Em cárcere da bruxa




                Ofélia pôde ver algo que faiscava fracamente no final do túnel mesmo diante a escuridão e caminhando a passos trôpegos numa fuga que resultaria num óbvio fracasso. O desdém de Mama Komodo ainda ecoava, ora parecendo distante, ora muito próximo, quase adjacente. Ofélia arquejou e vomitou a ácida bile, sentiu ela derreter seus lábios secos enquanto o mundo girava em rodopios lentos. A sensação era horrível e parecia não ter fim.

O túnel culminou numa câmara subterrânea úmida vestida de fungos cinzentos e amarronzados. Uma única fonte de iluminação irradiava do local e tornava visíveis as caixas torácicas de criaturas grandes e grotescas que pareciam se desenterrar da lama e criar uma série de prisões. Havia pessoas dentro dessas jaulas de ossos, mas os olhos de Ofélia não mais estavam adaptados ao escuro desde que renunciara ao uso de seus antepassados.

 Os passos desajeitados e a situação deplorável em que a monge se encontrava facilitaram sua captura. Uma hora ela parecia estar livre para vasculhar a câmara subterrânea, noutra, as carcaças de animais a cercavam e impediam sua passagem. Derrotada pela inevitável força persuasiva de Mama Komodo, Ofélia caiu no chão de joelhos, ofegante de tão exausta. Sua mente ardia e seus olhos começaram a pesar.

Ela averiguou os ossos que compunham a carcaça que agora era sua jaula, havia símbolos inscritos nestes, palavras num idioma necromântico pouco familiar para a monge. O alfabeto arranhado na espinha e costelas do que um dia havia sido uma criatura selvagem da Floresta Cinzenta criava espirais e prendia uma magia poderosa que emanava o frio toque da morte.

­­ O Conhecimento Negro de Moil – sussurrou involuntariamente.

                O mero toque numa das letras de Moil causava arrepio e aflição, com certeza aquilo proporcionaria um fim imediato para aquele que ousasse fugir da prisão de Mama Komodo. Impossibilidade de mover-se, Ofélia focou nos elementos do restante da sala, semicerrando os olhos na tentativa de enxergar o pouco que a câmara subterrânea permitia.

Descobriu quem, assim como ela, estava preso nas mesmas condições. A brincadeira de caça e eliminação da bruxa resultou no aprisionamento de todos os aliados. Ali estavam Sofia e a mulher sem rosto que horas antes havia se identificado como Alexia, a portadora da lâmina das bruxas. Faltava apenas um de seus companheiros, então, Ofélia atentou-se ao cheiro apodrecido que impregnava o local e dificultava seu fôlego... Diante de si, além de sua jaula, jazia num altar feito de crânios Tathagata, amarrado à tiras de couro e cipó que o prendiam firmemente. O elfo marinho estava inconsciente e um jorro de sangue viscoso derramava-se de seu corpo, pingando como mel na lama.

Ao ver aquilo, o enjoo de Ofélia piorou e um jorro nauseante foi cuspido para fora de sua jaula. Tathagata estava sem o braço esquerdo, em seu lugar apenas o osso do ombro saltava ensanguentado do ferimento. O rastro de seu sangue escorria para o lado mais escuro da câmara subterrânea onde Ofélia achou ter visto um grupo de pequenas monstruosas crianças devorando a carne escamosa do amigo e roendo seus ossos. A mão já havia sido chupada e seu sangue agora lambuzava as bocas finas de dentes afiados das crias de Mama Komodo, restava os ossos dos dedos, quase completos, despidos de carne e pele.

O terror mergulhou na mente de Ofélia ao ver Tathagata febril e sua consciência esvaiu-se. Dormiu e deu boas-vindas à febre das bruxas.

***
                Atônita, a mulher sem face abriu os olhos e tomou um fôlego prejudicado pela exaustão. Encontrou-se em um ambiente familiar. Jaula de ossos, o alfabeto necromântico espiralando a ossada e a dor lancinante no corpo e na mente... aquela situação era extremamente familiar.

Com dificuldades, ergueu-se do chão, mas apenas para manter-se sentada. Seus olhos esguios orbitavam pela escuridão procurando qualquer coisa que trouxesse o mínimo de segurança para sua existência. Estava numa masmorra, no lar de uma das bruxas, deduziu ser da própria Mama Komodo.

Os olhos, em lenta cadência, enxergaram primeiro as brasas que aspergiam no inferior de um caldeirão borbulhante, um componente material das bruxas. No chão, paredes e teto, mostraram-se engalfinhadas nas raízes da floresta acima daquela cova, as teias de aranhas minúsculas e furtivas. Os fungos brotavam entre raízes e teias, cinzentos ou amarronzados, deformados e pútridos. A mulher sem face quase podia sentir o azedume vindo destes.

Reconheceu Tathagata em cima do altar de crânios. Ela sabia o que ia acontecer com o recente aliado: seria fatiado, pedaço à pedaço, e servido para as crias de Mama Komodo, então, quando seu corpo estiver despido de carne e pele, seus ossos serviriam de matéria prima para um ensopado gosmento que eliminaria qualquer sumo e resquício do que um dia foi o elfo do mar. O braço esquerdo era apenas o início. Seguiu o rastro do membro arrancado até as famintas crianças da bruxa, comendo e regurgitando, na escuridão da gruta, o que um dia foi a mão de Tathagata.

Noutras duas jaulas estavam as próximas vítimas (contando com ela própria), reconheceu as inconscientes Ofélia e Sofia, desmotivadas pela exaustão. A mulher sem rosto não estava em situação melhor, seu corpo todo doía e a mente parecia continuamente rasgada pela permanência naquele local. Voltou sua atenção aos ossos que compunham a carcaça que lhe servia de prisão e ao idioma necromântico que os tingia. Aquilo também era muito familiar...

Altas engrenagens girando na minha cabeça – pegou-se sussurrando memórias que podiam ser suas ou de qualquer outra pessoa – Eu sei lidar com essa armadilha. Sei que sou especializada nisso... Sou uma mestra em armadilhas.

                Mas de nada adiantava essa especialização se a mulher sem rosto não tinha os instrumentos certos. Deu uma rápida vasculhada nos arredores e não encontrou seus instrumentos de ladino. Talvez pudesse improvisar alguns, precisava de dois elementos que pudessem simular uma gazua, vasculhou em seus bolsos e se havia algo ao seu alcance.

Nada.

***

                Sofia arregalou os olhos quando despertou daquele sono indesejado.

Eu não deveria ter dormido – reclamou e ergueu-se desafiando o próprio cansaço. Imediatamente sentiu o mundo girar e ser coberto por uma mortalha de escuridão, depois notou o que os outros anteriormente haviam notado: estava presa, cercada pela magia negra de Mama Komodo e seu amigo, Tathagata, repousava sem um braço no altar necromântico.

                Sofia sentia muita dor no braço. Ela o examinou e notou que estava fraturado. Lembrou-se da sua luta contra o Pálido e sua memória resgatou o momento da pancada que varreu e destruiu seu escudo. Seus ataques haviam sido fulminantes, mas aquele Asurak foi criado para resistir.

A dor líquida, paladinos, bruxas cinzentas, necromancia, behemoths... – listava as informações que conhecia da Floresta Cinzenta. Sabia que a profana poção feita do sofrimento de seus irmãos da fé era utilizada para fortalecer aquele tipo de coisa que era o Pálido... receava ao mesmo tempo que ansiava o momento em que poderia enfrentar algo transformado pela dor líquida por completo. Vingança divina...

... mas ali, parecia que nada poderia ser feito a não ser aceitar a derrota e morrer de forma heroica. Ela esperava pela chance de lutar e morrer na vã tentativa de salvar seus aliados. Segurou firme as vértebras da carcaça que lhe aprisionava e impôs sua força. Como era de se esperar, os ossos apenas estalaram e cederam minimamente até que o toque frio da magia negra transbordou da jaula e necrosou seus dedos. Decidiu que era melhor parar antes que perdesse a única arma que lhe restava: seus punhos.

Vasculhou o pouco que podia vasculhar dentro de sua cela. Pertences não tinha mais, sentiu falta de sua arma, a única coisa que estava ao seu alcance era um punhado de fungos acinzentados que brotavam feito verrugas da parede da masmorra. Eles estavam tingidos de um bolor preto e fétido que lhe causou aversão. Nada que aparentemente pudesse ajudar.
Sabia que não foi feita para pensar sozinha e decidira esperar o momento certo para levantar os questionamentos de seus aliados presos nas demais jaulas.

***

Tathagata gania de dor mesmo enquanto dormia. A febre era mais alta nele do que nos demais, afinal, era o único que, até então, se tornara o alvo da carnificina de Mama Komodo. Acordou-se e pingando de suor frio vislumbrou o terror de não ter seu braço colado ao corpo. Firmou seu braço restante e passou os próximos minutos numa vã tentativa de arrancar-se das tiras de couro e raízes que lhe prendiam no altar incômodo feito de crânios. Suas tentativas apenas resultaram em rasgões na pele e perda de algumas de suas escamas.

Virou o rosto de um lado para o outro tentando notar algo e, apesar de seu ângulo de visão estar mais prejudicado que o de seus amigos (devido à posição), Tathataga reconheceu Ofélia, Sofia e a mulher sem rosto trancafiados em jaulas de ossos... pelo menos não estava sozinho.

Seus ouvidos notaram o insistente roer de ossos que era emitido de algum lugar da câmara subterrânea, ele não sabia o que era, nem podia ver, mas o mastigar não parecia ser o de um mero rato.

Tathagata testou seu colchão de crânios e notou que era firme, acimentado ou endurecido. Escutou o borbulhar de água em algo que ele supôs ser um caldeirão próximo e mais que os demais enxergou o teto: raízes se desentrelaçam da lama que pingava fazendo chover finas gotas inofensivas em seu corpo. Afinal de contas, estavam ainda embaixo de um pântano e o teto era sustentado por uma malha de raízes fortes.

O silêncio fazia tudo propagar mais alto e cada mero acontecimento parecia gritar em seu ouvido. Perdeu-se no isolamento e apenas acordou quando ouviu seus amigos chamando pelo seu nome:

Tathagata... você está vivo?

[Continua em narração...]

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