Indícios da última reunião

Thallion, elfo rebelde


A poeira vermelha caía sobre o rosto de Thallion. Ele estava de joelhos na grama alta, agarrando a relva com a selvageria de uma fera, seu rosto era um misto de raiva e tristeza, como o de um filho indignado pela repentina morte de um pai. Foi no lugar em que agora estava de joelhos onde ele vira o pequeno Hoaqin virar sopro de pó áureo. Esta era a forma que os seres feeŕicos morriam. Eles desapareciam. Primeiramente desvanecia o corpo físico e, como Thallion já havia ouvido falar, aos poucos e gradativamente as lembranças iam igualmente desaparecendo. Ele, porém, achava difícil esquecer Hoaqin algum dia.

“Thallion!”, ouviu alguém gritar, “Olhe para o céu!”, era Wolfgang, o experiente guerreiro anão junto à Ivelka, sua irmã, “É o bruxo! Ele apareceu!”, brandia seu machado com a face de dragão, ofício renomado do povo anânico. Thallion segurou firme seu arco de teixo e, aproveitando-se de sua leveza élfica, logo estava escalando as paletas do gigantesco moinho (o último lar de Hoaqin). Pisava com fina delicadeza, como se seus pés estivessem acompanhando a ventania, equilibrando-se com destreza ímpar. Retesou a corda de seu arco e disparou uma de suas flechas flamejantes no mecanismo que impedia o moinho de girar. Foi uma só flecha e as engrenagens se libertaram, os ventos da tempestade fizeram seu trabalho, o mecanismo rangeu quando as paletas começaram a se movimentar em sentido horário, como imensos braços estendidos tentando alcançar o céu. Thallion correu pelas extremidades da construção e deu um salto tão longo que parecia impossível para um humano ou elfo. Sua silhueta brilhou no céu escuro quando um dos relâmpagos verdes partiu o céu e seus pés alcançaram a outra margem do violento rio das lágrimas.

“O que aquele elfo estúpido pensa que está fazendo?”, berrou Wolgang, “o mesmo que faremos, irmão!”, respondeu Ivelka, agarrando-se firmemente à picareta pesada que era a sua arma e com seus passos eternamente mancos correu em direção à ponte de pedra arqueada que a levaria ao mesmo caminho que Thallion resolvera tomar, “Irmã, o que está fazendo? Nós, anões, já participamos o suficiente!”, Wolfgang reclamava, mas não podia deixar Ivelka sozinha, não agora que finalmente havia a encontrado, faria de tudo para mantê-la viva, a anã, por sua vez, gritava “Pela Fornalha de Prata! Por Cadic!” e investia rumo ao perigo.

***
O trôpego corpo zumbificado de Hildegrimm jamais se cansava, agora brandia a espada larga e partia o corpo do último festrog do caminho. Os mortos-vivos ganiam como lobos feridos e uma explosão de vísceras espalhava-se pelo ar. Sebille parecia à vontade naquele mundo absurdo de trevas, recitava um cântico necromântico para cada morte que seu amado zumbi causava e o espectro da magia que um dia existiu nas criações da Mortalha era absorvida e ceifada, como bem mandava os dogmas de Veronicca, sua deusa. A tinta cadavérica em seu rosto parecia ganhar novos contornos e sua pele descoberta, vista nos rasgos de seu vestido preto, parecia ficar cada vez mais pálida e desumana, “Omni grateous mortificus!”, ela pronunciava e cobria de energia profana o corpo de Hildegrimm, “Dominus via crucis!”, ela exigia e uma dezena de esqueletos coroados empunhando espadas largas estava agora sob seu controle.

Seibille, clériga de Veronicca


Então o bruxo apareceu no céu arrasado de nuvens negras e relâmpagos verdejantes, “Já era tempo, querido”, ela sibilava, como uma serpente pronta a dar o bote, um sorriso desenhado em seu rosto frio. “Ordo vivis mortis!”, Hildegrim e os esqueletos se reuniram ao redor de Sebille, cada um deles com uma espada larga cintilando a magia da morte.


***
Nas profundezas cavernosas do Hospitalário, seis clérigos de Velaska se ajoelhavam perante a estátua da deusa que é metade viva e metade morta. Suas vestimentas eram casacos escuros de golas altas, chapéus negros de abas largas, luvas cinzentas molhadas num unguento aquoso, esverdeado quando reunido no recipiente aos pés da estátua, transparente quando espalhado nas luvas. Eles, então, mantiveram as mãos erguidas por alguns segundos enquanto entoavam uma prece silenciosa, como se esperassem o processo de desinfestação que precede uma longa cirurgia, “Do éter nascemos e ao éter retornamos, nossa rainha”, eles falaram em uníssono, depois se ergueram e cada um vestiu o último elemento da cerimônia: a máscara de corvo.

Reunião de Clérigos de Velaska (Médicos da Praga)

Os seis clérigos de Velaska, agora com aparências indissociáveis, abriram os pesados portões do Hospitalário e marcharam em direção à devastada zona urbana de Cadic. Seus pés cobertos pelo casaco e pela névoa, de forma que mais pareciam fantasmas perambulando pela noite chuvosa. Embaixo de suas vestimentas, os pergaminhos responsáveis por uma poderosa magia que tinha como alvo o bruxo… aquele que tinha ocasionado todas as mortes.

“Eles interromperam o ritual, senhor…”, um dos clérigos tentou começar uma conversa, “Haverão muitas cidades mortas daqui em diante, irmão”, respondeu aquele que lhes parecia o líder, embora nada o diferencie dos demais, “... e esta localidade, agora, é a maior de nossas aliadas. Continuemos…”. Cada um dos seis ergueu uma lanterna coberta, delas luzes azuis e fantasmagóricas brilharam fracamente e os senhores da praga continuaram a vaguear.

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