Prelúdio da Vigília de um sonho



A claridade da aurora, o som despertador do canto dos pássaros e a verdejante paisagem de natureza viva voltou a ser real no perjurado bosque de Cadic. Desde que o solo profanado foi rebatizado com esperança, as raízes das macieiras sagradas conseguiram se enterrar profundamente na terra úmida. Trabalhadores saem de suas casas a essa hora da alvorada, despedindo-se de suas mulheres que haviam acordado ainda mais cedo para lhes preparar o café e o forra-bucho. Gracejos e bons dias são compartilhados em meio a sorrisos entre amigos. Mais um dia de peleja, um dia calmo como tem sido muitos outros desde que Cadic tornou à paz.

            Um lenhador trabalha arduamente tentando despencar uma velha árvore, faz o sinal para os Quatro, sussurra para natureza explicando sobre sua permissão de usar o machado ali. Havia conseguido a autorização de Thallion, agora senhor do templo dos deuses campestres. Está pronto para dar a primeira machadada, até que escuta um barulho suspeito no matagal a alguns metros. O lenhador está muito longe de alguma área de risco, mesmo assim segura firme a arma do ofício e se prepara para defender a própria vida.

            O intruso aparece desajeitado, tropeçando nas raízes mais frágeis. É um garoto com não mais de quatorze anos. O lenhador suspira de alívio, mas não deixa que o menino perceba isso.

- É um bosque muito grande para um garoto despreparado, filho. Devia estar na sua casa.

            O menino se curva para alcançar suas botas e arranca raízes e carrapichos dela. Usa um chapéu de algodão que sobra na sua cabeça:

- Não se preocupe, senhor, eu sei para onde estou indo – respondeu sem manter contato visual, ainda muito concentrado em suas botas lustrosas.

            O lenhador o observa dos pés à cabeça e julga a aparência do menino como a de um completo despreparado.

- Não vá muito longe. O bosque está bem seguro essa temporada, mas saiba que quando o mal decide agir, ele vem e se vai muito rápido - o garoto finalmente mantém contato visual com o estranho. É um olhar curioso e intrigante e o lenhador deduz que a criança está muito interessada no que ele estava dizendo – para onde está indo, menino?

- Para onde minha sombra aponta! – ele responde com um sorriso contente no rosto.

            O lenhador, sobrevivente, olha para o sol e a luz que incide sobre o garoto:

- Para o sul, então – o homem, de aparência mundana, analisa as vestimentas do garoto – você parece vir daquelas redondezas, embora não seja um elfo.

- Eu não sou mesmo.

- Hmm... Cuidado com eles, garoto. Elfos podem parecer bem pacíficos, mas escondem muita coisa. Não dá para confiar em quem guarda tantos segredos.

- Como você sabe disso? – perguntou o curioso menino após uma breve pausa.

- Sabe do quê?

- Sobre os segredos dos elfos. Eles falaram isso para você?

- Não, garoto – o lenhador sorri atrapalhado – A gente deduz. Não é preciso muito esforço para deduzir...

- É como uma vidência? – pergunta cada vez mais curioso.

- É tipo uma vidência mesmo... – o lenhador responde satisfeito, cheio de si, julga-se muito sábio. Retorna ao trabalho.

- Até mais, lenhador

- Até mais, garoto. Cuidado para não ser tapeado pela sua sombra.

O menino gargalha:

- Às vezes ela gosta de fazer isso, mas não me incomodo.

- Então... tá... Tenha um bom dia – o lenhador dá de ombros, o garoto caminha pelos caminhos mais estreitos do bosque.

[...]

            Horas após o encontro com o lenhador, o garoto parava sua caminhada. Ele tem um ramalhete de ervas e raízes bem amarrado às costas que lhe dá uma aparência simples de fazendeiro humilde. Enxuga a testa com o chapéu de algodão, senta-se numa pedra e sussurra para si mesmo “esta é a última”, analisando um punhado de ervas élficas na mão suja de tanto arrancar mato.

- Muito bem, Lael. Agora só precisamos encontra-lo – alguém se intromete na conversa, uma voz que parece sair do fundo de uma caverna, como se o bosque fosse um eco.

- Essa é a parte mais difícil, não é? Como diferenciar ele do resto? São tantas árvores!

- O Jardineiro sempre caminha próximo às margens do rio das lágrimas, bem no interior do bosque. São constantes suas visitas ao Templo de Laurë...

O garoto fica em um silêncio inquieto:

- O que foi Lael? – o eco mais uma vez indaga.

- O senhor chama de Templo de Laurë. Eu gosto de chamar de Inquisição.

- Certamente isso não deveria ser algo que lhe importunasse tanto – explica o eco.

            Lael concorda balouçando a cabeça, os olhos fixos no chão, sem compartilhar expressão nenhuma, se levanta e caminha até o rio mais próximo, então, resolve não acabar o assunto ali:

- Quando o senhor esconde o nome Inquisição, parece estar querendo mascarar o objetivo dela.

- Você está deduzindo demais, Laelsen. Chamo de templo pois este é o meu costume, talvez seja somente algo que eu compartilhe com Melanias.

- Não posso vê-lo, tio, mas lembre-se que você é minha sombra e parte de meu espírito. Não vai querer me convencer que essa sensação de culpa é legítima minha.

            Houve silêncio e este só se encerrou quando Lael e sua sombra puderam ouvir o barulho da água corrente.
[...]

            O sol começava a arder naquela manhã. Lael escorou-se num moinho às margens do rio das lágrimas, a roda d’água rugia o som de engrenagem ao ser empurrada pelo fluxo. Aquele era um dos moinhos de Lug, um maquinário engenhoso criado por um gnomo talentoso que outrora ajudara Cadic a se reerguer. Laelsen conhecia a história dele.

- O que farei aqui, tio? – o garoto perguntou já entediado.

- Não é você quem decidiu conhecer mais sobre ela?

- Sim. Quero deduzir se tudo está certo ou errado.

- Ninguém saberá a resposta antes que aconteça o episódio, filho.

- Eu quero tentar.

- Então, tenha paciência, os entes vivem no tempo deles. O Jardineiro não vai nos faltar.

            E realmente não o fez. Primeiro a floresta parecia prestes a rugir, o farfalhar das folhas ao longo alcance parecia um mar de tão verde, os galhos pediam a passagem e o emaranhado de raízes se protuberou, fixando-se firme no solo. A face do ente se desenhou no tronco de seu corpo amadeirado e velho, coberto pela casca grossa e resistente.

- Aqui venho prestar-lhes favor, filho secreto dos elfos. Melanias mandou-me, peça-me o que desejas e, desde que não rompa as leis da natureza, proverei.

            Lael aproximou-se com um largo e admirado sorriso no rosto. A copa do Jardineiro era enorme e cobria a passagem do sol de quase meio-dia, fazia mais que isso, ela filtrava apenas a luminescência incidente que era branda e pura. O garoto curvou-se em admiração e depositou o ramalhete de ervas e raízes no chão, diante ao que supôs ser os pés do ente.

- Ingrediente para a fabricação de um poderoso veneno para a mente. Porque quer causar-lhe tanto mal, criança?

- Não se preocupe, Jardineiro. Eu não tenho medos – Lael respondeu.

- Isso é algo impossível para uma pessoa na sua idade – o ente olhou fixamente para os olhos do garoto e bastou alguns segundos para perceber a determinação no mesmo – Não levarei mais de alguns minutos para fabricar o extrato. Recomendo que se lave na água do rio das lágrimas, ela desanuviará seu juízo enquanto isso.

            Lael assentiu e assim, sem vergonhas, despiu-se. Haviam marcas nas costas do garoto que, se mal vistas, bem poderiam ser cicatrizes de meia dúzia de flechas cravadas, porém, eram marcas de nascença tão bem desenhadas que era possível interliga-las por linhas retas e perfeitas. Ele banhou-se e quando emergiu das águas sacras, o Jardineiro já havia preparado a poção de ervas.

- Não a beba de uma só vez, menino. Não importa sua coragem.

- Sapphire bebeu esse mesmo tipo de poção?

            O ente assentiu.

- O que aconteceu com ela?

- Dormiu e sonhou. Para falar a verdade, teve um dos mais terríveis e reais pesadelos.

- Você esteve na cabeça dela?

- Os entes não são capazes de fazer isso...

- Mas você não é um ente comum. Você foi criado pelas bruxas.

            O Jardineiro se assustou com o conhecimento do garoto:

- Eu estive na mente dela...

- Escute-me ancião da floresta, eu menti para você quando disse que não tinha medos, na verdade, eu tenho um. Tenho medo da dúvida. Quero conhecer mais sobre as perguntas antes de deduzir as respostas. O senhor precisa me contar o que viu.

            O Jardineiro sentiu-se envolvido pela vontade de contar aquele segredo alheio, como se se o fizesse, estivesse ajudando a mais que somente aquele garoto. Sentiu-se quase obrigado a fazê-lo, pois toda a floresta, naquele minuto, agradecia a ajuda da távola e confiava em Lael.

- Tudo começou quando Ofélia caiu...

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