Nos mais belos dias, os olhos vertem amor

Aurora, a dama na torre e mulher de Adhraim

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O céu escuro, as gotas pesadas da tempestade, os ventos furiosos, os raios e trovões profanos, o chão lamacento, as pilhas de cadáveres e a névoa nefanda, agora fazem parte do passado. “Cadic sobreviveu à Mortalha”, apresentavam os jornais de Brastav, a capital do reino. O Rei Albion finalmente dormiu em paz. Contavam as rasteiras línguas do castelo de Azran que vossa majestade havia tido pesadelos sobre os perigos da Mortalha antes mesmo que ela avançasse sobre Cadic. O rei quis fazer alguma coisa, mas Lady Magdalen, sua sábia senhora, enunciava, “Sente-se em seu trono, marido, pois aos nossos filhos pertence Cadic e é neles que você precisa confiar”, e ele obedecia. Outra vez foi semanas antes, quando o rei recebera uma notificação de que seu filho iria marchar contra a muralha e enfrentaria Akuma, o demônio milenar e líder da Trindade Macabra… Jogou a notícia sobre a mesa e ralhou, não como um rei, mas como o pai que pretendia ser, iria impedir o filho de praticar tamanha tolice, mas sua mulher novamente interveio, “Sente-se em seu trono marido, pois seu filho uma dia será rei e sabedoria não é herdada, é experimentada”, e o rei obedecia. “Como você consegue ter tanta fé?”, perguntava o rei à rainha, sua cabeça sem coroa repousada sobre o colo da mulher que lhe acariciava o cabelo, “É meu dever”, ela respondia.


Depois de tudo, Lady Ofélia, junto à távola de Cadic, obteve sucesso, eliminou a ameaça da Mortalha, tornou-se lenda, e o mesmo aconteceu com o irmão, o príncipe Alberich, quando trouxe para a cidade das macieiras a cabeça do demônio de seis chifres decepada. O Rei Albion tinha demasiado orgulho da mulher, se sentia pequeno demais perto dela, sentia desejo, tomava-lhe pela cintura, deitava-a na cama e lá ela se mostrava igualmente sábia e fervorosa. Ele encantava-se cada vez mais.


“O príncipe mudará tudo!”, o povo repetia, às vezes aos berros, “É preciso mudança, não podemos deixar do jeito que está. Alguém precisa fazer alguma coisa contra a Mortalha, já!”, os aldeões conversavam nas tavernas dividindo sua cerveja, depois, benevolentes, caridosos e astuciosos, jogavam o resto de pão para os mendigos e cachorros,. Na zona nobre o diálogo era parecido, “Se a Mortalha nos enfrenta com uma horda de dez mortos-vivos, devemos ter vinte espadas para contra-atacar!”, e assim escreviam documentos, pagavam ao mais novo dos bardos e estes contavam a história, em forma de música, de como o príncipe santo havia derrotado sozinho o mais terrível dos demônios, “Seu peito foi atravessado pelo mais longo dos chifres do diabo, mas o príncipe não cedeu, contra-atacou motivado pelo que é certo e venceu a besta”, nos templos de Splendor, os clérigos da cruz-espada entoavam em seus sermões, “Haverão mortes, sim. Haverá uma hecatombe! Muitos inocentes vão morrer… mas tudo isso é a obra de Splendor, é a história sagrada que precisa ser vivida, é o martírio da cruz-espada”, e aos poucos, o sentimento de poder, de patriotismo, que é tão recorrente na história de Azran, aflorou-se no peito de todos… gradativamente.


“São vinte e cinco anos sentado no trono sem fazer nada”, sussurrava Stibal Montgomery nas reuniões em sua mansão, ele havia conseguido uma dezena de simpatizantes no último mês sob o mesmo discurso, “ou menos ainda do que nada”, erguia-se da poltrona com a taça de vinho na mão, já havia bebido a terceira, “não nos esqueçamos do caso dos Lavender”, falar sobre isso sempre atiçava o sentimento de ódio e indignação entre os nobres, “quanto perdemos para aquela nobreza falsa!? Devo lembrar à vocês?”, a corrupção era algo comum entre os nobres, o poder político também, “...os Lavender receberam o que mereciam? Não! Ao invés disso, Lorde Albion os defendeu, os aquietou, jogou a poeira para debaixo do tapete…”, ele continuava em tom cada vez mais fanático e os demais nobres adoravam, “um rei que defende o sangue ruim? Um rei despreocupado com a segurança de seu povo? Quanto tempo aquela velha muralha poderá aguentar mais?”. Os nobres eram barulho enquanto cercados por quatro paredes e silêncio quando andavam nas ruas, juntos aos seus guarda-costas. Estes últimos ganhavam muito bem, obrigado, arriscavam-se pouco, à bem verdade, mas viviam em paz, concedendo o bom ganho à família, seus filhos podiam conhecer as fontes de águas termais de Rivergate… algum dia.


“Dá ouvidos demais à mulher”, certa vez o senhor Andrei Kirkmund pôs este assunto em pauta, “Sou só um velho resmungão e, podem bem dizerem que não tenho razão, mas a última vez que um rei ouviu demais sua rainha acabou morrendo”, referia-se à Lady Leonheart, a rainha louca, que havia perdido todos os nove filhos e aplacado a fama de maldição aos governantes de Azran. À estes comentários somavam-se outros, “É um bastardo, ninguém sabe, na verdade, quem é o pai do rei… bem poderia ser qualquer demônio do abismo!” ou então afirmavam, “Abandonou a filha nas terras geladas sob o treinamento de espíritos necromânticos… eles mexeram com a cabeça dela, já me disseram. Ela não vive como uma princesa! Quando não está socando goblins, está mexendo um ensopado de legumes na cozinha”, certamente esta era uma das maiores injúrias à nobreza que as ladies de pomposos vestidos reconheciam no mundo e compartilhavam entre elas enquanto andavam nos jardins do palácio.


“Não me surpreende nada a política de Azran”, dizia o próprio Rei Aisenn, governante de Citadel, “a mim parece que o único ajuizado da família é o filho… certamente um abençoado por Splendor”. O rei de Citadel é bastante conhecido por suas declarações, por vezes diretas e amargas, mas seu carisma as tornam citações astuciosas. O Rei Aisenn é um herói da Quarta Era, ninguém poderia negar, afinal, foi ele quem coordenou todos os planos para que a Dragocracia finalmente encontrasse um fim, “O povo humano de volta ao berço!”, gritavam seus seguidores quando o rei de Citadel os carregava de volta à terra natal de seus ancestrais.


***


Em Cadic os conflitos políticos precisavam esperar, pois um coro das fadas, liderado por um grilo falante à tocar seu violino, cantava uma sonata matrimonial e todos os habitantes da cidade das macieiras, dos arredores e de mais além, abriam-se em sorrisos satisfeitos e encantados quando Aurora desfilou sua beleza incomparável pelo tapete verde e dourado estendido no interior do Templo de Valerie. Lá estavam Ofélia, vestida em trajes considerados excêntricos para ela, mas magnífico para os demais visitantes (embora todos já houvessem se acostumado à garota de pés descalços), Samira, trajando a armadura de Splendor e a espada voltada para o chão, pois era uma cerimônia religiosa e os seus dogmas paladínicos exigiam tal modelo, acompanhada de seu pai. Havia também Ithias com sua longa barba branca enfeitada de anéis, Orchestra, Ivelka, Atticus e Wolfgang, Lufahic, Doplin e Dublin (os gêmeos gnomos), o joalheiro Azik, responsável pela linda tiara cravejada de joias raras que a noiva usava, toda a família de Castelo Cinzento (com Thierry, o filho bardo participando das melodias cerimoniais junto às fadas), paladinos do templo de Splendor, soldados da milícia de Cadic, Onyx, Tessah e Finn, os convertidos amigos que primeiro ouviram os sermões do noivo, Melanias e uma pequena parte da Inquisição Élfica, Samuel Ascallon, o general do distrito de Forte Decker com os olhos rasos d’água e muitos, muitos mais amigos que vieram do mundo dentro e fora dos Bosques Rubros, verdadeiro lar da noiva. Até mesmo a excêntrica Sebille, vestida nos usuais trajes pretos, e Hildegrimm, agora mumificado, lá estavam. Os convidados abarrotavam o Templo de Valerie, enfeitado pela natureza das flores multicoloridas e espelhos refletindo as fontes de água formadoras de arco-íris. O dia tinha poucas nuvens, como Aurora desejara (e fizera acontecer), havia a luz necessária para fazer brilhar o ambiente e transbordar amor.


Adhraim podia não ser o rei de nada, mas portava-se como tal, permitia que as lágrimas de felicidade rolassem por suas bochechas nervosas. Era o dia mais importante da vida dele e estava trajando a mais magnífica roupa de mithrill, presente do próprio príncipe Alberich, que compareceu brilhante à cerimônia, junto à sua mulher, Annalise, em seu vestido de excentricidade magnífica, perdendo em beleza apenas para a própria noiva, pois a esta, inevitavelmente, estavam voltados todos os olhos. Adhraim esperava acima de todos, ao lado de seu tio Runo que proferiria as palavras anciãs do Pendragon, o livro de pedra (costumes do povo anão), “Não chore moleque, você está prestes à se casar, então economize algumas lágrimas pois ainda rolarão muitas”, ele falava em tom de zombaria, orgulhosíssimo de seu sobrinho, “Seu pai e seu irmão adorariam estar aqui”...


Então, como um raio homônimo ao seu nome, Aurora apareceu. Seus cabelos estavam encantadoramente longos, cascatas loiras que se derramavam sobre os adornos do vestido branco e da tiara prateada, três metros de lisos cabelos dourados, sem nenhuma falha, apenas um mar de apreciação emanando o cheiro de mil rosas. Um buquê de flores brancas do campo, lírios-de-fada, estava em suas mãos e ela, vagarosamente, como pedia a ocasião, percorria o curto caminho até os braços do anão, compartilhando o mais limpo e verdadeiro sorriso, primeiro com os convidados, depois, o mais sincero, para Adhraim. Deram-se as mãos, riram, contentes com seus destinos e Runo repetia, em anânico, as palavras escritas no livro de pedra.


Trocaram artefatos, mas não eram alianças (que pelos costumes humanos, mais tarde passariam a usar), mas sim coroas. À Aurora, Adhraim coroou com mais um adorno para a tiara da antiga dama na torre. À Adhraim, Aurora deu um beijo na testa e mostrou-lhe a joia que havia se formado dos estilhaços do espelho das memórias, sobras da vitória do romance dos dois. Cantou com voz invejável, doce e melodiosa, e aquela canção era mais do que graça aos ouvidos de todos, era magia. Repousou a delicada mão sobre a fronte de seu homem e, após um brilho que emanou ofuscando a todos, o espelho das memórias agora estava incrustado na testa de Adhraim, “Para sempre, como prova de nosso amor”.


Beijaram-se e prepararam-se para o que der e viesse da vida.


Quatro anos, então, passaram-se muito rápido...

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