Os Fantasmas da Floresta

[Esse conto é a continuação de: Um sonho sussurrante 📖)

Além da névoa de meus sonhos, agora havia a presença que esmagava meu peito e me deixava inquieto. Com o tempo, videntes como eu desenvolvem um sexto sentido, algo que nos impede de tomar atitudes mau elaboradas. Pois bem, eu havia ignorado essa minha percepção quando decidi encontrar-me com o monstro preso naquele pesadelo, provavelmente porque era um pesadelo e as chances de minha própria consciência me matar eram bem reduzidas. Engano meu, óbvio.

A névoa tornou-se mais densa aos meus pés, nem por isso a minha visibilidade estava perfeita. Ar quente empurrava a névoa contra o solo e quase incandescia minha pele. Eu encarei a morte subitamente quando decidi olhar para cima e ver Terezza.

Certamente não era apenas Terezza, mas sim um emaranhado de rostos, braços e músculos untados a bizarra forma de uma centopeia gigantesca de ossos afiados e carne pútrida. Tudo isso agarrava uma Terezza nua, estampada no torso da criatura como um crucifixo no peito de um guerreiro. Apesar de pálida e visivelmente doente, ela mantinha uma beleza estranha capaz de despertar luxúria. Bruxas são antros do pecado, talvez, naquele momento, meus olhos distorciam sua forma.

Era a respiração de mil almas que empurrava a névoa contra o chão e que aquecia até meus ossos. Terezza abriu os olhos.

- Theomund... – era um sussurro que não vinha somente da bruxa, mas de todas as almas que descrevi antes.

- Sou eu... – respondi lutando bravamente contra o medo e, naquele momento, percebi que não poderia simplesmente acordar e me livrar do pesadelo.

Terezza e a coisa

Todas as pernas da coisa, afiadas como foice, tocaram no chão emitindo um inusitado som metálico. Se a centopeia demoníaca encostasse no solo enevoado, ela me esmagaria e me tornaria uma parte da composição dela, mas, a intenção de ela curvar-se contra mim era manter seu peito, onde Terezza estava, próximo de meus ouvidos.

Os braços que agarravam a bruxa cederam um pouco, apenas o suficiente para que Terezza esticasse o próprio pescoço e sussurrasse bem na minha orelha:

- Escute, oitavo – o hálito dela também era quente – impeça Alexia.

Meus olhos arregalaram-se repentinamente, envolvidos pela declaração surpreendente.

- Ela deseja morrer, mas não pode. Ela é a portadora! – os sussurros eram salivantes. O líquido caía por sobre meus ombros – você precisa detê-la! Ela precisa ser rainha!

Agora, enquanto escrevo essas páginas, me lamento por não ter tido coragem de perguntar algo à coisa. Como disse anteriormente, sonhos são premonitórios, mas, eles não revelam todas as peças do quebra-cabeça, apenas aguça os sentidos do sonhador – ou o enlouquece de paranoia – então, talvez minha mudez seja explicada por esse motivo.

Acordei naquele momento, suando de delírio. Minha visão ainda estava turva quando notei dezenas de silhuetas ao meu redor. Entre elas estava Alexia, Lady Helena e Ulric, as demais eram fantasmas. Fantasmas da Floresta dos Mil Sussurros.

- Se a maioria de vocês tivesse cara de estúpido, eu só os mandaria dar meia volta e sair da floresta, mas vocês parecem saber demais – falou alguém que eu ainda não tinha a visibilidade – com certeza estão tentando fazer treta com os anciões, portanto, sinto muito, não posso permitir.

A visão finalmente tornou-se menos embaçada e pude ver um macaco. Um homem macaco, pendurado nos galhos de uma árvore demonstrando maestria nesse exercício. Ele não estava sozinho, é claro: dezenas de vigilantes da floresta estavam com ele.

- Você é o líder do Monastério Fantasma. Seu nome é Koku. – eu o reconheci. Não que eu já tivesse o visto antes, mas porque sua fama o precedia.

Assim que Koku foi considerado o líder da floresta fantasma, ele reuniu seus seguidores e criou um templo monástico nas montanhas que servem de fronteira entre a Floresta dos Mil Sussurros e Mordae. O Monastério Fantasma é o responsável por treinar os khali ou fantasmas da floresta e os djundinni ou monges silenciosos. Essas duas ordens continuam a proteger a Floresta dos Mil Sussurros e firmar o pacto com as entidades do primeiro milênio. Aos poucos, Koku importasse com as terras ao redor de sua floresta e muitos de seus seguidores são recrutados para missões afora; trecho extraído de: Os reis da era

Koku era o que muitos estudiosos chamam de shifter, um metade metamorfo, alguém que nasceu com os aspectos físicos de uma linhagem manchada pela maldição de Yunnah, a deusa da noite e patrona de todos os licatropos. Ele, entretanto, eu bem sabia, não era devoto dessa deusa e sim um importante personagem da Floresta dos Mil Sussurros, responsável por ensinar artes de aperfeiçoamento no combate aos vigilantes do lugar, considerados seus irmãos mesmo que esses não portem os mesmos aspectos símios de Koku. Sua história está muito além do que eu posso me lembrar agora.

- Parece que os sussurros dessa floresta estão alcançando ouvidos demais – ele riu e eu não pude entender se havia sido por simpatia ou zombaria, de qualquer forma seu rosto voltou à expressão de austeridade quando pronunciou o comando: prenda-os...

Os fantasmas – como eu já disse: os vigilantes da Floresta dos Mil Sussurros possuíam essa alcunha, mas não eram, de fato, seres etéreos – saltaram de suas árvores em acrobacias deslumbrantes. Todos de meu grupo se reuniram em círculo – Lady Helena sequer tinha vestido sua armadura, era manhã, bem cedo, e não havia restado tempo.

- Preso não! – ralhou Ulric – Você vai perder metade de seus amiguinhos se quiser nos levar à força! – Lady Helena pousou a mão sob o ombro de Ulric, um aviso para que ele mantivesse a calma.

O rosnar de Ulric, porém, pareceu pacificar as atitudes do homem macaco e ele estava prestes a deixar que nos explicássemos, então, eu vi o fogo azulado romper-se de um corte da lâmina das bruxas.

Um dos fantasmas gritou de forma excruciante enquanto seu corpo era devorado por um fogo que não queria se apagar. Todos assistiram aquilo. Quero dizer, não somente assistimos como sentimos o cheiro da carne queimada, a agonia de uma morte inevitável e o mal-estar o qual apenas indivíduos malignos parecem ser imunes. Bocas ficaram abertas e o medo estampado nos rostos.

Ao terminar a demonstração da lâmina das bruxas, Alexia deu um passo a frente e disse:

- Você não tem poder para exigir isso – e havia frieza em sua voz.

No plano de fundo da bruxa haviam três figuras estagnadas: eu, Ulric e Lady Helena, confusos com o que tinha acabado de acontecer, absorvendo a situação.

Houve um silêncio após tudo isso que só foi encerrado com o comando de Koku:

- Matem-nos!

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