Os febris questionamentos de vilania

Interior do Palácio de Cadic

Sozinha, Ofélia dirigiu-se ao Palácio de Cadic a mando do próprio príncipe Alberich, seu irmão. Era o nono dia do sétimo mês do Ano 21 da Quinta Era e, até lá, ela já havia ouvido muito sobre ele. Já passara um mês e meio após a cerimônia que uniu para sempre a vida de Adhraim à de Aurora, dois meses desde que o último pedaço do colosso que atacou Cadic foi recolhido do meio dos destroços da cidade e três meses desde que o mesmo havia sido derrotado e seu irmão retornado da luta na muralha com a cabeça do líder da Trindade Macabra. Mesmo após tanto tempo, Ofélia ainda sentia o cansaço exaurir suas energias. Pelo menos três dias por semana acordava alvo de um pesadelo lancinante que a fazia despertar assustada e com um formigamento familiar e doloroso que lhe provocava todos os poros, suando desmedidamente, febril. Ela passou a conviver com a insônia, uma vez que não conseguia mais dormir após ser despertada pelo terror de sua mente. Isso nada contribuíra para seu processo natural de regeneração física ou mental.


Dormiu durante pelo menos três dias sob a proteção de Aurora e apenas acordou quando o irmão já estava em Cadic, atualizado em relação a todas as notícias de destruição de sua cidade. Não teve muitas chances de vê-lo, mas também não tentou visitá-lo com frequência. Alberich estava demasiado ocupado em reunião com membros do Templo de Splendor e do Hospitalário. Sir Delacroix e Bio Plague haviam retornado com ele, vitoriosos. Ofélia ficara sabendo da cabeça do demônio que seu irmão havia arrancado, uma provável confirmação de sua existência miraculosa e primogenitora, como muitos afirmam. Ouviu o nome de Alberich ser pronunciado muitas vezes como o herói do momento e salvador de um futuro próximo. Não conseguiria e nem queria tomar a iniciativa de falar com o irmão, sabia que ele a chamaria alguma hora, mas não previra que seria tão tarde… três meses depois.


Ainda com a pele oculta sob as faixas e curativos, Ofélia entrou no palácio e ali percebera que fazia muito tempo que não pisava lá. Mesmo antes do próprio ataque da Mortalha, eram incontáveis os dias em que ela não havia visitado aquele lugar que misturava sombras e luz. Notou também que suas sensações não haviam mudado: aquele lugar não havia sido feito para ela. Sentia a angústia de um prisioneiro toda vez que olhava para o extenso tapete de veludo verde que a norteava direto para o trono. Alberich estava sentado lá, sua mulher ao lado, transbordando a nudez que era um misto de pureza élfica e calidez humana, Annalise estava muda e assim decidiu ficar, talvez pelas ordens de seu homem, talvez porque achara importante não atrapalhar a reunião. Ofélia não conseguia parar de tentar ler a atitude de outros e, assim, constatou o quanto a druida repentinamente parecia ficar cada vez mais distante e inacessível.


No lado direito estava Lamberto, o estrangulador ou o ex-estrangulador, como o irmão gostava de salientar. A presença do homenzarrão ali só aumentava as suspeitas de que alguma coisa estava errada. O soldado tinha um embrulho do tamanho de uma pequena mesa de taverna aos pés, portava-se como um verdadeiro protetor do mistério embaixo do tecido de veludo verde que encobria.


“Minha querida irmã”, o  príncipe levantou-se e Ofélia reparou em como ele havia mudado, será que ela mesma havia mudado tanto assim? Alberich sempre tivera porte de nobreza, mas agora algo se misturava a isto, talvez maturidade, fosse o que fosse, Ofélia não queria dar asas às suas desconfianças, “sinto-me culpado por não ter tido tempo para visitá-la antes”, as palavras soavam conflituosamente sinceras e isso deixava Ofélia demasiado confusa. O príncipe andou calmamente enquanto gesticulava eloquentemente com sua única mão, “desejei vê-la imediatamente após minha chegada, mas me aconselharam deixá-la descansar”, quem havia aconselhado? Henrika havia voltado para a corte de Brastav desde que o príncipe saíra para sua aventura histórica na muralha e, de algum jeito, Ofélia desconfiava que o irmão não gostava do ouvido inoportuno dela em seu governo. Dias depois dessa despedida, Ofélia soube que quem trataria de toda a administração de Cadic seria a própria Annalise, auxiliada por sabe-se quem e, apesar de não ter qualquer intimidade com os requisitos para se tornar uma boa secretária, Ofélia não precisou se informar muito para deduzir que a druida não preenchia esses quesitos… como era de costume, a monge não fez caso ao caso, mas deduziu que a única que teria algum poder para aconselhar, seria a mulher do irmão.


“Então os dias passaram e a burocracia veio com eles. Tive de me apoiar na economia mais do que nunca. Nossa mãe me ajudou muito em relação à isso… ela continua calma como sempre. O senhor, nosso rei, adiantou-me que ela não teve mais nenhum daqueles corriqueiros ataques de insanidade. Isso é uma notícia maravilhosa, não acha?”, Ofélia se sentiu coagida, ela seria uma filha má por não se lembrar recorrentemente da maldição imposta em sua mãe? “Enfim… desejo agradecer pessoalmente a sua oportuna ajuda diante toda a situação ocorrida em Cadic durante minha ausência”, ele chegou muito próximo à irmã e a envolveu com o peito, abraçando-a com o braço e sentiu o perfume agradável do príncipe, o cheiro da nobreza longínqua. Era sincero, pelos deuses...como era sincero. Ofélia se sentia vil e pequena diante o irmão, era uma imatura e pecaminosa garota de pés descalços com o peso de mil mortes nos ombros. O irmão não parecia carregar isso… só carregava certezas e uma fé inabalável. Saltou-lhe aos olhos repentinas e disfarçadas lágrimas e ela não entendia o porquê. Controlou-se quando ele distanciou o peito de seu rosto, mas queria manter-se viva no abraço do irmão… ela não sabia que o amava tanto.


“Nada que eu possa oferecer-te caberia numa intenção de compensá-la por tal alto. Devo confessar que minhas atitudes foram desmedidas, mas, pelo bem de Splendor, ainda bem que pude confiar inteiramente em você”. O príncipe virou-se para Lamberto e o soldado descobriu o embrulho aos seus pés, era um baú ornamentado em prata e outro. O campeão de Alberich abaixou-se e abriu o fecho da arca revelando uma quantidade imensa de peças de ouro e joias brilhantes, “quando derrotamos Akuma e seus cultistas, descobrimos no subterrâneo uma riqueza incontável que a Mortalha mantinha em cárcere. Todo aquele tesouro seria sacrificado em honra à Trindade Macabra e sabe-se lá que entidades receberiam tamanha oferta. A Universidade de Cadic ainda está tentando reconhecer os nomes de alguns, mas é um processo lento”, Ofélia instigou-se a observar aquela riqueza merecida, “Você decide com quem dividirá esse tesouro. São contadas oitenta e cinco mil peças de ouro”, ele olhou encarecido para a irmã, “Eu não desejo comprar sua confiança, irmã… eu sei que é o mínimo que posso fazer, e envergonho-me, no final das contas, mas parte do tesouro restante se somará à riqueza que reerguerá Cadic e financiará as próximas incursões do Templo de Splendor”, Ofélia não podia fazer nada além de assentir, “Agora, quero tornar esse momento mais memorável…”, esticou seu único braço e, com um sorriso expressivo desenhado no rosto, levou a irmã aos Jardins de Annalise.


Naquela tarde, até o sol se pôr e além, Alberich e Ofélia riram, lembraram-se das travessuras de infância, do pouco tempo que haviam passado juntos. A monge contara sobre as excentricidades de seus guias espirituais no Templo do Silêncio em Nevaska, o príncipe contava sobre suas pretensões de ser herói. Os dois se analisaram e se perceberam muito diferentes e, ao mesmo tempo, estranhamente iguais…


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