Um prólogo de morte
O Purgatório é o lugar
onde as almas são encaminhadas
para seus planos de
morte. Os espíritos vagam pelo
mundo cinzento de
Veronicca até que suas respectivas
divindades escolham seus destinos.
“Belisar sentiu o vento
cortante nas costas tomar-lhe o fôlego enquanto ele tropeçava pela décima vez e
caía no tapete gelado de neve do reino de Nevaska. Talvez ele houvesse perdido
a noção de tempo, mas se ainda lhe restasse algum resquício de consciência,
saberia que aquele era o terceiro dia de fuga se arrastando pelo inferno de
gelo. Dias atrás ele viajava com um grupo de aliados, uns tipos confiáveis,
especialmente o líder do grupo que, infelizmente, foi o primeiro a ser
capturado pelo toque macabro do necromante.
Depois, caiu a clériga, gritando
para que Belisar e o bárbaro nativo de Nevaska fugissem enquanto houvesse
tempo. Um raio esverdeado e, segundos depois, havia nada mais do que uma poça
de pele e sangue no lugar de sua salvadora. Belisar e o bárbaro correram até o
limite de seus corpos e um pouco mais, então alcançaram o final da caverna de
gelo. Pensaram que eram sortudos, pois haveriam de escapar com vida de toda
aquela perseguição, mas o necromante de pele azulada estava mais perto do que
eles imaginavam.
Houve um silêncio repentino que
obrigou a dupla parar e ficar atenta. Então um sussurro trazido dos mortos
afagou o rosto de Belisar e um toque gelado agarrou seu coração. Não havia mais
controle. Belisar só queria sair da caverna de gelo o mais rápido possível e
nem sequer olhou para trás a fim de analisar qual seria o fim do bárbaro. Ouviu
apenas seus gritos.
Nas próximas horas seus pés
gelaram, mesmo protegidos pelas grossas botas de couro de mamute. Mindinhos
caíram estilhaçados como vidro. Então, Belisar encontrou um paredão de rochas e
se protegeu. Não conseguiu dormir. Viu um vulto o observar nos montes de neve e
fugiu novamente. Assim foram os dois dias subsequentes.
Como havia sido citado
anteriormente: Belisar caiu no chão pela décima vez, porém, houve algo
diferente nesse acontecimento. Ele pôde ouvir uma voz acalentadora
sussurrar-lhe aos ouvidos:
- Belisar, eu consigo
enxergar seu sofrimento. Não tenha medo da morte. Ela é melhor do que este
inferno de gelo.
Um sussurro e Belisar
sentiu lábios quentes encostarem em sua orelha. Ele não reconhecia a voz, mas
lhe parecia agradável. Ele se lembrou de uma história contada por um bardo
qualquer durante sua infância: Aqueles que permanecem vivos em sofrimento
recebem a visita de Veronicca, a deusa da morte. Ela acalentará os últimos
momentos da vida do enfermo encontrando uma forma de provar-lhe que aquele
momento é realmente o seu último. Veronicca não faz isso por bondade, que isso
fique bem explícito. Ela precisa das almas. Precisa que as almas façam a viagem
para seu submundo e que de lá prossigam para onde quer que os juízes da morte
decidam. Ela vê a morte com prazer. Há um tom natural em sua voz que faz o
coração de suas vítimas respeitarem o fim.
E assim, Belisar se
entregou ao inevitável. Sua alma desabou, como se ele estivesse voando muito
alto e seu poder de levitação tivesse cessado repentinamente. Era um ectoplasma
inerte e quase sem consciência. Logo não notaria nem mesmo o pálido insistente
que cobria o submundo.
Vagou lento pelo rio de
águas fracas até sentir alguém lhe puxando.
O sujeito carregava um
sorriso desdenhoso e uma mão cadavérica tão morta quanto qualquer espírito:
- Sua alma é minha!
Sussurrou o necromante. Ele estava
ali, no mundo de Veronicca, como se fosse um caçador indigno de falhas e puxou
Belizar semi-consciente de volta. Belisar abriu os olhos, estava no chão de
gelo, coberto pela neve, mas não sentia frio. O necromante o olhava imperioso:
- Fique de pé, comanda a
voz de Saulot.
E Belisar se curvou e
desajeitadamente se pôs de pé, trôpego. O necromante de pele azulada andou.
Belisar o seguiu."
***
Veronicca e Saulot possuem aspectos
similares, mas dogmas bem diferenciados, para não dizer controversos.
Veronicca, a primordial deusa da morte encaminha as almas para o purgatório num
ciclo de morte e vida incessante. Para ela, almas são importantes. A morte é
importante. A capacidade de manipular almas é digna apenas de seus clérigos e
mesmo assim, estes são recomendados a não abusar desse poder.
Saulot é a morte. Almas são míseras
matérias-prima e elas só servem para alimentar de energia negativa os
mortos-vivos de sua horda trôpega. Os necromantes ambiciosos seguem Saulot e
estes são caçados pelos sacerdotes da deusa da morte. Os mortos-vivos são
destruídos e novos são erguidos, não importa quantas almas sejam maculadas,
Saulot é a representação da mácula da morte.
Para Veronicca a morte é uma
bênção. Para Saulot a morte é matéria-prima.
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