[Prelúdio] Tathagata Tyrant



─ Meu senhor, aqui estão os arquivos do orfanato. Os papiros estão bem gastos, devo admitir, se comparados com os da biblioteca imperial de vossa excelência. Confesso que, em todos esses séculos que pratiquei esse ofício, guardar as informações dos órfãos do Orfanato da Sirene pareceu-me algo inútil ­─ explicou Ananiah, um velho elfo do mar enquanto ajeitava os pequenos óculos bifocais no rosto.

            Com dificuldade, Ananiah havia depositado um pesado baú ornamentado em bronze acima da mesa da sala de arquivos.

─ Aqui, meu senhor ─ após longa procura, o velho guardador de papiros entrega um curto pergaminho para o paciente visitante ─ espero que um velho quase desocupado como eu não tenha roubado muito de vosso tempo na tentativa de ser eficiente.

O contemplativo visitante realmente não se importava. Estava naqueles dias em que sua consciência mergulhara nas lembranças de um passado muito distante. Ele recolheu o pergaminho e o desdobrou em silêncio.

─ É só isso que vocês têm de informação sobre ele? ─ perguntou.

─ Se me permite senhor, posso não ser tão eficiente em encontrar pergaminhos, mas tenho uma memória abençoada por Leviathan. Eu me lembro deste sujeito que vossa excelência procura por informações.

─ Desejo ouvir.

─ Pois bem... – o velho Ananiah parou por dois minutos acessando a biblioteca que só existia na sua cabeça ─ Tathagata Tyrant, este é o seu nome. Um tipo difícil, meu senhor, se me permite dizer. Tinha um espírito indomável, mas não chegava a ser brilhante. Lembro-me que era um encrenqueiro que tirava vantagem de sua estatura e era temido pelos demais órfãos e, sempre que possível, afastava-se das aulas e de suas atribuições. Odiava fazer praticamente tudo e tinha pouca paciência.

─ Ele não parece ter boas qualidades ─ o visitante concluiu e esboçou um sorriso contente.

─ Isso é o que eu supunha, mas, pra alguém do tipo dele, até que teve sorte.

─ O que o senhor quer dizer com sorte?

─ Talvez por causa de sua robustez, talvez porque era demasiado insensato e indisciplinado, quis a guarda imperial, certo dia, levá-lo do Orfanato da Sirene. Acho que quiserem colocar juízo na cabeça dele, também acho que nunca conseguiram.

─ Ele é mesmo alguém difícil de lidar ─ concluiu o visitante.

Houve um minuto de silêncio enquanto Ananiah recolhia os papiros e os amontoava organizados dentro do baú de bronze.

─ Se me permite ser um intrometido, meu senhor, porque procura por informações desse sujeito? Ele virou um tipo de criminoso do império?

─ Ele é um criminoso, sim, mas não do tipo que rouba ou mata em vão, e sim porque renega tudo em prol de seu ponto de vista.

─ O senhor parece conhecê-lo bem.

O visitante perdeu-se em lembranças e por um momento manteve-se contemplativo:
─ Eu conheço a rasura de Tathagata Tyrant, mas não o âmago de seus pensamentos. Creio eu que nunca entenderei ou, simplesmente, me recusarei a entender.

─ Sou um velho, mas tenho ótimos ouvidos. Também sei reconhecer quando alguém precisa desabafar – Ananiah tentou ser simpático e o visitante assentiu a essa postura.

Ele caminhou entre as estantes do arquivo do Orfanato da Sirene mantendo uma postura erguida que é típica dos elfos do mar da alta corte e isso revelava muito sobre ele. Parecia procurar por nada em específico, mas, tão breve, sentiu-se à vontade para falar:

            “Eu ainda era uma criança do império quando a família depositou confiança em mim. Era franzino e introvertido. Eu me saía bem diante do povo que morava na periferia do Aquarium, mas a coisa era bem diferente com os demais filhos da nobreza. O porte que a nobreza incide sobre seus filhos pode torna-los indivíduos bem cruéis, na verdade.

            Aqui eu começo a narrar uma história que a princípio parece ser inteiramente minha, mas agora sei que não sou o que sou sem a intromissão teimosa de Tathagata Tyrant nela. Você deve me conhecer como Sekolah, o príncipe da arte do tridente secular, guardião do mar do leste, eu carrego esses títulos a tanto tempo que o esforço que vivi para alcançá-los parece ter se perdido no tempo, assim como tudo se perde nas profundezas do mar de Leviathan.

A verdade é que, até que eu pudesse dominar os setes giros, houveram muitas demonstrações de fracasso. A arte do tridente secular não é para qualquer um, mas todos consideram que um membro da família real carrega em seu sangue a obstinação e a força de seus antepassados. Isso é o que a família nos diz, mas na prática acontece muito diferente. Você não pode imaginar o desassossego dos iansãs quando um de seus filhos mostra-se incapaz de se tornar o prodígio da sua arte de combate.

Mas a família estava disposta a contornar isso exigindo de seus súditos a ajuda prometida aos iansãs desde o nascimento. Primeiro recrutaram os mestres do Aquarium e quando estes não foram o suficiente, buscaram no mar do leste, do norte, do sul e, por fim no oeste. Dos mestres mais rígidos ao mais maleáveis, um por um, foram repreendidos pela incapacidade do treinamento e deixaram de lado o óbvio: a incapacidade do aluno.

Sobrara, então, Yontuhah, um velho e desmerecido taverneiro que havia recusado outros pupilos uma dezena de vezes. Ele era bem diferente dos demais mestres, possuía as excentricidades daqueles que vieram de fora, que viveram na terra seca por tempo demais. Ele me olhou da cabeça aos pés, como quem analisa uma presa e surpreendentemente aceitou o convite, apenas para me mostrar da pior forma que o meu problema não estava na desenvoltura de meus golpes ou na quantidade dos giros do tridente e sim na minha insegurança... nunca me senti tão humilhado.

Naquele dia a Taverna do Bagre Fedido foi o palco da minha maior derrota. Uma peça de ouro foi o suficiente para que um valentão aceitasse bater tantas vezes na minha cara que as escamas de meu rosto demoraram duas semanas para crescer novamente. Foi assim que conheci Tathagata. Conheci o seu punho primeiro que tudo, só depois tive o prazer de conhecer sua presença “cativante”.

Dois dias depois me via cabisbaixo em frente à Thuranya e meu mestre Yontuhah:

─ Do que se trata essa lição, velho taverneiro? Perdeste a sabedoria para o álcool? – perguntara Thuranya embravecida.

Yontuhah foi incisivo em seu diálogo:

─ Estou certo que obtive todas as respostas para o treinamento deste seu filho, minha senhora. Peço-te agora um requisito para que eu continue a treiná-lo.

─ Você menospreza minha sabedoria milenar, Yontuhah, pois sei, ouvinte de muitas bocas e espectadora de muitos olhos, que a única lição que dera à Sekolah foi a mais indesejada.

─ Dou-lhe minha palavra, senhora, mãe do oceano, que se me deres mais tempo e escutares minhas exigências, arrancarei do sangue e da alma de seu filho o guerreiro mais forte e digno que um dia conhecerás.

Por alguma razão que, imagino, apenas os sábios entendam, Thuranya sentiu a verdade nas palavras de Yontuhah e concedeu-lhe mais tempo, além de também conceder seu excêntrico pedido:

─ Existe um visitante corriqueiro em minha taverna, um jovem órfão do Orfanato da Sirene. Ele nunca pertencerá àquele lugar, por isso, eu preciso que você ceda a ele os mesmos prestígios que seu filho, Sekolah, usufrui na nobreza do Aquarium. Que vossa senhoria dê a ele o direito da família.

            Aquela, até então, seria a proposta mais absurda que eu ouvira alguém fazer à própria Thuranya e após esses muitos anos, continua sendo a mais estranha, porém, surpresa maior eu tive quando me juntei à Tathagata na guarda imperial. Lembro-me tão bem quanto hoje as primeiras frases de verdade que trocamos juntos:

─ Mais dois dias e as escamas do seu rosto nascerão de novo – Tathagata disse.

─ Como você sabe disso? – eu perguntei.

─ Fui eu quem as arranquei, não foi? Sei bem sobre a força dos meus punhos.

            E essa afirmação, embora leiga, estava alinhada com a mais pura verdade. Tathagata foi abençoado com a vitalidade de três elfos do mar, um verdadeiro prestigiado de Leviathan. Estar com ele me fazia sentir menos destinado. Ele não possuía qualquer imponência ou porte a não ser a intimidadora presença de seus punhos. A princípio, o caos lhe cabia como uma carapuça, mas logo descobri que havia uma dignidade humilde em suas atitudes. Ele sabia que eu, mesmo sem desejar, era o motivo dele estar ali e um tanto abruptamente tornou-se alguém que me vigiava e protegia.

Não havia insulto dirigido a mim que Tathagata não fosse capaz de silenciar. Na época eu não entendia porque ele fazia aquilo, mas agora tenho sabedoria suficiente para deduzir que o que ele fazia era agarrar-se a maior chance de sua vida.

Certo dia o vi com um tridente, parecia pequeno em suas mãos. Nunca vi alguém segurar tão mal uma arma, mesmo sendo um elfo do mar e sabendo que nossa raça tem um dom natural para seu uso, ele parecia se perder no mínimo indício do primeiro movimento. Senti a necessidade enorme de ajudá-lo:

─ O giro está lento, Tathagata, precisa deixar que a extremidade das três pontas comande a rotação... – expliquei e ele não entendeu. Busquei o tridente e mostrei a ele, uma, duas, três e quantas mais vezes seriam possíveis. No fim do dia ele entregou-me o tridente em mãos e disse:

─ Você é bom nisso, eu não.

            E desistiu da arma para sempre. Já eu, conheci a arma naquele dia, tentando mostrar algum foco à Tathagata, tentando respeitar suas limitações da mesma forma que ele, até então, havia respeitado as minhas. Para mim aquele dia trouxe claridade à minha cabeça e jornada ao meu destino.”

Depois do episódio, quisera o destino nos desenhar caminhos cada vez mais distantes. O nosso afastamento foi algo natural e não foi desejo ou necessidade de qualquer um. Eu não precisava mais dos princípios de Yontuhah, minha adolescência abençoou-me com a destreza e perspicácia que a família diz ser digna dos príncipes de Absynia, já Tathagata, mesmo abençoado com a estrutura de um wa’talla, jamais conseguiu se adaptar na guarda imperial. Ele aprendera a seguir ordens e, graças à Yontuhah, acalmar seus nervos, mas simplesmente nada fizera ele tornar-se um caçador apto como os demais. Furtivo, às vezes eu o via descontar sua inaptidão nas rochas mais distantes do império.

─ Você precisa agir, Yontuhah, deve existir algo que Tathagata se familiarize ─ pedi ao mestre.

─ Há algo maior no destino de Tathagata, jovem príncipe Sekolah, mas ele nunca vai encontrar a resposta aqui, em Absynia.

─ O que o senhor quer dizer com isso?

─ Estou falando da terra seca, da terra além dos limites do Mar de Leviathan.
            A afirmação me deixou atônito, assim como deixaria qualquer elfo do mar nascido em Absynia.

─ Pois, se este é o destino de Tathagata, que ele seja concretizado.

─ Não posso fazer isso, filho.

─ Porque?

─ Estou preso à Absynia por uma promessa.

─ De que promessa o senhor fala?

─ A de treinar um dos príncipes dessas terras. Romper esse juramento seria recompensado com a morte.

            Engoli a seco. Minha mente queria encontrar uma resposta... e encontrou:

─ Eu o dispenso, senhor Yontuhah. Dispenso-o de seus serviços. Eu não preciso mais de sua sabedoria e, por isso, o senhor está dispensado.

            Yontuhah ergueu-se, curvou-se como um pupilo para seu mestre, esboçou um sorriso de contentamento e partiu...

Levou Tathagata junto.”

─ Então, o garoto robusto se foi para nunca mais voltar? – perguntou Ananiah, interessado na história.

─ Muito pelo contrário. Eu o veria dezenas de vezes após o acontecido. Dezenas de vezes ele retornou para o lar e, em cada episódio, estava mais forte e mais experiente. Contava-me de suas conquistas na terra seca. Esboçou-me o significado do ki e demonstrou o que ele era capaz de fazer com ele... primeiro veio a água, depois o ácido, então, o raio...

─ Então, o sujeito tornou-se um mago ou, talvez, um feiticeiro?

─ Muito pelo contrário ─ Sekolah riu entredentes ─ ele aprendeu a usar da forma mais eficaz a arma que estivera sempre destinada a ele. Os punhos

            Ananiah pareceu confuso.

─ Não explico mais sobre isso porque as respostas estão muito além da minha compreensão – explicou Sekolah.

─ E como ele conseguiu manipular esses elementos?

─ É isto o que pretendo entender. Talvez reconhecer seu estilo me faça entendê-lo melhor.

─ E porque o senhor deseja entender mais sobre esse tal Tathagata?

─ Desconfio que há muito mais do que simples coincidências nos acontecidos da vida de meu amigo. Na época eu era jovem e ingênuo demais para deduzir, mas agora, juntando os fatos, eu sei que Yontuhah planejou tudo. Yontuhah o escolheu e eu fui uma mera ponte. A grande questão é, porque Tathagata?

            Ananiah pegou mais uma vez o papiro que falava sobre Tathagata:

─ Nesse inscrito não há nada que remeta aos pais dele – concluiu o velho elfo do mar.

─ Isso apenas significa uma coisa...

            Ananiah até que se esforçou para deduzir a resposta, mas desistiu num dar de ombros. Sekolah respondeu:

─ ... que a resposta não está no Orfanato da Sirene.

            Decidido, o príncipe de Absynia deu meia volta e abandonou o arquivo do orfanato. Não encontraria mais nada lá.

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