Os Atemporais - Capítulo 08 - O recipiente do passado

Todos nos reunimos no salão que Ithias decretara sua biblioteca particular. É um espaço verdadeiramente largo, porém adaptado. Não sei como o velho observador de estrelas conseguiu trazer tantos exemplares de livros para cá e ele não parece disposto à contar sobre o feito. Há três andares aqui, sendo que os dois primeiros estão abarrotados de livros em nichos de pedra, quase tão alto que a minha vista não alcança. Um ostentoso lustre de velas sempre acesas ilumina como o sol durante o final de uma tarde e gárgulas de aparência dracônica estão presas aos pilares da construção. No lugar de grandes escadarias, caixotes foram adequadamente amontoados para servir de subida e um montante de objetos, à primeira vista sem sentido, ocupam bastante espaço no lugar.

Livros e pergaminhos se estreitam nos nichos de forma um tanto desorganizada, de modo que espero nunca ter que fazer uma pesquisa aprofundada usando este acervo - me parece que Ithias, entretanto, sabe se guiar perfeitamente por suas estantes. Há também alguns baús e arcas pesadas, trancafiados com magia de proteção - e, é claro, já saciei minha curiosidade bisbilhotando e identificando que na maior parte deles há vestimentas, pergaminhos com anotações pessoais, vestígios de seus primeiros grimórios e curiosos itens de coleção variados. Contei sete cabeças de dragão jovem e deduzi que estes são os crânios dos sete filhos de Noroi, a dragoa do pântano próximo à antiga civilização de Ankhashadalûr e, por falar neste lugar, parece que muitos dos artefatos não-mágicos daqui parecem ter vindo de lá. Estou passeando em um museu de história.



Em um lugar bem próximo da reunião, mas reservado para o lado escuro da mesa, podemos encontrar pedras estranhas que o velho chama de aerolitos ou pedaços de estrelas que ele andou coletando pelo mundo todo. A mais curiosa delas é uma que contém um escrito misterioso e incompleto que não vale especificar aqui nessa escritura, por enquanto.

O grupo ficou bastante surpreso quando notou o perafita vivo e se comunicando. Mesmo os mais difíceis de se impressionar, como Sethos e Arafat, ficaram meio atônitos. Resolvemos  contar nossas versões da história. Decidiram começar pela minha.

O que falei para meus colegas de jornada é que havia sentido algo oculto e mágico naquela caverna subaquática onde tivemos o prazer de nos encontrar com a deusa oceânica. Aparentemente a sensação me guiou até o que agora vemos. Enquanto esperava ansiosamente por todos, averiguei que o haviam resgatado e, para a minha surpresa, a artefato revelou-se um tipo de criatura de nome perafita. Há quase duas semanas ele acordou e tentou se comunicar. Apesar do dom de falar e entender todos os idiomas, não pude compreender uma só sílaba que o ser pronunciava, logo deduzi que ele deve ser algo tão antigo quando o tempo. Quando percebi que teria tempo suficiente, tentamos nos comunicar, iniciando assim uma fase de aprendizado que culminou num compartilhamento ainda bastante confuso de nosso vocabulário.

As lições acabaram dando certo e o perafita, tropeçando nas palavras e servindo-se muitas vezes de mim como porta-voz, contou aos meus companheiros de jornada aquilo que tinha me explanado nesses últimos dias.

Os titânicos eram uma raça evoluída. Na época do desaparecimento, ele disputavam terras ao leste com os elfos e já haviam enfrentado e vencido o povo anânico, que precisou se refugiar no interior da terra para que não fosse completamente dizimado. Alguns humanos, na época, meros seres das cavernas, eram chamados de isigqila - palavra que à grosso modo pode ser traduzida como escravo ou vassalo, embora eu e o perafita discordamos de sua completa atribuição, já que, entre os povos contemporâneos, escravidão também é sinônimo de mau trato e exploração, enquanto os isgqila eram considerados com certo apreço, responsáveis pelos detalhes na engenharia e até arcanismo da época. Os titãs praticavam omkhulu - outra palavra sem completo entendimento, mas que em livre arbítrio considerei "magia" como sua tradução, embora, meu caro leitor, os perafitas tenham muitos nomes para essa palavra, o que me faz suspeitar que antigamente existiam muitos tipos de magia.

E os isgqila - é importante não generalizar e achar que os isgqila representam todas as linhagens humanas - de alguma forma aprenderam omkhulu também e eles passaram a ser mais importantes que os mpofu, os phansi, e os isisebenzi - esses, eu suspeito, pertenciam à outras linhagens de outrora.

Foram os isqgila que fabricaram os perafitas e tornaram-nos guardiões de memórias, assim como livros, porém conscientes. Os titânicos primeiro aproveitaram a omkhulu dos isgqila, mas com o tempo começaram à invejá-los, pois, quando desafiados pelos titânicos, alguns isgqila recusaram-se e usando a omkhulu, mataram seus mestres. Esses isgqilas ganharam o título de divyah - que muito se assemelha com a palavra divyan, do dialeto gigante atual, que significa divino ou deus, então, meu caro leitor, se eu não estiver sendo completamente precipitado, deduzo que os isgqila são os antecedentes dos humanos que viraram deuses no passado e eles foram os responsáveis por aprisionar os gigantes de outrora. 

Eles fizeram isso apoiando os elfos do leste e também o renovado povo anão, pois ambas essas raças haviam sido protegidas por divyahs da época. Hoje, talvez, consideremos que estes seriam Gaiëha e Hefasto, respectivamente. 

Então, foi apenas isso que o perafita conseguiu se lembrar. Em resumo, os deuses primordiais, seres ancestrais em comum de todas as raças foram responsáveis pelo aprisionamento dos titânicos nas ruínas que estamos averiguando agora. Suponho. Por fim, ficou decidido que parte de nossa jornada nas ruínas seria a busca pelo daymane, a joia que no pergaminho anterior traduzi como "diamante branco", pois esta trará mais memórias ao acervo do perafita. O problema é que o daymane está nas mãos dos titânicos e não será fácil resgatá-lo.

Construir a história do mundo de Draganoth e descobrir uma passagem para o novo continente está cada vez mais complicado e muitos elementos ainda precisam ser considerados. Entre estes está a figura dos dragões, que existiram antes das civilizações soberanas dos humanos e até então não foram citados. 

Mal posso esperar para escrever o pergaminho que interligará cada acontecimento e tornará os atemporais o grupo que concretizou essa realidade. Acompanhe agora as andanças, sem detalhes, dos meus companheiros de jornada.

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