O ermitão pareceu-me um velho experiente quando se apresentou ao grupo. Já havia ouvido falar dele (algumas vezes bem, outras vezes mal), seu nome é Ithias Flamel e carrega a alcunha de observador das estrelas, por isso, não me admira que ele e Teomund Fawkes fossem velhos conhecidos.
Com a idade os seres humanos tendem a se tornar mais desligados e despretensiosos, pois há um grande prazer em se ter experiência de vida suficiente para que o tempo não seja mais considerado um problema e sim a solução. Esta descrição, entretanto, é totalmente incabível para Ithias. Os olhos do velho mago se estreitaram numa rigidez que assustou até o mais corajoso de nós. Ele ralhou sobre atraso e também do demasiado número de clérigos no grupo, já que ele considera os deuses um bando de mau agradecidos e só depois de um discurso nada convidativo, meneou a cabeça e pediu para que o seguíssemos.
Ithias Flamel, o observador de estrelas
Ithias nos guiou até as ruínas dos gigantes de outrora e, para o meu azar, não nos deparamos com nenhum dos antigos moradores desta região de Chattur'gah - uma decepção inesperada, pois já tinha ouvido falar da franca amizade entre Ithias e um dos antigos chamado Kaiross.
Havia destroços espalhados em frente à um solo duro, feito de pedra polida, porém deveras rachada, tingida de musgo e trespassada pelas inúmeras raízes que brotavam da natureza de Chattur'gah. Tudo ali, na frente das ruínas, era incrivelmente antigo e, ao mesmo tempo, tão firme, que desconfiei da minha capacidade de enxergar auras mágicas, já que, naquele ponto, não notei qualquer vestígio disto. Esses destroços que lhe contei anteriormente pareciam fazer parte da arquitetura do local e ela havia sido destruída recentemente, pois, em comparação com todo o resto das estruturas, estava pouco tomada pela natureza do local.
Lembro-me que Teomund começava à dar ordens para que todos nós nos aprontássemos e Ithias alegou que não seria preciso qualquer preparação por parte do grupo nos próximos dois dias. Desconfiei dessa resposta, mas descobri mais tarde que as ruínas tratavam-se de uma vasta cidade subterrânea, cujos primeiros quilômetros já haviam sido explorados pelo próprio mago que, inclusive, havia sitiado o local e declarado dele.
Resguardamos nossas energias físicas e mentais, mas as sociais permaneceram um tumulto. Fato que ocorreu uma longa discussão entre Sethos e Sebille, a nossa clériga de Veronicca, que é a deusa da morte, no antigo panteão - que a maioria de nós chama de primordial.
Sebille, clériga de Veronicca |
A estranhamente sedutora e cálida Sebille nos envolve com sua paradoxal presença graciosa e mórbida, de modo que fica difícil descrevê-la em todos os aspectos. Ela é uma bruxa enganosamente jovem, portadora de um crânio humano batizado com uma poderosa magia necromântica com a qual ela pode se comunicar e, às vezes o chama de Eloh, às vezes de Sued, de Ezekiel III ou ainda Hildegrim, mas o mais comum é Balthazar.
A presença dela no grupo inquieta Sethos devido sua natureza morta-viva. O clérigo do deus sol havia se calado por curtíssimas horas enquanto Sebille mantinha-se igualmente calada dentro de um esquife carregado pelo velho Cebolas durante a travessia de Chattur'gah. Faz muito tempo que Sebille não pode entrar em contato direto com a luz do sol. Se o senhor, caro leitor, conhecer o mínimo sobre isso, já deve ter deduzido que a bruxa é, na verdade, uma vampira e, por isso, precisa de um vassalo para carregá-la adequadamente para tudo que é lugar dentro de um esquife muito bem vedado.
É Cebolas quem faz esse trabalho árduo, embora nunca tenha o ouvido reclamar. Se você suspeita que Cebolas não é o verdadeiro nome do nosso velho caduco, está certo, mas este se tornou há algum tempo, quando soubemos que a origem do guerreiro ocorreu num pequeno vilarejo que foi assolado pelas hordas trôpegas num ataque responsável por matar toda a sua família. De um simples aldeão plantador de cebolas, nosso velho tornou-se um exímio e teimoso guerreiro.
Algo ainda mais curioso à se comentar sobre Cebolas: a hora da morte dele já passou há muito. Todas as noites seu coração falha e ele sofre um terrível infarto que culmina em ganidos de dor e sofrimento. Nos acostumamos com isso, especialmente após saber que Sebille consegue acordá-lo da morte, por mais vinte e quatro horas, apenas através de um mero toque.
Cebolas costumava usar um foice como arma - afinal de contas, essa é a arma de um agricultor - mas tudo mudou quando Sebille comentou qual seria sua morte verdadeira: ser decapitado por uma foice. Se você, meu caro leitor, não sabe o que significa o termo "morte verdadeira", explico que isto quer dizer a morte definitiva e predestinada de um sujeito. Ser morto "de verdade" significa que não haverá mais formas de trazer seu espírito de volta ao corpo.
Todos nós, atemporais ou não, temos uma declarada morte verdadeira, inclusive você, meu caro leitor. Só que você não sabe qual é e, por isso, está em desvantagem. Cebolas pode retornar quantas vezes Sebille desejar - exceto se um dia ele morrer tendo a cabeça decepada por uma foice - embora algumas destas ressurreições exija tempo e esforço - tempo que Sebille gastará costurando a carne e os ossos do vassalo. Portanto, você deve ter entendido que seria incauto demais um guerreiro andar carregando a arma eleita sua morte verdadeira.
Cebolas, vassalo de Sebille
Atualmente, Cebolas usa uma espada larga que é feita do fêmur de um antigo cavaleiro chamado Hildegrim, o último e estranho romance de Sebille. A arma chamada "Ossada" foi forjada por um par de indivíduos que consegue superar ainda mais o tenebrae que envolve a existência de Sebille e Cebolas, são eles o nomeado casal Ian e Emerald, as sombras atemporais que vigiam todo o reinado e escrevem os diários de sangue para os novos deuses.
Ian Salvatore, sombra atemporal
Emerald Salvatore, sombra atemporal |
E, é claro, precisamos falar sobre a cor de ébano que os dois carregam no lugar da pele. Trata-se de outra longa história envolvendo um dos lordes da penumbra chamado Gerad. Sei, meu caro leitor, que deve estar curioso sobre tudo isso, mas essa jornada será narrado em outro tempo, voltemos para o momento apropriado.
Sethos recrimina incessantemente Sebille sobre sua tendência, enquanto a bruxa debocha e menospreza a existência de uma criatura como o clérigo de Selloth. Mais cedo, Cebolas afastou-se do grupo acompanhado de Sebille e uma pá, mais tarde, nossa vampira retornou com os lábios molhados de sangue que ainda escorria pelas laterais da face. Num discurso de recriminação, Sethos se proclama um devorador de pecados, um tipo de devoto extraordinário de Selloth, incumbido de eliminar a maldição morta-viva do mundo.
Como dito uma vez, no começo de minha escrita, Teomund se interpõe entre os dois e ajuda-os a lembrar que a missão que estamos participando agora é maior do que qualquer outra e me surpreende o fato de Sethos e Sebille deixarem a árdua discussão para depois. Deduzo, então, que estou no lugar certo e este meu novo exemplar literário talvez seja a história mais importante escrita em toda minha vida.
Avançamos muitos salões, ouvimos o barulho do oceano partindo de algum lugar e, finalmente nos deparamos com uma imensa porta escura tão grande quanto a estrutura do local poderia caber. Ithias ergueu o cajado e sibilando uma palavra mágica, um lampadário central acendeu iluminando tudo com vasta luminosidade. Uma dupla de estátuas nos mostrou a dimensão das criaturas titânicas que na primeira era viveram com as demais raças antes de serem misteriosamente extintas. Talvez, a causa desse desaparecimento possa nos ser desvendada vasculhando o restante da masmorra.
Ithias nos alertou sobre os perigos que enfrentaríamos dali em diante. A longa jornada estava para começar, mas ainda há um herói para apresentar...
Portões para além da ruínas |
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