A lâmina das bruxas

[Este conto é a continuação de O fogo bruxuleante 📖]

Como previsto, Helena hasteou a flâmula esmeralda quando entramos no território de Citadel. O tecido de seda drapejou socado pelos fortes ventos e virou uma bandeira fina e longa de aproximadamente três metros, esvoaçando pelo céu da planície do rei Aisenn e mostrando que estávamos ali pacificamente.

Não me surpreende que a amazona eólica esteja conosco por dois motivos: o primeiro é que ela também é um dos membros da Távola de Azran, e segundo porque ela tem a voz de comando para exigir o auxílio das águias gigantes. Estávamos cavalgando o vento, protegidos pelas penas douradas dessas criaturas celestiais.

Permissão para uma nota: não há no mundo alguém que tenha envelhecido tão bem quanto Lady Helena, a líder dos cavaleiros eólicos. Beirando seus sessenta anos, ela ainda mantém o porte de guerreira com a vantagem de ter desenvolvido um olhar de visível sabedoria adquirido após tantos anos de experiência em guerra. Ela sempre foi digna das canções dos bardos 📖 e ainda continua sendo.  

Lady Helena é a capitã dos cavaleiros eólicos, uma guarda de guerreiros que cavalgam águias gigantes. Ela serve à Azran a mais de quatro décadas. Sua coragem somada à sua beleza foram responsáveis por encantar bardos e menestréis que compuseram conhecidas canções e versos sobre ela. Atualmente, a beira de seus sessenta anos, Lady Helena ainda mantém traços de sua beleza juvenil, além do porte de uma sábia guerreira. 
Ikea é o nome de sua águia. Todos os cavaleiros eólicos que se tornem dignos têm uma águia gigante como companheira e Lady Helena atraiu a fiel amizade da filha de Qüeen, a rainha dos ventos e senhora do ar, a montaria alada de nosso honroso Lorde Irun.

- Porque não descemos agora e concluímos o trajeto a pé? – Ulric reclamava. Ele também não gostava de qualquer coisa que voasse (especialmente se fosse gigantesco como uma águia gigante). Apesar de termos improvisado uma sela aprimorada – duas cordas amarradas interligando o anão com a águia gigante que ele cavalgava – ele ainda não se sentia seguro.

- Desceremos em frente à Floresta dos Mil Sussurros, pois foi assim que combinei com as águias gigantes! – gritou Lady Helena emoldurada de armadura metálica e manto branco esvoaçante.

Talvez, meu caro leitor, você esteja se perguntando porque não usamos as águias gigantes para nos deixar exatamente no lugar onde supostamente está o cárcere de Rasak. Existem duas respostas simples para essa pergunta: primeiramente, não sabemos qual o lugar exatamente, Alexia nos disse que a lâmina das bruxas poderá rastrear a convenção do Fogo Bruxuleante quando estivermos na Floresta dos Mil Sussurros, segundo, nunca na sua vida permita-se usar outra entrada para essa floresta a não ser o arco arbóreo que faz fronteira com o reino de Citadel. Dizem que os anciões – sejam eles quem forem – não aceitam invasores que ofendam a lei da antiga floresta e, aparentemente, usar o arco arbóreo como entrada é uma dessas leis.

Quando finalmente chegamos, Lady Helena despediu-se de Ikea recostando sua fronte à cabeça da águia gigante e contemplando alguns segundos de silêncio. Os cavaleiros eólicos possuem forte ligação com suas montarias. Eles são capazes de sentir o que elas sentem e se comunicar apenas através do silêncio. Ikea não voaria para muito longe, nem qualquer outra das águias gigantes que nos trouxeram até ali. Elas esperariam o nosso retorno, caso haja um.

Em frente ao arco arbóreo estávamos eu, Lady Helena, Ulric e uma Alexia deslumbrada, consultando a lâmina das bruxas.

- O que ela tá fazendo? – perguntou Ulric tentando sussurrar, mas sua voz não havia sido feita pra isso.

- Consultando a mãe – respondi.

Lady Helena armou-se com sua lança de mithril e um escudo com a insígnia da águia – o brasão de Azran. Eram arma e escudo mágicos, encantados pelos poderes das águias celestiais. Uma curiosidade: as águias vivem no alto das montanhas de mármore, na Espinha do Mundo, em um lugar denominado o Ninho do Vento. Elas servem às causas humanas a muito tempo. Vários cavaleiros eólicos existiram e morreram em guerra ou de causas naturais e seus corpos são enterrados em câmaras especiais escavadas no Ninho do Vento, uma região formada por paredões íngremes em cuja extremidade superior pode-se encontrar os ninhos das águias gigantes. Vistos ao longe, os picos são arranha-céus prateados, na forma de uma lança monolítica cravada na montanha. Foi Ikea quem presenteou Lady Helena com seu arsenal – a quem pertencia o arsenal anteriormente, essa é uma história que eu pretendo saber e, possivelmente conhecerei no final desta jornada.

Alexia retornou de seu diálogo espiritual e encontrou os outros três à espera, dois preparados para enfrentar a floresta mística e outro ansioso por conhecer mais sobre o local.

- Minha mãe revelou-me que a convenção usa magias que a protege contra rastreamento arcano, por isso devemos encontrar alguém que conhece bem a floresta.

- E você sabe quem poderia ser esta pessoa? – perguntei, sabendo que qualquer fantasma da floresta não iria simplesmente aceitar nos guiar até as profundezas da região. Provavelmente aventurar-se no além ofenderia os anciões.

- Alguém que não é nativo da Floresta dos Mil Sussurros, mas que ainda assim possui entendimento suficiente para manter-se nesse lugar por período indeterminado – ela fez uma pausa e nesse momento entendi que o que ela estava prestes a revelar poderia estragar a decisão positiva de aceitarmos essa jornada - Ele se chama Kairos, é um patrulheiro dos espíritos e, talvez, não por coincidência, o encontremos nesta floresta.

Eu conhecia o título de patrulheiro dos espíritos, um tipo de guardião capaz de ouvir a floresta como um todo – das árvores ao vento, dos pássaros aos vermes e todos os espíritos naturais que mesmo um arcano de Mordae desconhecia – eu só conheço um indivíduo com essa peculiaridade. O nome dele não é Kairos. Presumi que Alexia estava mentindo para nos convencer a entrar na floresta. Olhei para ela com o mais afiado dos olhares inquisitivos e ela disfarçou muito bem o flagra... ou talvez ela realmente não estivesse mentindo.

- Por alguma razão este nome não me é estranho – revelou Lady Helena e eu tive que concordar com ela. Kairos era um nome familiar e eu culpei minha memória por não conseguir lembrar quem era o sujeito.

- Também tenho a mesma impressão, milady – concordou Ulric.

- Vocês não se recordam por causa da magia das fadas, mas todos já ouviram alguma história sobre Kairos, o metade planta. A lâmina das bruxas me deixa imune ao esquecimento ilusório, talvez ela possa ajudá-los quanto a isso, mantenham suas mentes limpas – Alexia empunhou a lâmina das bruxas em nossa direção e o fogo azulado emanou do vidro negro.

- Nem pensar garota! Prefiro ficar esquecido mesmo! Nada de magia negra na minha mente! – ralhou Ulric. Alexia não ligou, concentrou-se em mim e Lady Helena.

É difícil descrever a sensação de ser alvo do fogo bruxuleante. Na verdade, tenho certeza que a essência da lâmina das bruxas sequer me tocou, porém, eu senti seu hálito soprando em meu rosto. Minha mente se expandiu e a figura de Kairos me veio à cabeça.

- É claro! Kairos, o demente! – não deveria ter falado isso... Obviamente não soou bem, especialmente para Ulric – Kairos é um druida devoto de Hecate, a deusa bruxa e também a patrona dos loucos. Em Chattur’gah, lugar no qual suponho que Kairos tenha nascido, Hecate é uma deusa oposta a Zoe 📖, o deus-fera e patrono dos bárbaros daquela selva. Havia bárbaros devotos de Hecate, eles se chamavam de dentes-serrilhados e, sim, eles serrilhavam os dentes de forma a parecerem piranhas humanas. Quando um desses bárbaros entra num combate, se entrega imediatamente a uma fúria insana a qual eles acreditam ser uma bênção de Hecate. O mais estranho é que Hecate nunca foi uma deusa expansionista, preferindo ser venerada às escuras.

Kairos era demente porque se comportava como um. Suas decisões são estranhamente aleatórias, o que o torna impulsivo e perigoso. Muitas histórias cercam a lenda de Kairos, a mais conhecida diz que ele morreu a muito tempo – causa da morte: desconhecida - e que a própria Hecate enterrou sua cabeça em Chattur’gah. Alguns dias depois, um pequeno broto nasceu de seu sepulcro para mais tarde tornar-se um homem feito de carne e madeira – por isso a alcunha de meio planta – desde então ele compartilha da loucura exigida pela sua deusa. A magia das fadas, conforme Alexia me disse, havia nos feito esquecer do homem-criatura. Agora, entretanto, eu sabia com o quê nós estávamos lidando.

- Kairos é o xamã das almas ensandecidas – falou Lady Helena, sabiamente – porque acha que devemos confiar em alguém como ele?

- Porque minha mãe disse.

A essa altura, Lady Helena já sabia da proximidade de Alexia e o espectro de sua mãe. Sabia também que esse espectro estava contido na lâmina das bruxas, receptáculo o qual Alexia não se permitia largar nem durante o sono.

- Isto é suficiente garotinha? – reclamou Ulric – vai nos levar até um maluco para ficarmos malucos como ele? – Ulric era defensor da ideia que dizia: se uma pessoa sã passa tempo demais com um louco, se tornará um louco maior ainda.

- Quem vai nos levar é a lâmina das bruxas.

Eu tive que conter os palavrões de Ulric quando ele escutou essa afirmação. Eu tinha vontade de saber até onde isso iria nos levar, talvez por isso Alexia tenha me recrutado: um obsessivo por mistérios – eu realmente gosto dessa minha característica.

Enfim entramos na Floresta dos Mil Sussurros – antes tivemos que ouvir alguns minutos da rabugentice anã de Ulric que pôs em pauta a falta de consideração que tínhamos para com a opinião dele – o arco arbóreo, a princípio, parecia convidativo, com dezenas de árvores abraçadas umas a outras e um cintilante brilho verdejante que parecia emanar das gotas de orvalho que ainda pingavam das copas altas. A passagem era larga, por onde seguíamos apenas os galhos e as folhas se tocavam e criavam uma cúpula que nos protegia do sol de qualquer hora, apenas filetes de raio solar conseguiam ultrapassar nossa cobertura, mas era o suficiente para deixar a floresta bem iluminada.

Como eu disse, toda a beleza de nosso caminho pertencia ao princípio de nossa jornada, aos poucos todos nós passamos a ficar incomodados com a distância da trajetória. Sentimos como se estivéssemos em um túnel infindável e no fundo deste uma voz irreconhecível e fantasmagórica ora nos chamava, ora nos tentava convencer a dar meia volta e retornar. Eu não sei o que meus aliados imaginaram, mas eu supus que estávamos na garganta de alguma criatura imensa e logo chegaríamos ao seu estômago, então seríamos derrotados pelo seu organismo. O mais impressionante nisso tudo é que nós, os aventureiros, tínhamos escolhido, por vontade própria, sermos devorados pela coisa.

Eu olhei para os demais e eles pareciam atônitos como eu, porém, ninguém desistiu, eles apenas se esforçavam para dar o próximo passo, então, resolvi não me aborrecer com o que estava sentindo e quanto mais andava, mais o som que ecoava das profundezas parecia com o bater de um coração gigante. Então, anoiteceu.

- Por mais quanto tempo continuaremos andando? – reclamou Ulric. Os anões gastam mais energia em longas caminhadas.

- Não mais, por enquanto – decidiu Lady Helena.

- Temos que continuar. Minha mãe tem pressa!

- A sua mãe é um fantasma, ela não precisa se preocupar com dores nos pés – foi a resposta de Lady Helena, direta como um general deve ser. Eu a respeito demais para ter de interromper aquele momento e comentar que falar a palavra “fantasma” na Floresta dos Mil Sussurros não é algo auspicioso.

Nós paramos na primeira clareira. Ulric e Helena recolheram um pouco de lenha – apesar dos meus esforços para convencê-los a não fazer isso, pois a floresta talvez não gostasse do fogo, até tentei convencê-los que tinha as magias certas para aquecê-los durante a noite, porém nenhum dos dois pareceu gostar da ideia. Ulric me disse que uma fogueira acesa fazia muito mais do que aquecer, ela também mantinha as feras e os espíritos longe e, dada as circunstâncias, presumi que uma fogueira realmente era uma ótima ideia – enquanto isso, Alexia manteve-se afastada, vez por outra encarando o horizonte escuro do caminho que prosseguiríamos no próximo dia, como se alguma coisa falasse com ela através das trevas.

- É uma garota estranha, Theomund – comentou Lady Helena – vejo que seus olhos não param de fitá-la. É perigoso apaixonar-se por uma bruxa.

- Quê? – estava olhando para Alexia fazia algum tempo e nem notei como isso soava estranho. Tentei disfarçar o máximo que pude, interrogando a citação de Helena, como se eu estivesse surpreendido pela sua suspeita.

- Me incomoda o fato de achar que estamos sendo liderados por essa garotinha franzina e filhinha da mamãe - rosnou Ulric, cutucando a fogueira apenas para provocar os estalos da madeira e ver as fagulhas flutuarem e desaparecerem na escuridão.

- Ela não é tão nova quanto você pensa, Ulric – expliquei – ela tem cento e oitenta e dois anos – pois é, meu caro leitor, eu falei que sabia sobre a história de Alexia.

- O quê!? Que diabo essa bruxa invocou para fazer o pacto? Diga-me algo que mude a minha vontade de esmagar a cabeça dessa criatura usando meus martelos como uma prensa, Theomund! – Ulric já me contou muitas versões de mortes que ele mesmo provocou. Acho que ele considera isso uma arte.

- Basta uma: se não contarmos com a ajuda dela, não encontraremos Rasak – era simples, Ulric tinha que entender.

- Já lutei com aliados vindos da Floresta dos Mil Sussurros. Eles não são indivíduos pretensos a maldade. Acho que os fantasmas poderiam nos ajudar, caso nos apresentássemos e divulgássemos nossas intenções – Lady Helena tinha alguma razão nisso, mas, de alguma forma eu sabia que para encontrar Rasak nós deveríamos quebrar algumas das leis da floresta. Qualquer habitante dessa região iria nos impedir de insultar os anciões e eu estava disposto a tudo.

- Rasak é um fantasma da Floresta dos Mil Sussurros e, até onde sei, seus irmãos não fizeram nada para resgatá-lo do cárcere das bruxas, portanto, não acho que eles vão nos ajudar a concluir nossa missão – era uma explicação válida. Lembro-me de ter pensando isso repentinamente, naquela hora. Ergui-me e resolvi falar com Alexia.

- Aonde você vai, Theomund!? – reclamou Ulric quando percebeu exatamente o que eu iria fazer.

- Tentar saber mais sobre tudo e não somente julgar sem ter certeza – eu raciocinei depois que a minha resposta havia sido um pouco ríspida, mas de qualquer forma, nenhum de meus companheiros me impediu de fazer o que eu tanta ansiava.

Alexia sequer retribuiu o olhar quando percebeu minha aproximação.

- O que sua mãe te diz? – por alguma razão eu sabia que esta era a pergunta chave.

- Que os fantasmas da floresta vão tentar nos impedir, mas que a lâmina das bruxas vai arruinar suas tentativas.

- Quais são os poderes da lâmina das bruxas?

- Eu não conheço todos. Presumo que eu nunca vá conseguir fazer isso. Ela é como um deus, Theomund. A gente não sabe quais são os limites divinos.

A lâmina das bruxas foi forjada pela Convenção do Fogo Bruxuleante e está em posse de Alexia Vinland, a senhora da Torre de Necromancia. Seus poderes são ocultos e veementes. Acredita-se que essa espada longa trancafia a essência de um ser que pode ser qualificado como divino, além das almas de dezenas de bruxas que um dia participaram da convenção responsável por criá-la.

Essa resposta foi suficiente para manter-me estático, perdido em pensamentos, durante muito tempo. A pausa parece não ter agradado Alexia e ela finalmente disse-me algo:

- Cento e oitenta e oito.

- O quê? – convenhamos que foi algo bem aleatório.

- Eu tenho cento e oitenta e oito anos. Você errou por seis, Theomund.

Eu esbocei um sorriso sincero e tenho a impressão de ter recebido um de volta.

- Mas como isso é possível? Quero dizer, eu sei que você é uma necromante e que ludibriar a vida e a morte é sua especialidade, mas você me parece tão humana.

- Sou humana. Eu viverei a soma das idades de todas as bruxas que a lâmina ceifar.

- Por isso você caça bruxas? Para alcançar a imortalidade?

- Não. Essa é apenas uma mera recompensa pelas minhas vitórias. O que estamos fazendo aqui é verdadeiro, Theomund. Eu quero eliminar a convenção do fogo bruxuleante. Nem minha alma, nem a alma de minha mãe, descansarão em paz enquanto isso não acontecer.

Fiquei em silêncio, mas na minha mente o primeiro pensamento foi a voz de Ulric perguntando: “Uma bruxa tem alma?”. Alexia parecia ter uma.

Quando me ausentei e sugeri que ela dormisse um pouco, ela disse que não precisava e que a lâmina das bruxas não a permitia ficar exausta. Escrevi essas anotações ainda antes de dormir, o fogo resistia bravamente aos sussurros da ventania florestal e quem não resistia ao lugar era eu. O sono veio rápido.

[Continua em Um sonho sussurrante 📖)

Postar um comentário

0 Comentários

Close Menu