De ambos os lados da longa
escadaria, os antepassados dos Daegonheart vestiam-se nas imensas estátuas
douradas e presenciavam a destruição que ocorria no topo da Torre de
Draganathor, berço do que antes foi a terra natal da linhagem. Uma fenda
gigantesca serpenteou pelos degraus da mais grandiosa das construções que, pela
primeira vez, cedeu ao desmoronamento, como se rasgada pelo vento e pela água
da tempestade cinzenta que começara no início do dia, o primórdio de um fim de
era. Mármore e granito, unidos por uma antiga magia, sucumbiram e formaram um
desnivelamento profundo onde fogo e escuridão se tocavam num vislumbre parecido
com o inferno. Homens e demônios caíam na treva e desapareciam junto com seus
gritos de desespero.
Uma
mão metálica agarrou-se na rocha com força, cravando suas cinco digitais. Este
era um homem de idade avançada, cabelos grisalhos e aparentes rugas desenhando
o rosto dotado de sofrimento. Ele mediu seus esforços, sufocando no próprio cansaço,
para enfim gritar com o que sobrava dos seus pulmões:
─
AENSELL!!! ─ um grito que ecoara mais que o som da destruição.
Duas figuras estranhas flutuavam
alheias à tempestade e à guerra, como se definitivamente não fizessem parte do
lugar. Na quietude que somente os expectadores seguros poderiam manter diante ao
desastre que se alastrava, uma das figuras desceu até próximo do velho que já
estava em suas últimas forças.
─
Quem é este e porque grita pelo seu nome? ─ perguntou Lael, sabendo que o vislumbre
tratava-se de uma das memórias do mundo.
─
Este é Barghaman, um humano que se manteve fiel à drástica sina até o fim ─
respondeu o segundo expectador – o destino bem dissera: ele não precisava ter
ido tão longe.
Barghaman olhou para cima, o
suor gotejando no rosto. Estava distante demais do topo, não lhe restavam
forças e a escalada era impossível, mesmo para ele.
─
Ele vai morrer?
─
Ele já morreu, Laelsen, há muito tempo. Entretanto, não neste episódio, mas em
um tão próximo.
Barghaman desatou o fôlego numa
motivação que somente aqueles que reconhecem o próprio fim se permitem e,
enfim, deixou-se cair na imensidão escura. A queda culminou num espatifar aguado
que surpreendera o velho. Empoçado pelo líquido grosso e fétido, Barghaman
ergueu-se para perceber que havia fraturado algumas vértebras, torcido o pé
esquerdo e batido a cabeça com tanta força que lhe sobrava a tonteira. Estava
no escuro, apalpando as rochas úmidas que o acercavam.
Os
dois expectadores se aproximaram como fantasmas que o velho jamais notaria a
presença. Num estalar de dedo, Aensell iluminou a escuridão com uma roxidão
impregnante, um fogo que se comportava e que não era quente ou frio. Dentro
dessa cúpula de claridade amena, viram Barghaman arrastar-se pela treva desconhecida
e escutaram seu fôlego interrompido pelas desesperadas golfadas de sangue.
─
Para onde ele está indo? ─ perguntou Lael.
─
Paciência, garoto. Estamos numa memória propositalmente. Ela responderá suas
perguntas, se você se acalmar e notar os nuances de tudo que está sendo exposto.
Lael entendeu bem e manteve-se
quieto. Barghaman enxergou uma luz e sussurrou “Aensell?”, aproximou-se para
analisar a cena, pois talvez não lhe sobrara sequer a sanidade. O velho se
arrastaria até onde pudesse, tornando-se, mais uma vez, uma obra do destino,
convertendo-se nos olhos daqueles que, mais tarde, desejariam enxergar o que
estava prestes a acontecer.
Barghaman
viu o fogo da destruição, alastrado como uma auréola ígnea que coroava todo o
interior da fenda. Repousava sobre o lugar um corpo enorme e escamoso,
esbaforido, dando seus últimos suspiros.
─
Este é Falazure, o rei dos dragões negros ─ explicou Aensell.
─
Sei em que época estamos! ─ exclamou Lael de olhos arregalados quando enfim entendera
a resposta ─ esta é a Última Guerra da Era. A Dragocracia está morrendo!
Um lampejo de luz dourada pulsou
como um sol instantâneo no topo distante da fenda. A claridade atravessou a
treva e anunciou a morte de Falazure, seu par de olhos acinzentados
mantiveram-se abertos, opacos e vítreos depois que sua última respiração se
esvaiu.
─
Está correto, Lael. Lorde Albion acaba de clamar pelo nome de Bethril pela
segunda vez.
Então, o céu desabou resvalando nas
rochas e se desdobrando até sua tonelada cair pesadamente, perigosamente
próximo à Barghaman. Uma asa verde levantou-se, estraçalhada. O segundo rei
dragão morrera.
─
Esta é Zheekheef, rainha dos dragões verdes ─ notou Lael, que também conhecia
muito sobre a ocasião, graças ao vasto conhecimento lido na Biblioteca Élfica
de Cadic.
Barghaman chegara bem próximo do
olho amarelado de Zheenkheef::
─
Vocês caíram, desgraçados! – soltou uma gargalhada insana e escarrou nas pálpebras
dracônicas.
─
Ora, mas esse é um desrespeito típico de alguém que sempre teve opiniões
avessas à Dragocracia ─ uma voz se aproximou no lugar ─ Você é Barghaman, da
Taverna do Dragão Uivante... ─ o respaldar de lâminas acompanhou a fala.
Barghaman olhou para o intruso e
se surpreendeu:
─
... e você é o Príncipe da Vingança, Lorde Aisenn, senhor de Asaron.
O chão tremeu novamente com a
queda de mais um dragão.
─
Este de quem fala sou eu, aquele é Razorax, rei dos dragões azuis. Devia ter
ficado nas terras desérticas com seu imenso tesouro, mas veio em busca de um
poder que não estava guardado para ele – comentou Lorde Aisenn.
─
O que você está fazendo aqui?
─
Dando continuidade ao meu plano... – guardou as famosas espadas gêmeas e
retirou da capa um orbe negro envolto de estática escura.
─
Eu conheço isso que está em suas mãos ─ afirmou Barghaman desconfiado.
─
Eu não esperaria menos de um longevo taverneiro que muitas histórias ouviu
outros contarem.
─
O que pretende fazer com um orbe da aniquilação? Matar tudo que existe? Não
sabe que será desastroso usar isso agora, durante essa guerra?
─
Eu já ouvi muitos conselhos de muita gente sábia, mas poucos chegaram perto da
sua sagacidade, senhor Barghaman – Lorde Aisenn aproximou-se do centro da fenda
e depositou o orbe negro ali, muito próximo à cauda de Razorax – Não se
preocupe, eu não pretendo usá-lo para partir este mundo em dois. Eu não quero
isso, embora muitos haverão de pensar o mesmo que você num futuro em que
ninguém terá mais consciência para fazer a coisa certa. No final das contas, é
por isso que Draganoth deve ser governado pela linhagem patriarca.
Lorde Aisenn abandonou o orbe da
aniquilação e se afastou:
─
Usar o orbe do terceiro para destruir coisas, talvez seja a utilização mais
estúpida que eu possa atribuir à um artefato de poder tão imensurável.
Inconscientemente, Barghaman
também se afastava do orbe. Uma energia destrutiva aspergia do artefato e
parecia transformar tudo que estava próximo em pó.
─
Tivemos quatro eras governadas e manipuladas pela deusa da morte e ninguém
jamais suspeitou de seus rastros. Ela perdeu suas chances. Mesmo que não seja
vontade minha, outro deus com esse aspecto surgirá e tomará o trono, mas este terá
de dividir esse trono com um mortal.
─
Do que você está falando, lorde da vingança?
Um sorriso sádico desenhou-se no
rosto de Lorde Aisenn e a treva do orbe negro cresceu e se dissipou num
silêncio propagado pelo vácuo. Haviam três presenças que se estenderam de dentro
do orbe desmanchado: duas delas vestiam mantos negros e mal lhes aparecia a cor
da pele, e a terceira era um cadáver de olhos arregalados e vestimentas largas.
Naquele
instante, Fionalli, a rainha dos dragões brancos despencou e o barulho de seus
ossos quebrados se misturou a uma névoa fria e repentina que se expandiu do seu
corpo. A névoa passageira demorou não mais que alguns segundos e finalmente deu
brechas para que Barghaman pudesse reconhecer mais das presenças:
─
AENSELL! ─ ele gritou e correu em disparada para socorrer aquele que ele
considerava um filho.
No meio do caminho, seus olhos
passaram a enxergar vermelho. Era o sangue borrifado de sua mão cortada. A manopla,
item que acompanhou Barghaman por mais da metade de sua vida, girava no ar e caía
num baque metálico no chão. O velho urrou com a dor e caiu de joelhos. A
segunda lâmina de Lorde Aisenn, então, foi enterrada na nuca de Barghaman,
atravessando mortalmente seu pescoço. Antes do velho definitivamente cair,
Lorde Aisenn sussurrou:
─
Meus pêsames pelo não-filho. Eu sei que você jamais acreditará em mim, dentro
desse fiapo de tempo que ainda lhe resta, mas estou verdadeiramente motivado
pela sua existência ─ vagarosamente, Aisenn deslizou a lâmina de seus
ancestrais ganhando a passagem de volta do pescoço de Barghaman, enquanto continuava
seu discurso ─ eu nem sei se posso considerar esse tipo de afetividade como
fraqueza. Às vezes funciona, às vezes, não. Esse, infelizmente, foi um dos
momentos que não funcionou.
O corpo de Barghaman caiu.
Morto.
─
Uma tristeza ainda maior é saber que alguém que, teoricamente é um de meus
aliados, teve que ter uma morte tão sem peso. Entenda... – continuava Lorde
Aisenn, falando com o cadáver, como se este ainda pudesse ouvi-lo ─ eu não desperdiçaria
o risco que tomei na Muralha de Azran em busca dos escrivães de sangue devido a
um sentimento irracional de um pai para com o filho.
O lorde da vingança limpou o
sangue da espada e a uniu com a sua gêmea, para guarda-las novamente nas
bainhas. Voltou-se para as presenças escuras e disse:
─
Ian e Katherine, aqui existe sangue destinado o suficiente para que me escrevam
o que desejo saber. Continuem seus serviços.
Os escrivães de sangue se
armaram de penas e arranharam o corpo de Aensell. As gotas de sangue pingavam
constantes nos livros de páginas em branco que ambos carregavam. Com a frieza
de alguém que conheceu a morte muitas vezes, Ian e Katherine esfolavam e mutilavam
o corpo de Aensell em busca de matéria prima. E havia muito mais dessa matéria
prima para ser usada.
Havia
o sangue da Dragocracia.
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