Então, ela espera por nós!

                Foi num dia abençoado por nuvens limpas e esbranquiçadas, que apenas reforçavam a plenitude do sol, que ambos tomaram o caminho até os portões do Kilauea mais uma vez. Lá eles foram escoltados pelos clérigos de Phoebe até a boca do vulcão gêmeo e todos presenciaram, acometidos pela necessidade respeitosa de se porem de joelhos, a cena mais digna de um seguidor da fênix. Protegida pela chama de Mara Aruat, sem qualquer vestígio do que eu fui um dia, despi-me da antiga humanidade e pisei em terra novamente, saindo de dentro da lava para um novo e antigo mundo.

Essa não é mais minha filha, Mara, grande mãe, protetora das crianças, eu aceito, te entrego o ser que um dia habitou meu ventre para a tua glória. Que ela seja capaz de levar seu nome aos quatro cantos do mundo com vigor e coragem. Que ela possa ser digna de ser sua benção para o mundo. Nós estaremos aqui, fazendo o que podemos fazer, vivendo, dia após dia, orando pela jornada de nossa filha.

Ao abrir meus olhos, retorno à consciência e reconheço tudo. Ainda existe em mim o que eu fui no passado, somado à experiência que somente os arcontes de Phoebe puderam me prover.

Minha mãe, levante-se, pois, trago boas novas. Phoebe aceitou seu sacrifício, não há nada mais precioso para uma mãe do que seus filhos. Eu, ser que foi abençoado pela senhora com a vida, sou hoje tocada por Mara Aruat, a fênix. Não sou a mesma de antes, porém, sua filha sempre existirá em mim.

Dessa maneira nasceu a Sophia que sou hoje, diante tantos títulos, o que mais me orgulha é, também, ser filha de Mahina e Moan.

Agora deparo-me com a certeza de que meu fim não é este. Eu não posso morrer sem que antes conserte tudo que deixei pra trás. Por Phoebe, pela minha família e meu lar, pelos meus amigos, pelos meus irmãos de fé, pelos títulos que me cederam, pela confiança que depositaram em mim... eu seria completamente egoísta se deixasse tudo isso para trás. Venha, chama da fênix, considere-me agora, mais uma vez, ressuscitada.


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