Já
se fazia três dias desde que a pequena barcaça, tortamente criada pelas mãos
apressadas de Ûr, flutuava à deriva em pleno oceano. O anão era o único
passageiro e não haveria mais espaço para qualquer outra coisa além deste e de
sua ostentosa armadura.
Aqui,
torna-se importante salientar a magnificência desta vestimenta de aço dourado,
uma criação augusta alcançada apenas através do mais sublime ofício anânico.
Metal e fogo divino deram vida à composta proteção que refletia os dourados
raios de sol quando era dia e a prata lustrosa durante a noite. Ûr era seu
sagrado portador, um honrado e condigno ungido pelo aço, como seus irmãos
diziam. Não saía da armadura. Repousava e dormia nela, em pé, como uma rocha
firme no solo, incapaz de ser arrancada.
Três
dias e duas noites foram o suficiente para que Ûr relembrasse sua história. Seu
rosto manchado pela vermelhidão do calor acima do nível do mar, lábios tão
ressecados que lhe cortavam a pele. Ainda assim, de armadura. O metal espetava
suas articulações, fazia-o sangrar vez em quando, mas ele era anão, na verdade,
mais do que isso, era um ungido pelo aço, manteria sua armadura forjada do
tecido de Hefasto no corpo, não importaria o resultado.
Ûr havia perdido todos os seus
aliados na ilha dos kuo-toah, feras abissais e humanoides de escamas escuras e
presas serrilhadas como as de uma piranha, feitas para morder e arrancar. É uma
cena horrível de se narrar, o anão teria que escolher as palavras certas
quando, enfim, pudesse contar a história em alguma taverna, talvez, saciando a
sede com a pinga anã, junto com seus irmãos que ouviriam interessados mais um
dos relatos do ungido. O episódio, entretanto, se tal qual fosse narrado, de
muita escatologia os ouvintes não iriam escapar: muitas pernas e braços
mutilados, a clériga do grupo arrastada na lama, violentada até desaparecer nas
profundezas de um pântano venenoso, o halfling escalpelado pela bocarra faminta
de um kuo-toah que havia escancarado sua cabeça como um abridor faria numa
lata, até mesmo a simpatia do bardo havia alcançado um fim trágico, enquanto um
dos homens-piranha arrancava sua mandíbula afim de alcançar a língua falastrona
num banho de sangue e sorrisos perversos.
Ûr não conseguiria mais agarrar-se
ao sono desde então. Mesmo o mais breve cochilo se tornava uma dolorosa missão.
Já no segundo dia, as ondas ficaram mais agressivas e o descanso se tornou algo
obrigatoriamente dispensável. Recusou-se a cair. Havia sobrevivido graças à armadura,
nenhuma presa inimiga foi capaz de danificá-la. Ûr perdeu o machado e a
mochila, então socou os kuo-toah com a manopla, esganou com violência aqueles
que insistiram muito em transformá-lo num banquete, então, enfim, os abissais
desistiram e se contentaram com a carne que já haviam roubado.
O
anão, porém, sabia que os inimigos iriam retornar em peso... precisava sair
dali o quanto antes. Improvisou uma pequena barca de madeira unida e pouco
valiosa, segurou com firmeza as primeiras ondas e embarcou além-mar em busca de
um destino piedoso. Lembrava-se agora do tempo que havia lhe custado forjar o
artefato que ele vestia: quatro anos e meio suportando o calor dos vesúvios do
vulcão divino, lar de sua raça. Cada golpe com sua marreta sob o aço sagrado
fazia tinir seus ossos e o sangue ardia como fogo. O enjoo partia-lhe a cabeça,
vomitava bile e sangue, tossia violentamente em cada golfada de ar acinzentado.
Ûr era sacrifício de corpo e de mente e agora compartilhava a alma com a
armadura de Hefasto, sua obra-prima.
Veio
a tempestade na terceira noite. Quando o céu ainda escurecia, os trovões
alertaram Ûr que a treva que viria a seguir traria uma tempestade invocada pelo
próprio Leviathan. “O deus dos mares odeia o metal”, os anões acreditavam nisso
e Ûr, zangado, acreditava ainda mais. O céu se partiu, os raios tocaram a água
e as ondas rebentaram a noite. Ûr se segurava à desmoronada barca com firmeza,
parecia ser tragado diretamente para a garganta do oceano, lugar onde seria
moído e restaria somente sua armadura, imune ao tempo e à ferrugem.
Uma onda o golpeou como a cauda de
um dragão, o anão foi arremessado aos ares, caiu na água selvagem e em fortes
braçadas alcançou o que ainda sobrava da pequena barca. Emergiu tomando um longo
fôlego, o líquido salgado invadindo seus pulmões e a tosse esmurrando seu peito
que agora estava lacerado pelo constante atrito com a armadura. O metal estava
congelando a pele cicatrizada, o peso o puxava para as profundezas do mar de
Leviathan. Ûr continuava a ser o ungido pelo aço, abraçou-se à madeira e sua
barba avolumou-se sobre seu rosto fatiado de exaustão.
A segunda onda veio ainda pior. O
anão sentiu o baque do corpo na água e as extremidades laminosas da armadura se
fixarem nas suas articulações. Ele gritou de dor junto aos trovões e, por um
momento, pôde sentir a calmaria ser invocada após seu brado. O medo, então,
enterrou-se profundamente em seu peito, o mar era agora um inimigo que tentava
abatê-lo, porém, Ûr sabe que ele é um ungido pelo aço. Riu alto, ensandecido, a
água descendo pela sua garganta.
Uma terceira onda se formava, maior
que as duas outras. O anão a observou impetuoso e, Hefasto é a única prova que,
naquele momento, Ûr pôde ouvir o mar ordená-lo: “Livre-se da armadura! Livre-se
da armadura e lhe concederei um destino piedoso!”. Então, o ungido pelo aço
enxergou a face do oceano encarando-o arrebatadoramente. Pelejou para tomar
fôlego o suficiente para que suas palavras pudessem ser gritadas, tocou nos
freixos da armadura de Hefasto e urrou:
“NÃO!!!”
A última onda caiu despejando sobre
o ungido pelo aço todo seu peso. Ele foi arremessado para as profundezas,
tentou mover seus braços, mas a armadura lhe devorava todo o corpo e a exaustão
desmerecia seus movimentos. Tudo, então, ficava gradativamente mais escuro,
apenas os relâmpagos tingiam as profundezas com repentinas claridades e, assim,
antes que a completa escuridão cercasse o anão, ele fechou os olhos e
finalmente agarrou-se ao sono.
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