O Fogo Bruxuleante

- Diga onde ele está ou arrancarei a sua cabeça, prostituta do demônio!

Foi assim que Ulric tentou convencer a bruxa da Torre de Necromancia a revelar onde estava Razak, o líder da Ordem do Arco.

- Suponho que você não deve saber, velho anão, que arrancar a minha cabeça não será o suficiente – as órbitas de Alexia eram de puro mau olhado, a necromancia estava impregnada em cada nuance de sua aura.

Ulric não se sentiu intimidado. Talvez porque confiava demais na resistência natural que a sua raça possuía, talvez por ignorância. Seus dentes rilhavam ocultos pela volumosa barba branca. Ulric não tinha somente um martelo ameaçador em mãos, mas dois, dois pesados e intimidadores martelos de guerra anão. Aquelas não eram as únicas armas que o anão possuía. Aquelas eram as armas do momento. Meu amigo era dono de um arsenal composto de armas notoriamente maciças e deslumbrantes. Trabalho da raça. Para Ulric, aquele seria apenas mais um dia de andança matinal nos corredores do castelo de Brastav e aquelas coisas pesadas em suas mãos era só um par de amigos que compartilhavam a mesma motivação de Ulric, caçar e matar magos – por incrível que pareça isso não me ofende nem um pouco – foi apenas conveniente que ele estivesse com esses martelos quando encontramos a bruxa.

Ulric Halgran, um dos líderes da távola de Azran. O anão é comandante da infantaria a mais de cem anos, é um dos maiores estrategistas táticos conhecidos se nos referirmos à batalhas de campo. Possui um arsenal gigantesco - um forte foi criado em Brastav apenas para comportar sua compulsão pela forja de armas e armaduras. Apesar de viver com os humanos a muito tempo, Ulric pouco se interessa pelas questões políticas dos homens.

- Ulric, ela não é uma negligente. Está marcada e, mais do que isso, ela é uma das senhoras de Mordae – expliquei ao meu amigo nervoso.

- Senhora? Esta garota é uma ninfeta! – ela é realmente jovem ou, pelo menos, aparentemente jovem. Aquela era Alexia Vinland, da Torre de Necromancia, uma das líderes arcanas que compunha a magocracia de Mordae. Eu não me surpreendi com a desconfiança de Ulric. Ela era demasiado jovem e, a não ser pela aura necromântica que emanava dela– e que só eu ali podia sentir – ela estava longe do estereótipo dos necromantes.

Alexia Vinland é a senhora da Torre de Necromancia do reino arcano de Mordae. É a governanta mais jovem e também a mais recente a ser coroada senhora da torre. Seus poderes necromânticos parecem estar intimamente ligados a lâmina das bruxas, uma espada de vidro negro que contém grandes poderes arcanos além do cárcere de sua própria mãe. Apesar de ser considerada uma bruxa, ela as caça com o intuito de eliminá-las através do toque da lâmina das bruxas.

- Eu não me acostumo com vocês, humanos. Como pode alguém tão jovem ser digno de liderar uma terra? – ignorei a relutância de Ulric, mas no fundo concordava com ele. Os anões sempre tiveram fama de rabugentos e rancorosos, porém, contraditoriamente, seus anciões são alguns dos seres viventes mais sábios que alguém teria a honra de conhecer. Talvez saber demais seja a característica responsável pelo estereótipo esbravejante dos anões.

Como disse antes: concordo com a relutância de meu amigo, mas peco ao fazer isso. Sou jovem e presunçoso o suficiente para reconhecer que se eu governasse uma terra, ela estaria em boas mãos.

- Você estava falando sobre Rasak, o cego... – resolvi dar continuidade à conversa.

- Sim. Rasak, o líder da Ordem do Arco, desaparecido no final da Quarta Era e que vocês desistiram de encontrar a algum tempo.

- E o que te leva a crer que sabes qual a localização dele neste exato momento, depois de tanto tempo? – era a pergunta mais óbvia que deveria ser feita. Rasak era o líder da Ordem do Arco, uma guarda de arqueiros treinados para a guerra. Rasak era o responsável por esse treinamento. Ele era uma figura exótica, não somente pelo fato de ser um arqueiro cego, mas também pelas excentricidades que ele carregava, provavelmente distintas de sua cultura forasteira. Ele nasceu na Floresta dos Mil Sussurros, uma região relativamente distante de Azran. A história de como ele tornou-se o líder da nossa Ordem do Arco, eu desconheço.

Rasak, o cego é um dos líderes da távola de Azran. Ele está desaparecido desde o final da Quarta Era e não há informações sobre seu paradeiro a muito tempo. Rasak é cego, porém, um hábil arqueiro. As histórias afirmam que ele é capaz de enxergar de forma diferente, sentir o perigo de forma sobrenatural.  Essa habilidade é fruto de seu treinamento na Floresta dos Mil Sussurros, um lugar místico onde outros vigilantes habitam e protegem os segredos guardados no interior da floresta.

Mais importante para mim foi coletar informações sobre os fantasmas da floresta. Falo de fantasmas não em seu sentido literal, mas sim para anunciar a alcunha dos caçadores e sentinelas que vivem na Floresta dos Mil Sussurros. Ouvi histórias que eles nascem da própria floresta, brotando do solo como uma planta faria e que suas existências estão vinculadas ao lar. Se a Floresta dos Mil Sussurros fosse destruída, os filhos dela adoeceriam e definhariam até morrer. Isso explica porque eles protegem o lar com a própria vida. Lugar perigoso de se andar, especialmente em suas profundezas, onde seres ainda mais místicos vivem.

- Mamãe – Alexia respondeu.

Você deve concordar meu caro leitor, que uma resposta repentina e decidida como esta é no mínimo surpreendente. Eu e Ulric trocamos olhares desconfiados. Eu absorto porque sabia a história de Alexia, Ulric porque segurava um riso vexaminoso – ele me explicou depois: “A garota tinha cheiro de leite e ainda era mensageira da mamãe!? Me segurei para não perguntar até que idade ela pretendia mamar nas tetas da madre. Evitei fazer isso porque, talvez, fosse um costume comum entre os humanos. Com os anões a coisa é diferente! Meu pai passou anos sem falar comigo porque eu não lutei contra uma esquadra orc! Eu odeio o oceano e qualquer coisa que possa flutuar nele... especialmente se essa coisa for gigantesca, como uma caravela! Decidi que só enfrento orcs no chão!” – acho que sou o único que tem paciência para escutar as ladainhas de Ulric.

Voltemos à surpreendente resposta de Alexia:

- Sua mãe? – perguntou Ulric, na esperança de ter ouvido errado.

A mãe de Alexia chamava-se Terezza Vinland, ela era uma das líderes da Convenção do Fogo Bruxuleante. Certamente este não é um histórico que alguém são gostaria de divulgar, mas Alexia parecia orgulhar-se dos feitos de sua mãe, por mais macabros que possam ter sido. No passado, a Convenção do Fogo Bruxuleante foi bastante conhecida e temida, atualmente, suas poucas integrantes preferem ficar às escuras na Floresta Cinzenta.

Se bem me lembro da história da convenção – e ao deixar a dúvida no ar, fica subentendido que uma coisa ou outra que vou escrever adiante pode estar completamente equivocada – as bruxas que, mais tarde, formaram a Convenção do Fogo Bruxuleante sabiam da existência de alguma coisa que morava nas entranhas da Floresta Cinzenta. De acordo com raras escrituras, a “coisa” parece ter caído do céu numa noite escura e sua permanência naquela floresta mudou completamente a fauna e a flora do lugar, incluindo os gnomos – é da Floresta Cinzenta onde saíram os primeiros indícios de existência dos svirnefiblins, os gnomos cinzentos. Quanto à vegetação, ela tornou-se pantanosa. O povo daquelas redondezas, porém, nunca deixou de chamar o lugar de floresta – essas bruxas encontraram a coisa que, na verdade, era uma espécie de fogo azulado e bastante vivo, frio como o toque de um fantasma e tão espectral quanto o fogo-fátuo!

Sábias da magia negra, aquelas bruxas nomearam o ser de Fogo Bruxuleante e começaram a venerá-lo. A veneração durou pouco tempo. Durou apenas até o momento que a própria convenção descobriu que poderia manipular o fogo bruxuleante e usá-lo não somente como arma, mas também para desenvolver poderes que eu não me arrisco a tentar descrever. Aquelas bruxas tornaram-se poderosas e atraíram a simpatia de tantas outras. As originais tornaram-se líderes da convenção e uma dessas líderes era a própria Terezza.

Terezza Vinland é a mãe de Alexia e uma das antigas líderes da Convenção do Fogo Bruxuleante. Historicamente ela é considerada uma das primeiras bruxas da Floresta Cinzenta - por isso são nomeadas de bruxas cinzentas. Estas possuem poderes distintos das demais bruxas e parecem se alimentar de uma criatura ou essência sobrenatural que habita as regiões pantanosas dessa  floresta. 

A partir de agora, a história que lhes conto me foi narrada por Alexia Vinland, dias depois de sua visita. Ela me contou e não me pareceu tão romântico ou melodramático quanto eu, provavelmente, vou narrar – é notável o quanto Alexia é incapaz de demonstrar sentimentos, a não ser o do escárnio e o da ironia. Isso ela sabe demonstrar muito bem.

A história de Terezza não tem um final bonito, no entanto, é bastante inspirador. A Convenção do Fogo Bruxuleante manipulou a chama estranha da Floresta Cinzenta e tornou-se poderosa. As bruxas que compunham esta convenção eram diferentes, elas ainda eram bizarras, mas longe de serem descritas como sacos de verrugas e pus como é uma bruxa verde ou anis – as bruxas clássicas. O fogo bruxuleante passou a correr nas veias junto com o sangue das novas bruxas. As proles das líderes demonstravam grande poder mesmo enquanto bebês. Logo, Terezza e as demais líderes da convenção notaram que o fogo bruxuleante era mais intenso e forte em suas crias. Elas temeram serem destronadas e foi por causa desse medo que a convenção tomou uma decisão.

Um artefato! A criação desesperada e perigosa de um artefato que trancafiaria a essência do fogo bruxuleante e o manteria sob o controle das originais líderes da convenção. À primeira instância, a ideia não foi vista com bons olhos: um artefato carregaria todo o poder da convenção, então, qual das bruxas seria digna de portá-lo? Elas certamente levaram em conta que cada uma das integrantes da convenção seria ardilosa o suficiente para tentar trair umas às outras. A ideia que sanou esta questão veio da própria Terezza.

As líderes da convenção iriam enfeitiçar um homem, um guerreiro que seria forte e leal, preso a dominações conjuradas por todas as representantes do fogo bruxuleante. O guerreiro, é claro, jamais teria as capacidades sobrenaturais exigidas para controlar todas as habilidades concedidas pelo fogo das bruxas, ele seria apenas um guardião, sujeito às leis ditadas pela convenção durante um ritual realizado com a presença unânime das líderes.
O homem escolhido foi Randal Braveheart, um jovem paladino que caiu em perdição por causa dos feitiços das bruxas. Randal foi capturado e mantido em cativeiro pela convenção que, dia após dia, alimentava seu coração com dúvida e medo. O jovem tentou resistir aos encantos durante muito tempo, mas finalmente perdeu a fé e com ela seus poderes, tornando-se o alvo perfeito para o pacto das bruxas.

Foi durante uma noite de contemplação da lua cheia que as bruxas se reuniram para torná-lo o guardião e trancafiaram o fogo bruxuleante em uma espada longa que, dali em diante, tornou-se o artefato conhecido como a lâmina das bruxas. A espada atualmente é posse da própria Alexia, um artefato poderoso que provavelmente está nas mãos erradas.

Você deve estar se perguntando o que há de romântico nessa história. Bem, aqui está a versão sugerida por Alexia: da mesma forma que os feitiços de uma bruxa podem atingir o coração de um guerreiro, o bom coração de um paladino pode afetar o coração de uma bruxa. Terezza se via caindo na armadilha do amor cada vez que dialogava com Randal na tentativa de corrompê-lo. Certa noite os dois se entregaram aos prazeres carnais e esse instante foi o responsável pela chama desconhecida que acendeu no peito de Terezza.

Randal Braveheart foi um antigo paladino de Valerie, a deusa da inspiração. Ele foi capturado pelas bruxas da Convenção do Fogo Bruxuleante e torturado com a intenção de ser corrompido. As bruxas tinham planos para ele.

Randal e Terezza tramaram contra o resto da convenção com a intenção de sustentar o sentimento que os dois compartilhavam. Supostamente, após ser iniciado no pacto com as bruxas, Randal se tornaria uma marionete da convenção, um ser incapaz de agir conforme a própria vontade. Terezza não queria perdê-lo e, por isso, pôs a perder todos os feitiços conjurados sob o paladino pelas demais bruxas da convenção.

Quando a noite do pacto chegou e o fogo bruxuleante foi trancafiado na espada, após a permissão de Terezza, Randal ergueu a lâmina das bruxas e ceifou a vida das líderes enquanto protegia sua amada. O preço da traição, entretanto, foi alto demais e Randal acabou por ser consumido pela chama de sua lâmina. Terezza passou a existir sozinha, caçada pelas crias das líderes de sua própria convenção e tornou-se portadora da lâmina das bruxas. Seu coração, convertido pela boa alma de Randal, impediu que ela usasse o artefato para o mal e esse juramento tornou-se ainda maior quando Terezza sentiu o fruto do amor entre ela e o paladino em seu ventre.

O bebê era Alexia, a feiticeira que herdou a lâmina das bruxas e aquela que estava prestes a revelar a localização de Rasak para mim e Ulric.

- Suponho que você tenha preparado um discurso muito maior do que uma mera palavra para nos convencer– sugeri curioso.

- Não deveria ser necessário. Sou a senhora da Torre de Necromancia e Mordae é aliado de Azran, não tem por que querer confundi-los, mas posso dar maiores informações. Minha mãe é um espectro. Ela fala comigo e somente comigo, acredito que este é um dos poderes da lâmina das bruxas.

- Lâmina das bruxas, o que é isso garotinha? – perguntou Ulric. De certo ele estava completamente perdido no assunto, mas isso não o incomodava. Ulric dá  pouca importância às histórias contadas pelos humanos – ele as considera entediante – mas compartilha da mesma paixão dos anões por armas e armaduras e o nome da espada que Alexia naquele momento desembainhava era de seu interesse.

- Esta é a lâmina das bruxas e a história dela é longa demais para ser apresentada agora, durante nossa negociação – ela explicou.

- Negociação? – me surpreendi, até aquele momento Alexia parecia apenas interessada em compartilhar sua informação.

- Isso mesmo. Eu não sairia de minha torre caso fosse desnecessário. A localização de Rasak está diretamente ligada à Convenção do Fogo Bruxuleante.

- E porque isso te interessa?

- Porque foi esta convenção a responsável por matar minha mãe. Ela deseja vingança.

- Um espírito vingativo? Você sabe que não pode dar ouvido a espectros, não é? Suas mentes etéreas não funcionam de acordo com as leis do mundo material – expliquei e me senti ridículo ao tentar ensinar sobre espíritos e espectros para uma necromante de alto porte. De qualquer forma, ela ignorou a insensatez.

- Minha mãe não é um espírito qualquer. A alma dela está vinculada à lâmina das bruxas, nenhuma injúria alcançou a mente etérea dela.

- Pelo que sei a lâmina das bruxas também tem outras almas vinculadas a ela – fiz questão de lembrá-la.  

- Você fez suas pesquisas, Theomund. Não é a toa que você se tornou o senhor dos arcanos de Azran tão precocemente – percebi que havia certa manipulação em seu elogio, mas existem manipulações tão bem aplicadas que não existe outra saída a não ser cair nelas – em termos de habilidades prodigiosas, nós não somos tão diferentes. Creio que você teve de enfrentar o desdém dos mais velhos, assim como eu.

Ela definitivamente estava certa.

- Seus joguetes são desnecessários. O que você veio nos propor é a possibilidade de resgatar um amigo – pronunciei esta última palavra com certo receio, pois eu nunca havia visto Rasak na minha vida, sabia, entretanto, que ele era alguém de importância para o reino, alguém que deixou saudade. Ulric costumava citar o nome do arqueiro constantemente enquanto narrava uma de suas jornadas – a escolha que devemos tomar é aceitar sua proposta – eu falei mostrando confiança. Para mim, se naquele momento Alexia acreditasse que eu havia caído na sua suposta manipulação, seria uma vantagem.

Ulric não gostou nada da minha decisão. Fiquei curioso para saber por que o anão não ralhou comigo ou reclamou algo como “você não toma as minhas decisões!”, ao invés disso, reduziu sua indignação a um simples bufar. Suspeito, como disse anteriormente, da sabedoria dos anões. Ulric ficou quieto na hora certa, repousando ambos os maciços martelos no chão, mas não os separando da firmeza de seu punho.

- Rasak caçou bruxas. Caçou e as matou com flechas certeiras no meio da cabeça ou profundas no coração. Praticou seu ofício tão bem que seu nome ecoou alto suficiente para clamar pelo ódio de todas as convenções formadas por elas. Ninguém ofende uma bruxa e resiste por muito tempo. Elas são as criaturas mais vingativas que vocês poderão encontrar em suas jornadas. A ira de uma convenção pode ser rápida e efetiva como uma brasa queimando uma folha seca ou lenta e cruel como um incêndio que se espalha numa floresta verdejante. Rasak atraiu o segundo tipo de vingança.

- As malditas bruxas se aproveitaram do cansaço que Rasak enfrentava após a luta contra o colosso de Ellidoränne! – resmungou Ulric. Ele referia-se a uma das criaturas gigantescas que assolou a Quarta Era, criaturas tão monolíticas que seus passos partiam montanhas ao meio e suas vozes cortavam o céu com trovões ensurdecedores. Ulric havia participado da luta contra este colosso, este e mais dois. Ele, como ninguém, conta sobre as aparições sempre esporádicas desses seres bizarros que se erguiam apenas para destruir tudo que cruzasse seu caminho. A primeira vez que o ouvi falar sobre os colossos, achei que estava exagerando, então eu vi a carcaça de um desses nas planícies de Azran: uma montanha monumental cujo interior arde com fogo eterno, sempre alimentado por magos para que a imensa criatura jamais retorne à vida. A este lugar os sábios deram o nome de Farol da Chama Eterna, ele é um guia para viajantes boêmios das planícies de Azran, sempre mantendo quilômetros ao redor de si mesmo iluminados como que por uma imensa fogueira. O farol também é lar de Shantakhaûl, um dos dragões metálicos que sobreviveram à Quarta Era.

- Elas fizeram muito mais do que aproveitar a má sorte daquele arqueiro. Foram as bruxas que criaram aquela luta – a revelação me acertou em cheio, como um soco no estômago (parece uma reação bem exagerada, mas, quando se é mago, o conhecimento é verdadeiramente poder).

- Você está nos dizendo que as bruxas despertaram o colosso de Ellidoränne? – eu definitivamente estava embasbacado.

- Parece que essa é uma das habilidades do fogo bruxuleante... – ela explicou.

- O que diabos é “fogo bruxuleante”? – indagou Ulric. Ele havia começado a se interessar pelo assunto quando notou a minha reação pouco contida.

- A história é longa. O fogo bruxuleante é um tipo de energia mística, a mesma trancafiada na lâmina das bruxas – Alexia tentou ser o mais sucinta possível, mas me olhou com cara de desdém, como se me culpasse por ter um amigo tão ignorante.

- Então, todo esse tempo, o fogo bruxuleante não esteve totalmente contido na lâmina das bruxas? – as dúvidas na minha cabeça giravam e Alexia parecia poder vê-las contornando a minha mente.

- O fogo bruxuleante que a nova convenção usa não é o mesmo de minha mãe. Não é azul, é verde, como o bafo de cocytos – explicou Alexia, citando o nome de um dos nove infernos: um deserto de ares corrosivos e gêiseres ácidos.

- A fenda! – exclamou Ulric. Até mesmo meu desinformado amigo teve astúcia suficiente para deduzir alguma coisa. A fenda é o terror da nossa atualidade. Um tipo de magia conhecida somente pela Mortalha. A Mortalha é uma seita que venera Saulot, o deus lich e senhor das hordas trôpegas. Ulric, Alexia e eu já vimos essa coisa aparecer no céu, bafejando seu ar tóxico e sugando a vida de tudo, como uma roda do tempo que gira muito mais rápido e transforma até mesmo o nada em vazio, cuspindo a morte que anda para devorar aquilo que sobra.

- São somente teorias! – adiantou-se Alexia. Eu percebi que ela supunha muita coisa, mas não a reprimi. É exatamente assim que um teórico deve dar início aos seus estudos.

- As bruxas da Floresta Cinzenta, então, estão se tornando baba yaga? – agora eu queria competir deduções com Alexia. Sabia que poderia chegar muito mais além.

- Elas sempre foram diferentes, não é? – outra suposição da senhora da necromancia.

- Elas sempre foram capazes – concluí. Eu já havia lido muito sobre a Floresta Cinzenta e as estranhas bruxas que vivem naquele vale pantanoso. As anotações que li pertenciam a Sigmund Fawkes, portanto, eram realmente verídicas.

- Adiante mulher, qual é o nosso próximo passo? – Ulric é do tipo “sei pra onde devo ir e quem devo derrotar, então, não perderei mais tempo”.

- Se minhas suspeitas estiverem corretas e se Rasak for metade do herói que me disseram que ele é, ele ainda pode estar vivo – Alexia continuou.

- A dor líquida! – agora a exclamação foi minha.

Devo explicar: dentre as muitas obras de vilania que a Mortalha é designada a realizar, uma delas se destaca e esta seria a criação da dor líquida. Os segredos da criação dessa poção maligna foram desenterrados junto com o Necronomicon, um grimório de magia negra pertencente ao próprio Saulot. A dor líquida não somente fortalece, mas também evolui o indivíduo que a toma para uma forma grotesca de si mesmo, muito mais forte e inteligente. A poção é feita através do sofrimento de inocentes – paladinos e clérigos de divindades bondosas são matérias-primas cobiçadas para isso – o sangue, as lágrimas, o suor e qualquer líquido que o corpo despeja durante sessões cada vez mais audaciosas de tortura, são os componentes materiais para a criação da dor líquida.

- O que isso significa? – perguntou Ulric com ambos os martelos em mãos, como se estivesse pronto para sair correndo num ritmo de marcha incessante até chegar ao responsável por toda maldade.

- Significa que mantiveram Rasak encarcerado e o torturam desde então para fabricarem uma poção através de sua dor e sofrimento – expliquei.

- Maldita magia negra! Isto é mais escabroso que o sangue pustulento que brota das feridas amaldiçoadas dos orcs! Isso não pode existir! Como vocês humanos permitem isso! – a indignação falava mais alto que a razão de Ulric.

- Não permitimos. Lutamos para que este mal seja extinto, mas ele renasce das profundezas do mundo, cada vez mais esperto e forte – não havia necessidade, mas Alexia respondeu ao anão mesmo assim.

- Qual a sua parte nisso, Alexia? – perguntei finalmente.

- A convenção de bruxas, sejam elas cinzentas ou baba yaga, são do interesse da lâmina das bruxas, portanto, também são do meu e da minha mãe. Eu os guiarei até o covil delas onde suponho que seu amigo esteja.

Aquilo estava cheirando a manipulação. Talvez Alexia quisesse somente aliados para partir com ela em uma jornada perigosa demais. Isso, entretanto, não explica o porquê de ela ter escolhido a mim para isso, já que ela é a senhora da Torre de Necromancia e, portanto, sua voz seria mais ouvida que a maioria. Não importa, assenti afirmativamente com a cabeça e aceitei a missão. Ulric também.

Caro leitor, você poderá ler o restante da história nos próximos pergaminhos. Por enquanto, preciso me preparar para uma longa viagem...

Continuação 📖

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