Escrevo com inoportuna pressa a
Vossa Senhoria, Madre Cecilia d’Lacarte, esta carta que deveria ter sido
enviada a algum tempo. Tempo que julgo não ter tido nesses últimos oito meses
que eu irresponsavelmente não lhe trouxe respostas sobre os resultados de minha
viagem.
A
senhora deve julgar que eu tenha morrido de alguma praga ou febre coagulante
típica das ilhas que agora permaneço, mas estou bem, pelo menos estou sadia
para escrever-lhe uma carta. Eu o encontrei tão depressa quanto tomei a decisão
de aceitar a viagem até essas terras lodosas e estive com ele desde então. Peço
desculpas por ocupar o seu tempo precioso com a leitura de uma carta tão
extensa, mas para que a senhora possa compreender minha decisão, presumi que
toda a história deveria ser contada. Começarei, então, pelo início...
Não
o início que me foi revelada a missão divina de vir às ilhas de Maldûn, pois desta
história a senhora bem sabe, refiro-me a um início representado pelo fim da
viagem tenebrosa a bordo de uma caravela que era tão sombria quanto o próprio
mar. Eu esperava que o frio das viagens além do litoral fosse sanado quando
finalmente pisasse em terra firme, mas a ilha que, enfim, depositei a sola de
meus sapatos após a mais longa de minhas viagens, era tão cruelmente castigada
pela gelidez que me senti mais segura enfrentando o balouçar da embarcação em
alto mar do que na névoa sobrenatural que se perpetua na ilha.
Entreguei
um saco com mais peças de ouro do que o prometido ao senhor Lancan, o dono da
caravela, um bom homem, como a senhora se referiu, tratou-me com bons modos e
impediu até mesmo os olhares secos direcionados a mim pelos seus marinheiros.
Ele tinha bastante medo de ofender Amaryllis e todos os dias fazíamos breves
orações juntos.
O
senhor Lancan me contou sua história, falou-me de seu filho, Hoaqin, um jovem
audacioso que também estava na tripulação, e sua mulher, Ruth, que quase
sucumbira a uma terrível doença de porto e que sobreviveu graças aos milagres
da deusa Amaryllis, por isso, Lancan sempre rezava à deusa da vida. Tratou-me
com gentileza tantas vezes que fiquei chocada quando ele agarrou-me pelo braço,
me apressando o passo para que eu saísse imediatamente da embarcação assim que
ele aportara na ilha.
̶ Me desculpe senhorita Janine,
essa ilha é amaldiçoada, não podemos ficar sequer mais um minuto aqui.
Ele
explicou, jogando minha bagagem em uma ponte de madeira enlameada que era a
minha entrada para a ilha. O senhor Lancan havia me falado muito sobre as ilhas
de Maldûn e havia sempre medo estampado em seu rosto quando fazia isso. Dizia
ele:
̶ Há alguma coisa maligna naquelas
ilhas, senhorita Janine. Eu não sei como ainda há pessoas habitando aquele
lugar. Há doença, fedor e morte. Todos que ousam perambular por lá, jamais
retornam. São ilhas malditas.
Eu,
claro, já sabia disso. Havia aceitado a missão de vir à ilha, pois, em sonho,
Amaryllis me exigiu uma provação maior e se, naquele instante, isso era uma
vontade dela, eu não poderia recusar.
Ao
caminhar sobre a madeira quase partida que compunha a ponte que me levaria até
o interior do meu enclausuro, percebi que eu nunca estivera tão sozinha na
minha vida. Ajustei meu manto sobre os ombros e senti o primeiro toque do frio
sobrenatural que é muito mais extenuante que o frio comum. Havia névoa em todos
os lugares, uma névoa densa e sombria, as placas de madeira da ponte aos poucos
ficaram soterradas pela lama conforme meus passos me faziam avançar. O estalido
da madeira e o pisar da lama eram os únicos sons que eu podia discernir naquele
instante.
Acho
que nenhum ser vivo confronta um medo maior do que o da solidão perpétua. Naquele lugar, eu estava enfrentando isso e a minha
única esperança era alcançar o vilarejo mais próximo, lá estaria a minha
salvação, porém, a salvação não queria ser encontrada. Eu falhei com minha
sabedoria e apressei o passo, meus pés chafurdando em lama até o meio das
canelas. Onde estaria o maldito vilarejo? Não seria possível que ficasse tão
longe das docas. Será que a névoa havia me feito perder-se? Porque não escuto
som algum?
Eu
gritei, acompanhada de lágrimas incontroláveis. Gritei uma dezena de vezes e só
pude ouvir meu eco. O ambiente em que estava parecia me cegar, me ensurdecer e,
a pior sensação, me tragar para dentro do estômago de uma criatura sobrenatural
que me devoraria silenciosamente e todo ruído que sobraria era o eco do meu
choro, que ficava cada vez mais angustiante.
̶ Aqui!
Ouvi
uma voz. Era uma voz masculina, ela se projetava além da névoa, a partir de uma
luz lúgubre e pendular. Eu gritei de volta e a luz veio em minha direção.
Naquele instante pensei que Amaryllis havia me mandado um anjo para guiar-me
pelas sombras daquele inferno, mas era somente um sujeito sombrio, vestindo um
capote longo e enlameado e um chapéu surrado que lhe cobria o rosto quase por inteiro.
Ele carregava uma lanterna que continha a luz tímida de uma chama.
̶ Senhorita, não pode andar por aqui
a esta hora da noite. O que está fazendo?
Minhas
pernas estavam tão atoladas em lama e o meu sofrimento estava tão estampado no
rosto que eu aproveitei a cena para ajoelhar-me diante meu salvador e suplicar
por ajuda. Ele me tirou da lama e me levou ao vilarejo sem nome.
O
vilarejo estava ironicamente perto da minha situação de agonia, mas parecia
vazio de tão quieto. Os casebres eram feitos de madeira torta e cheias de
casca, cobertos com lonas de couro sujo e costurado, cobertas de bolor e outras
sujeiras. A névoa e a lama não cessaram, mas ficaram mais suportáveis, pude ver
alguns olhares curiosos nas venezianas das janelas parcas, uma carroça cheia de
feno e um velho burro surrado não pela idade, mas pelo terror do lugar em que
ele vivia. O homem que me salvou era apenas um habitante da ilha que, como
todos ali, estava marcado pela sujeira e por cavernosas cicatrizes, uma destas
havia lhe arruinado o olho esquerdo. Ele tentou me acalmar, mas somente após um
minuto pude ouvi-lo:
̶ Senhorita, está me ouvindo? Meu
nome é Nestor e eu moro nessas redondezas. Você está bem agora, não se
preocupe. Raramente alguém vem de fora para cá, não esperávamos qualquer
visita, sentimos muito pela falta de um anfitrião mais cedo.
̶ Estou melhor, senhor, obrigado
pela ajuda. Não sei o que seria de mim se você não tivesse me ouvido. Obrigado.
̶
Está bem tarde para uma visita. Não temos hospedaria, se estiver procurando
alguma. Como eu disse, raramente alguém vem à ilha, o último estalajadeiro que
existiu morreu a onze anos, doente e miserável, mas, não se preocupe, você pode
ficar em minha casa hoje a noite.
Passei
a minha primeira noite na ilha dentro da casa de um estranho, rezando pela
proteção de Amaryllis para que ele não fosse um malfeitor. A casa de Nestor era
tão pequena e desorganizada quanto a dos outros habitantes e, mesmo lá dentro,
havia espaço para a névoa que a tudo impregnava. O fogo dissipou parte dela e
deu espaço ao sono de uma exausta. Eu aceitei a bênção da segurança e a
contemplei dormindo.
Não
me recordo dos sonhos que tenho aqui, nem o deste primeiro dia, nem os
posteriores. Tudo está coberto de uma névoa sombria, sei, porém, que não são
sonhos harmoniosos. São pesadelos horríveis que me fazem delirar e suar frio.
Neste ponto, agradeço a névoa em meus sonhos que me impede de lembrar qualquer
situação onírica a qual me envolvi.
Acordei
e ao meu lado havia um prato que continha um pão velho e meio copo de leite.
Meu hospedeiro não deixou bilhete, Nestor acordou-se de manhã bem cedo, como de
costume, decidiu me deixar descansar mais um pouco e saiu para labuta. Com a
fome que eu estava devorei tudo agradecendo à Amaryllis e ao meu humilde
hospedeiro em oração. O pão das ilhas é criado a partir de um trigo que
floresce num pântano sujo, povoado por libélulas e rãs. Descobri, depois, que a
planta é moída mecanicamente, através do processo braçal realizado por uma
dezena de homens. Não há ventos fortes o suficiente na ilha para dissipar a
névoa, muito menos para mover as paletas de um moinho.
Meu
primeiro dia foi solitário, como todos os dias são solitários aqui, a menos que
se encontre uma ocupação. Durante o dia, todos se mantêm ocupados na ilha,
durante a noite, a maioria fica reclusa em suas próprias casas, muitas vezes
sussurrando conversas misteriosas com seus parceiros e observando o movimento
quase nulo do vilarejo à noite.
Sendo
assim, meu dia foi regado de nada. As poucas pessoas que vi me ignoraram,
limitaram-se a responder o mais breve possível e se afastaram, estranhas e
desconfiadas. Os habitantes da ilha são indivíduos assustados, marcados por uma
vida de pouquíssima alegria, lacerados por inúmeras cicatrizes das doenças
provocadas pelo ar, pelos fungos, pelos mosquitos e pela higiene precária do lugar.
Muitas perguntas me vieram à cabeça. Eu não entendia o porquê de elas
permanecerem nesse local. Conheci tudo o que podia conhecer desse vilarejo sem
nome, mas que era parte da ilha e, por isso, era maldito. Observei as
plantações, os insetos, as ruas e as casas, visitei galinheiros e o cercado
contendo três vacas e um velho boi, prestes a se aposentar.
Ocupei-me
até a noite me alcançar e isto foi rápido. Os habitantes do vilarejo voltaram
de seus afazeres aos pares, muitos caminhando de mãos dadas. Eles saíram de
dentro da névoa densa e tinham seus rostos tristes e maculados, mantinham um
andar de marcha fúnebre. Eles passaram por mim, como fantasmas que repetiam o
mesmo ofício todos os dias e sequer se surpreenderam com a visita de gente nova
no recanto. Naquele dia, acho, eles mal me notaram, assim como mal se notam
todos os dias. Fui surpreendida por uma voz soturna:
̶ A senhorita não me disse seu nome.
O
susto foi imediato. Era Nestor, ele me pediu desculpas pelo susto.
̶ Me chamo Janine, sou sacerdotisa
de Amaryllis. Estou procurando por um meio-elfo chamado Jackaby Maelstrom e as
últimas informações revelaram-me que ele se encontra nesta ilha.
̶ Jackaby? Desculpe-me, senhorita
Janine, mas não conheço alguém com esse nome nessas redondezas, mas acredito
que sei quem você está procurando.
Nestor
caminhou pelas ruas sujas e eu o segui, porque parecia que era isso que ele
queria.
̶
Os habitantes desse vilarejo nasceram todos aqui e não há como alguém dos
reinos limpos ter conhecido alguém neste fim de mundo. Há, porém, um único
habitante deste lugar que veio de lá e supostamente é ele quem você procura. A
ele chamamos de hospitalário.
Achei
o termo interessante: hospitalário. Essa alcunha resgatava um passado longínquo
onde esse título era dado aos cavaleiros que resgatavam os feridos no campo de batalha
e arriscavam suas vidas neste propósito. Estes usavam cavalos brancos que, de
tanto ensopados pelo sangue dos cadáveres que transportavam, mantinham uma
couraça ressequida e rubra que acompanhava seus galopes. Uma profissão
sangrenta que, mais tarde, descobriria que se encaixava perfeitamente com
Jackby Maelstrom.
̶ Chegamos, senhorita. A casa fica
no final dessa rua, infelizmente, dispenso-me de ser seu guia a partir daqui.
Era
uma casa como outra qualquer da ilha, não tinha razão para ser melhor ou mais
vasta, ao contrário, era ainda mais obscura e alcançada através de uma curta
caminhada numa viela estreita repleta de varais e lanternas que foram
penduradas para que os vizinhos do hospitalário pudessem observar invasores. O
senhor Nestor me ofereceu a lanterna de fogo tênue e eu agradeci com sorrisos e
gestos, em seguida, ao entrar na viela escura e emoldurada de fungos que
cresciam nas paredes de madeira das casas ao redor do caminho, senti-me mais
uma vez numa solidão sufocante. O mais surpreendente é que eu percebera que
estava me acostumando com a tristeza do lugar.
̶ Senhor Maelstrom!
Presumi
que fosse melhor anunciar a minha chegada enquanto caminhava à porta de seu
casebre. Esperava que a porta de entrada abrisse antes que eu chegasse nela,
mas não foi o ocorrido. Havia uma única luz que se projetava da frente da porta
e era a de uma lanterna com proteções de arame que parecia uma pequena gaiola.
A luz dentro dela era menos tênue do que a das demais lanternas e uma mariposa
pousava encantada em cima da luz, aprisionada como um pássaro.
̶ Senhor Jackaby Maelstrom?
Não
houve resposta. Apesar de tudo pude ouvir o crepitar de uma fogueira fraca
acesa dentro da casa.
̶ Senhor Hospitalário?
Então,
ouvi passos se direcionando até a porta e a velha maçaneta enferrujada se
moveu. Aquela foi a primeira vez que vi Jackaby Maelstrom, o hospitalário,
trajado com um capote negro e pesado, um chapéu igualmente escuro e de abas
largas, uma vestimenta acolchoada formada de muitos cintos e bolsos e, é claro,
a enigmática máscara do corvo. Tomei um susto.
̶ Perdão, forasteira. Não foi minha
intenção assustá-la, embora, de fato, tenha adorado o vislumbre de horror
estampado em seu rosto. Minha aparência não mais parece ofender ninguém e, se
eu pudesse provocar tamanho susto no alvo certo, creio que o senhor Rolham
ainda estivesse com suas cordas vocais intactas, aproveitando ao máximo o
silêncio que a ilha proporciona aos seus moradores.
Ficamos
quase um minuto em silêncio.
̶ Que indelicadeza a minha. Estava
de saída, mas creio que é tamanha a surpresa de ter uma forasteira nessas
terras que devo tentar relembrar-me das regras do anfitrião, por favor, entre.
Sou Jackaby Maelstrom, mas não mais atendo por esse nome, desde que o silêncio
desse pequeno pedaço de mundo esquecido trouxe a paranoia à minha mente e, por
isso, escuto-o constantemente sendo pronunciado pelos enfermos que não consegui
curar a tempo. Resumindo, chamam-me de hospitalário e é assim que qualquer um
com bons modos deverá me chamar.
A porta de madeira torta estava
escancarada e o braço do capote negro estava estendido em direção à entrada da
casa, como uma mortalha sombria, porém, estranhamente convidativa. Senti o
calor da fogueira bem alimentada assim que entrei, o cheiro de éter persistia
no cômodo, único cômodo da casa, por isso, ali estavam os lençóis bem dobrados
dispostos num chão limpo que estava sendo usado como cama improvisada, uma
estante decadente reunindo dezenas de frascos com líquidos e odores diferentes,
ordenados por cor e tamanho, devidamente etiquetados. Além da mesa que estou
usando agora para escrever-lhe a carta, o artefato mais bizarro da casa de
Jackaby Maelstrom.
Naquele
dia, a mesa continha a maleta do hospitalário aberta e pronta para ser ocupada
com os mais sinistros equipamentos que estavam espalhados na bancada de forma
organizada.
̶ Julgando pela sua cara, você
conhece tão pouco sobre meu ofício que confunde meus equipamentos com
instrumentos de tortura.
Falou-me
Jackaby enquanto se aproximava da fogueira com uma chaleira velha e amassada.
̶ Perdão, senhor. Não usamos esses métodos.
O
hospitalário parecia esquentar um chá azedo que impregnou todo o cômodo com
cheiro leve e dissipador.
̶ Fale-me do lugar de onde veio.
Seus
olhos se concentravam na chaleira enquanto ele esperava pacientemente o chá
começar a borbulhar.
̶ Bem, eu sou de Rivergate, do
templo das madres, sacerdotisas de Amaryllis. Minha missão era encontrar o
senhor.
̶ Certamente... Rivergate é o reino
dos rios?
̶ Exato.
̶ Continua sendo um lugar pacato?
̶ O mais pacato do nosso mundo, senhor.
̶ Muito bom. A senhorita quer chá?
̶ Não, obrigado.
̶ A senhorita não deveria recusar o
chá, primeiramente porque é um vexame para o anfitrião, segundo, o chá de
calêndula é a única bebida que presta por essas bandas da ilha, poucos têm a
chance de apreciá-lo.
̶ Tudo bem, eu aceito um pouco.
Ele
derramou o chá em uma xícara de lateral trincada e virou-se para me entregar.
Estava sem máscara. O hospitalário era um meio-elfo aparentemente jovem, havia
uma única cicatriz que riscava o lado direito de seu maxilar, impossibilitando
o nascimento de pelos faciais naquele ponto, apesar disso, seu rosto era de uma
limpeza ímpar para alguém que já permanecia nesta ilha a mais de oito anos.
̶ Seja cuidadosa, senhorita, esta é
a única de minhas xícaras que ainda possui alça.
Jackaby,
porém, era soturno e tinha olhos negros fantasmagóricos. Sobre essas
características, não acho que ele tenha adquirido por adaptação ao ambiente da
ilha, para ele o mistério soava natural, como se ele tivesse nascido com aquele
tom. Calhava bastante com sua profissão assombrosa.
̶ Sei que está quente, mas gostaria
que bebesse rápido, pois tenho trabalho a fazer e não costumo me atrasar.
Ele
falou-me isso enquanto selecionava seus instrumentos impuros de ofício. Tentei
ser o mais rápida possível e consegui, o calor do chá incendiando minha
garganta era um alívio naquele vilarejo frio e de eternas brumas.
̶
Tenho muita coisa para lhe falar, senhor Jackaby...
̶
Chama-me de hospitalário.
̶ Oh sim, perdão. Trouxe-lhe uma
proposta do templo das madres.
̶
Corrija-me se eu estiver errado, mas, ouvi dizer, há muito tempo, que a
religião de Amaryllis não aceita homens, é verdade?
̶
De fato, mas, isso não significa que não damos a eles a devida importância.
̶
De maneira alguma quis insinuar isso, senhorita.
̶
Bem, como ia dizendo, trago uma proposta que, talvez, lhe agrade...
̶
Seja qual for essa proposta, ela precisa de tempo para ser absorvida e pensada.
Não tenho tempo agora e, certamente, esse questionamento pode atrapalhar o meu
ofício. A senhorita se importaria de esperar um pouco mais, digamos, por mais
algumas horas dessa noite?
Ele
fechou a maleta, colocou a máscara de corvo novamente e parecia pronto para
colocar o pé na estrada.
̶
Senhor, eu poderia ajudar em algo?
̶
Você é uma sacerdotisa, seus poderes divinos não funcionam aqui na ilha, mas,
certamente você teve um treinamento médico, estou correto?
̶
Sim.
̶ Ficarei feliz se me acompanhar.
Foi
o que fiz. Saímos do casebre para enfrentar a noite gélida e cegante. Jackaby
Maelstrom pareceu imponente, oculto pelo capote e sua máscara de corvo que foi
posta novamente em sua fronte. Ao sair, recolheu a lanterna com a mariposa e a
usou para iluminar o caminho até o lugar de seu ofício. Ainda no corredor
estreito que levava à sua casa, ele falou:
̶
Acho que a vantagem de receber um estrangeiro em casa é a de responder perguntas
curiosas, então, senhorita, por favor, faça as suas perguntas enquanto andamos
pelo vilarejo, a muito tempo não tenho uma conversa longa.
O
vilarejo da ilha é medonho à noite. Durante o dia, pensei que a luz do sol não
fazia seu serviço corretamente, naquele momento, cercados por um breu absurdo,
percebi que até os mais tímidos raios de sol traziam algum tipo de vida àquele
lugar. A única coisa que resistia à escuridão era a luz parca da lanterna do
hospitalário. Era uma ótima ideia começar um diálogo naquele momento:
̶ Porque a magia divina não funciona
aqui?
̶
Os habitantes da vila falam da névoa perpétua como um ser sobrenatural responsável
por ocultar as ilhas da visão dos deuses e por trazer tantas doenças. Eles
estão certos apenas em um dos casos.
̶
Porque existem tantas pragas, então?
̶
Higiene, senhorita. Este lugar é um pântano. Há ratos, há moscas e há podridão.
A doença se espalha em ambientes cercados de desorganização. Conscientizar os
habitantes do contrário não é uma tarefa apropriada para mim, certa vez,
tentei, mas contive minha frustração quando percebi que fui ignorado.
̶
Porque os habitantes insistem em morar aqui?
̶
Eles não têm outra opção, senhorita. São as ilhas de Maldûn. Eles estão presos
aqui. Nenhuma terra limpa vai acolhê-los e correr o risco de enfrentar mais de
trinta e duas pragas contabilizadas e que só existem nesse lugar. Além do mais,
os moradores desse vilarejo acreditam que a névoa existe por causa deles e ela
os perseguirá, para onde quer que eles vão.
̶
Que Amaryllis tenha ouvidos mais atentos! Esse é um destino bem trágico!
̶
Certamente.
̶
Reparei que o senhor sofreu pouco com as doenças da ilha, como faz para que elas
não te contaminem?
̶
Esse é um daqueles momentos que me julgo pouco carismático ou sem influência
alguma. Contei-lhe a poucos minutos que a boa higiene previne doenças e tento
me manter limpo.
̶
Perdão...
̶
Não se desculpe, senhorita. Começo a pensar que o esquecimento dessas
prevenções está diretamente ligado à existência da névoa.
Andamos
por mais algum tempo, sempre guiados por luzes tênues de lanternas que
bruxuleavam na escuridão à nossa frente. O povo da ilha se protege da escuridão
como se esta fosse a forma mais perigosa da criatura sobrenatural que eles têm
de enfrentar todas as noites. Muitas vezes vi os olhares amedrontados perscrutando
pelas janelas de primeiros e segundos andares. Durante a noite, o vazio parece
dar espaço a mais uma centena de casas de madeira torta, num labirinto sombrio
de habitações escondidas pela lama e pelas árvores desfolhadas e monstruosas.
̶ Chegamos, senhorita.
A
casa que havíamos chegado estava perigosamente próxima à parte profunda do
pântano. Havia plantado na lama, além de uma fantasmagórica árvore derrubada
pelo tempo, uma plantação desorganizada de trigo cinzento e um tapete de mosquitos
em cima da água suja.
O
senhor Jackaby utilizou-se de um gancho, já instalado em frente à casa que
iríamos entrar, para pendurar sua lanterna com mariposa. Ele se certificou que
a luz não balouçasse num movimento pendular, em seguida abriu a porta exercendo
esforço para vencer o acúmulo de lama que se concentrava em sua base.
̶
Seria sádico de minha parte desejar ao senhor, Montificus, uma boa noite. Tudo
que posso desejar são melhoras. Eu farei de tudo para que a dor em seu dente
amenize.
Dentro da casa havia apenas um homem
desesperado, segurando dolorosamente o queixo vermelho que lhe saltava de forma
horrível do rosto. Toda a face do homem latejava, cicatrizes haviam se rompido
e tigelas de sangue grosso foram depositadas em cima da mesa e no chão, todas
cheias do sangue do infeliz. Apesar das tigelas, ainda havia muito sangue no piso.
O senhor Montificus estava sentado numa cadeira torta, bem próxima à lareira de
fogo quase extinto.
̶
Senhorita, poderia recolher as tigelas de cima da mesa? Gostaria de usá-la.
Era um ferimento horrível. Meu rosto
expressou terror e pena do indivíduo. A face do hospitalário parecia austera
enquanto oculta pela máscara de corvo. Eu retirei as tigelas com cuidado, para
que nada derramasse no chão que já estava bem sujo. Jackaby depositou a maleta
em cima da mesa e a abriu logo em seguida, evitando olhar vezes insistentes seu
paciente, como eu estava fazendo naquele instante.
̶
Senhor Montificus, esta senhorita será minha auxiliar hoje, se não se importa.
Adiantei-me
para próximo do paciente e toquei seu rosto frio sentindo o pesar no peito que
é digno somente das sacerdotisas de Amaryllis.
̶
Me chamo Janine, sou uma sacerdotisa da deusa da vida, vinda das terras do
reinado. Peço sua complacência, senhor Montificus.
Toquei-lhe
o rosto e implorei pela bênção de Amaryllis, na esperança de que ainda sobrasse
um pouco do milagre dela ali naquele sepulcro. Não houve resultados.
̶
Você deveria ter evitado tamanha decepção, minha cara. Como você já deve ter
ouvido, não só de mim, o milagre dos deuses não chega até as ilhas.
Afastei-me
bastante descontente.
̶
Como posso ajudar, senhor Maelstrom?
O
hospitalário misturava líquidos numa ampulheta e os depositava numa seringa,
testando a coloração da solução.
̶
Primeiramente, sei que você vai se acostumar a me chamar de hospitalário algum
dia, mas, por enquanto, desejo que segure o senhor Montificus pelas costas,
mantenha-o firme na cadeira. Pode fazer isso?
Respondi
com um intimidado menear de cabeça, tentei acalmar o paciente, mas o terror
estampado em seus olhos lacrimosos apenas aumentava conforme o hospitalário
separava as ferramentas torturantes que iria utilizar.
̶
Não tenho um jeito melhor de fazer isso, senhor Montificus, preciso extrair o
dente para analisar o ferimento em sua boca. Isso vai doer bastante, talvez
mais do que da outra vez.
O
paciente consentiu silenciosamente, sem esconder as lágrimas. O hospitalário
tinha, em mãos, uma longa ferramenta que se assemelha a um alicate, havia,
entretanto, molas, parafusos e porcas na extremidade do aperto. Quando as
presas do alicate tocaram o dente gigantesco, o pobre paciente ficou trêmulo e
eu o agarrei com força.
Jackaby
pressionava as estranhas engrenagens no dente do paciente de forma técnica,
porém, dolorosa. O pequeno parafuso perfurara a superfície dentária provocando
o primeiro ganido de dor. O senhor Montificus tinha um bafo e tanto, o cheiro
podre havia se intensificado com o acúmulo de pus nas gengivas.
̶
Preciso que se esforce, senhorita.
Pediu-me
o hospitalário enquanto segurava firme o alicate bizarro com ambas as mãos e
com a perna esquerda ganhava apoio na parede mais próxima. Presumi que aquela
cena seria traumatizante e fechei os olhos, por isso, não assisti o esforço de
Jackaby quando ele puxou com todas as forças aquele dente.
O
grito de dor rompeu o silêncio da noite. Lá fora a névoa se deslocava curiosa
para os arredores daquela casa, como se desejasse assistir ao sofrimento. Um
segundo puxão e senti o líquido gotejante esparramar-se pelo meu rosto. Abri os
olhos e vi que era sangue, uma grossa camada de sangue vinda do sujeito que
mantinha os olhos arregalados de dor excruciante. Um terceiro puxão e, como erupção,
irrompeu sangue acumulado na garganta da vítima direto na minha cara. Senti o
gosto férreo do sangue invadir a minha boca e o regurgitei. Minhas vestimentas
estavam encharcadas e o peso daquele líquido grosso aquecia bizarramente meu
corpo.
O
hospitalário também estava ensanguentado, era possível ver seu rosto pálido
molhado com finas tiras de líquido vermelho escoante. Sua roupa enegrecida
ocultava o banho rubro. Então, um quarto puxão e mais sangue! Os olhos do
senhor Montificus reviraram-se, ele estava prestes a desmaiar.
̶
Peço que o solte, senhorita.
Eu
o fiz, atônita. O corpo do paciente tombou, junto com a cadeira.
̶
Senhor Montificus preciso que fique acordado. Você pode me ouvir?
O
hospitalário dava tapinhas no rosto de seu paciente tentando impedir que ele perdesse
a consciência.
̶
Preciso da força de seus pulmões daqui a instantes. Se você desmaiar, morrerá
afogado. Consegue me entender?
O
paciente assentiu fracamente. A boca aberta deixava jorrar teias de saliva e
sangue, além de um fedor que ficara mais constante.
̶
Senhorita, você poderia alimentar a fogueira com lenha? Ela esta lá fora. Temos
que impedir que a névoa entre na casa. Eu mesmo faria isso, mas preciso aplicar
a injeção.
Meu
corpo demorou a responder e o senhor Jackaby respeitou isso. Eu saí, então, ensanguentada,
em direção da porta.
̶
Obrigado. Não demore tanto, precisamos continuar logo.
Abri
a porta e me senti um fantasma de passos trôpegos invadindo a escuridão
iluminada somente pela lanterna do hospitalário instalada em frente à casa. A
mariposa pousava tranquilamente diante meu ponto de vista. Observei os
arredores e pude ver um escasso estoque de lenha, caminhei até lá e comecei a
colher as madeiras menos úmidas. Desabei em choro e vômito, deixei-me cair de
joelhos junto com as lenhas e esfreguei nervosamente meu rosto. Pânico. O que
eu estava fazendo ali!
Meu
corpo não queria obedecer, eu ficaria ali e pronto. Se o senhor Jackaby
precisasse mesmo da lenha, ele viria e eu lhe contaria que tentei, mas não
havia mais coragem para encarar aquilo. Não havia mais o toque de minha deusa.
Eu estava, mais uma vez, sozinha. Me lastimei até notar, em mim, maior
incidência de luz.
Eram
luzes bruxuleantes que se moviam de forma fantasmagórica e estavam além da
névoa. Eu as segui com os olhos vidrados, assustada e atônita. Elas se
aproximavam perigosamente de mim e eu não tinha pernas para correr. Uma a uma,
as luzes davam forma às silhuetas espectrais e o terror me socava o estômago.
Limpei o rosto com a água suja do pântano e me deparei com uma dúzia de indivíduos.
Eram
os habitantes da ilha. Seus rostos estavam mergulhados em agonia e insegurança.
Eles saíram de suas casas e enfrentaram a escuridão, cada um com suas lanternas
consumindo óleo e pano, usando-as como turíbulos que afastavam a névoa e
colocavam em seu lugar uma fumaça de coloração amarelada e de cheiro azedo.
Recuperei
minhas forças, recolhi a lenha e ignorei meu estado sangrento. Entrei novamente
na casa e o senhor Montificus já estava novamente sentado na cadeira que foi
depositada em pé. Seu rosto estava cabisbaixo e ainda escorria saliva e sangue,
misturados a lágrimas. Alimentei a fogueira, atiçando com um pedaço de ferro
torto e me pus de pé, pronta.
̶
Acho que o ar da noite lhe fez bem, senhorita. Gostaria de segurar o senhor
Montificus novamente?
Eu
fiz. Segurei-o com força, preparada para mais uma dose de sangue e sofrimento.
Daqui dispenso a narração dos demais sete puxões e riachos de sangue. O
problema, claro, era muito maior do que a simples extração de um dente. Assim
que a remoção ocorreu, pude notar os responsáveis pelo mau cheiro que exalava
da boca do senhor Montificus: pequenas larvas dos mosquitos que transitavam no
pântano perto de sua casa. Elas devorariam os dentes e gengiva do infeliz, além
de sua vida, é claro.
O senhor Maelstrom estirou o corpo
frio e seco de Montificus sobre a mesa e aplicou-lhe uma seringa atada a uma
bolsa de sangue que, após alguns rápidos experimentos, ele deduziu que seria a
ideal. Eu tomei o lugar do paciente, em sua cadeira, debruçada como uma
derrotada, os cabelos duros de sangue coagulado.
̶
Fique feliz, senhorita. O senhor Montificus ficará bem após alguns dias de
descanso. As pessoas daqui são incrivelmente fortes contra doenças, isso é o
que se espera de um povo tão assolado pelas pragas. Você fez um ótimo trabalho.
Eu
olhei para o senhor Jackaby e queria, naquele momento, disfarçar o meu cansaço
com alívio. Eu estava feliz que tivesse acabado, mas estava ainda mais feliz com
o resultado.
̶
Você queria me falar algo, lembra-se? Ficaremos aqui durante alguns minutos,
fique a vontade para começar.
Até
aquele momento havia me calado. Palavras não pareciam se encaixar em qualquer
instante daquela noite, a minha boca ficou ressequida, enclausurada por cascas
de sangue coagulado. Senti o gosto terrível de sangue quando minha própria
saliva voltou a trabalhar.
̶
Precisamos de alguém como você, senhor... hospitalário. Alguém com suas
habilidades ímpares.
̶
Como as habilidades brutais e ultrapassadas de um médico como eu poderiam ser
mais eficientes que os poderes divinos de uma sacerdotisa?
̶
Uma praga tão maldita quanto a das ilhas de Maldûn vêm se espalhado pelo reinado.
Os orcs são os donos dela. Nenhuma magia divina consegue dissipar o seu
contágio e não há uma forma eficiente de preveni-la. Apenas um ofício sangrento
como o do senhor poderia arrancar as pústulas e mazelas provocadas por essa
praga. Nas terras do reinado, precisamos dessas técnicas brutais para conceder
alguma esperança aos inocentes que estão morrendo devido a essa praga. Um navio
chegará ao cais amanhã de manhã, como foi acordado, peço que aceite a proposta.
Jackaby
Maelstrom adotou um silêncio estranho em reação à minha proposta. Ficou assim
por tanto tempo que resolvi insistir:
̶
Senhor Maelstrom... hospitalário, o senhor consegue entender a sua importância
no reinado?
̶
Eu reconheço que se a senhorita fez essa viagem perigosa até aqui, deduzo que
tentaram todas as opções, tanto mágicas quanto mundanas, mas, infelizmente, não
estou disposto a abandonar a ilha.
A
resposta não podia ter me surpreendido mais. Até aquele momento, imaginei que,
para Jackaby Maelstrom, viver naquele inferno gelado era uma prisão, que ele
não tinha formas de voltar para casa, mas, agora, sei que ele já podia ter
feito isso a uns bons anos. Ele não queria.
̶
Os habitantes desse vilarejo, minha senhorita, eles ainda são humanos e vivos.
Eles sofrem com essas doenças e com as mortes provocadas por elas mais do que
qualquer indivíduo das terras limpas já sofreu. Eu não posso abandoná-los, você
me entende? Eu não posso deixá-los... sozinhos.
A
frustração enterrou-se firme no meu peito, não pelo fracasso do recrutamento,
mas porque, até aquele momento, não havia percebido que a minha proposta era tão
egoísta. Eu, uma devota de Amaryllis, deixei de pensar na minoria, nestes
inocentes que nasceram para sofrer.
̶
Sinto muito, sacerdotisa. De qualquer forma, considere sua missão completada.
Escreverei, eu mesmo, uma carta explicando que recusei educadamente a proposta.
O
hospitalário, então, começou a guardar seu equipamento na maleta, enquanto eu
absorvia aquela situação. Estávamos prestes a sair daquela casa quando resolvi
fazer minha última pergunta:
̶
Senhor hospitalário, há algo que eu possa fazer para ajudar esse povo?
A
resposta dessa pergunta é a razão por que escrevo essa carta e também o porquê de
ela estar sendo escrita após esses oito meses, que foi a quantidade de tempo
que estimei ao senhor Lancan para sua próxima visita às ilhas.
Eu
resolvi ficar. Resolvi aprender com o senhor Jackaby Maelstrom, o hospitalário
e, após esses oito meses, continuarei aqui. Escolhi não abandonar o vilarejo da
névoa perpétua.
Quanto
ao próprio Jackaby, é ele quem deve ter lhe entregado esta carta. Suas técnicas
no ramo da medicina são avançadas e seu entendimento peculiar. As ilhas de
Maldûn não oferecem mais desafios a ele e, mais do que nunca, ele precisa de
evolução e do afastamento desse inferno. Tratem-no com a hospitalidade que ele
me ofereceu nessas terras, trate-o com a hospitalidade digna do templo das
madres. O senhor que lhes envio é, talvez, um dos pedaços de esperança que
nossa terra limpa precisa.
Na
mesma noite em que os acontecimentos narrados nesta carta aconteceram, o
hospitalário e eu saímos daquele casebre a fim de enfrentar a escuridão mais
uma vez, de volta para a casa que agora permaneço. Jackaby recolheu sua
lanterna do gancho localizado em frente à porta do senhor Montificus, abriu um
pequeno compartimento do acessório e libertou a mariposa.
Ela
alçou o voo da liberdade, bateu suas asas para mais alto e distante, depois,
desapareceu em meio à névoa da ilha.
FIM
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