Adhraim Thörrunthain, "A Muralha"




            Ao longe vemos, além da selva de Chattur’gah, o astro flamejante em terra, imponente em sua compleição e vulcão divino cultuado pela raça pétrea. Lugar cujo nome traz a mesma grafia e pronúncia do deus, pois assim os anões reconhecem seu lar de fogo eterno, como a deidade protetora e guardiã da raça, Hefasto.

            Ao longe, também, jamais alguém notaria que o vulcão, outrora berço de toda riqueza, agora jaz livre de mais da metade de sua matéria prima, a não ser, como está sendo claro agora, os próprios anões que por derradeira decisão, agora trafegam em seus baluartes puxados pelos javalis-de-presas-longas, montaria apreciada e arrebanhada pela raça.

Não seria esta decisão a vontade da maioria dos anões, duvido, enfim, que qualquer anão desejasse o exílio pelo mais grave acontecimento ocorrido em sua nação. Ouro, prata, metal e pedras preciosas, quando nesses tempos difíceis foram encontrados incrustados no estômago de Hefasto, mantinham o aspecto pálido e frágil, assim mais tarde observado, mesmo a mais pacata das chamas consumia esses materiais como fina liga de alumínio.

            Seria esta doença da terra advinda do mundo acima do subterrâneo? Ainda é este o questionamento mais vigoroso dentre os da raça. Meados do fim da Quarta Era e os anões se aliariam aos humanos contra um mal maior, jamais impondo a máxima culpa aos primos mais altos, como supostamente fizeram os elfos.

Os anões das terras de acima, sempre considerados aliados excêntricos, bons argumentos tiveram quando se uniram ao povo dos Montes Pálidos, na antiga Asaron (hoje metade Shantae, metade Corantha). A forte influência desses anões havia trazido ordem e prosperidade à antiga cidade cercada de minas profundas e um acordo com Hefasto proveria muito mais. Assim nascia Corantha e assim, também, buscava novo lar metade do povo anão.

            Balouçava as curtas pernas de Adhraim acompanhando o ritmo barulhento dos baluartes que se tremiam diante a forte exposição de pedras no caminho. Na época um anão de pouca e vergonhosa barba, uma criança sem esperanças que se unia as outras demais que apenas ouviriam de seus pais sobre a época de abençoada fortuna que Hefasto um dia provera.

Sabemos agora, sendo este agora o mais tarde, que Adhraim pouco foi influenciado pela cultura de seu berço, mas adaptara-se, como joia bruta nas veias de uma profunda caverna, às tendências de seu novo lar, pois passado devido tempo, encontramos ele em posse de armadura e escudo coroados, à frente do templo dos espelhos, lugar cujo sequer é pertencente à religião de Hefasto. Cabe, então, moralizar o filho dos anões, dono desta história, através deste escrito incomum que tenta, além de tudo, explicar as razões do mesmo em relação a demasiada distância de seu povo.

            Houvera de nascer, no mesmo ninho, não somente Adhraim, filho de Tharathor, mas também uma joia igualmente bruta, seu irmão Durval. Recém-nascidos, tinham o mesmo rosto e os mesmos curtos braços e pernas, há quem diga que o mesmo aparente sorriso de inocência saltava em seus rostos roliços. A bênção univitelina, se rara em outras espécies, é entre os anões milagre de deus e fonte de inspiração.

Acontecera, no mesmo dia do ocorrido nascimento dos gêmeos, acaso em que Runo Thörrunthain, tio dos mesmos, encontrara nas profundezas subterrâneas uma joia límpida, já lapidada e rara, como uma vez a cada cinquenta anos se encontra em Hefasto. Ao tentar retirá-la, descuidado, a tal gema brilhante se quebrou em um par de joias exatamente iguais. Runo entendeu a mensagem divina e presenteou seu irmão Tharathor com ambas, para que cada preciosidade guiasse as escolhas de seus sobrinhos, quando chegasse a hora.

            Refaço agora a cena que anteriormente foi narrada, pois não somente um par de pernas curtas balouçavam ao embalo dos baluartes, havia, na verdade, dois pares destas, Adhraim e Durval, ambos sofrendo as mesmas dores que representam a distância do lar, mas dores experimentadas de forma diferente.

A semelhança dos irmãos limitou-se à infância, pois crescidos, Adhraim e Durval passaram a ser muito diferentes. Há quem diga que a distância de Hefasto os influenciou de forma inexata, mas sempre ouviremos histórias ocorridas ainda no berço destes anões, histórias que comprovam a disparidade entre os mesmos. À Adhraim reservamos a diplomacia e a caridade, ao seu irmão, pergaminhos, tinta e penas. À Adhraim temos notícia de suas sábias decisões em prol à comunidade, ao seu irmão, a inteligência atípica entre os anões – particularidade que o fez voltar-se para magia arcana, anos mais tarde. Soltos no mundo, já ninguém poderia apontá-los como irmãos.

            Avisados da desordem do mundo afora, os irmãos mantiveram ideologias diferentes enquanto longe da terra natal. Adhraim encontrou a chance de entender este mundo, portava a joia gêmea à viva mostra, incandescendo-a sob o olhar do círculo de fogo que governava o céu. Durval temia o furto de sua preciosidade, pois conhecia o que os habitantes das terras afora eram capazes de fazer para acalentar suas fortes ambições, trancou sua joia gêmea num baú escuro e reforçado, mantendo-a sob a escuridão do oculto para que ninguém a notasse.

O caminho dos irmãos, enfim, foi separado e só voltaremos a saber sobre a reunião dos dois quando for tarde demais para um deles. Desassociemos Durval desta história, pois ele viverá outra, como salientado tantas vezes antes, diferente da estrada de Adhraim.

***
           
            Corantha passou a ser o lar de Adhraim. Lá, os anões obrigados a abandonar o lar original encontraram uma nova fonte de ofício aproveitando-se do domínio da pedra e do subterrâneo desenvolvido durante milenar existência da raça. Vemos, agora, um Adhraim voltado às escavações de túneis e exploração de minas. Seu vínculo com a joia gêmea o fez apreciar as estrelas na escuridão subterrânea de forma muito mais idealizada do que a proposta pela simples ganância. Avaliava a pedra bruta, arrancava com cuidado cada gema incrustada na pedra num ritual de paciência que herda da raça.

            Corantha cresceu e tornou-se importante e influente. As minas dos montes pálidos acabaram se mostrando fonte inesgotável de riqueza e a expansão de seu território tão logo foi necessária. Assim, Adhraim e um grupo de anões, passaram a escavar cada vez mais fundo na rocha e, como nas histórias de maior mau augúrio da raça, desencravaram o perigo das profundezas. Quando aqueles anões exploradores noticiaram a pedra escura enterrada no subterrâneo, logo notaram que a mesma não pertencia ao território natural.

A estranheza, entretanto, não os alertou à surpresa que aquela escuridão os reservava. Naquele dia, arrastados pelas sombras, cinco anões desapareceram para sempre e Adhraim, o único que sobrara, tomara uma decisão derradeira enquanto encarava a bizarrice horripilante que se mostrara em sua visão no escuro.

            O preto e o branco – a visão dos anões, no escuro - se contrastavam gerando a imagem onírica projetada pelo mais cruel dos pesadelos. Olhos agudos e pálidos encaravam Adhraim provocando uma violenta dor de cabeça, enquanto a escuridão gelada parecia tomar a forma de tentáculos arrasadores. Usando o próprio corpo como escudo, o anão reagiu tão nos conformes do título que mais tarde seria gerado a ele mesmo. Uma muralha.

À beira da morte, Adhraim não conseguia aceitar o fato de ter sido ele o responsável por despertar aquele perigo e ainda morrer sem a chance de fazer nada que contrariasse o sentido inane de sua vida. “Não vai passar” era a frase que sua mente repetia, enquanto mantinha-se firme, frente à única saída para a coisa que enfrentava.

            Uma voz, enfim, silenciou seu mantra. Ela dizia:

— Eu já tenho você...

Havia uma inconveniente confusão naquela existência psíquica.

— Não! Estou enganado. Você é diferente!

O forte pulsar na mente de Adhraim quase o fizera cambalear naquele momento.

— Quero-o!

Exclamou a voz com ar de satisfação.

            A gelidez de um tentáculo de escuridão serpenteou a nuca de Adhraim e cravou-se em sua cabeça. O corpo do anão pouco resistia, em poucos momentos ele estaria inerte e, provavelmente, seria arrastado para a escuridão como os outros. O tremor em seu corpo indicava a teimosia dele, constantemente desafiada pelo pensamento afogado: “Não adianta resistir”.

Mas Adhraim o fez e, mesmo que por mera e inconsciente reação, alcançou em suas próprias vestes a joia dos gêmeos, pois descobrira um brilho lancinante que se projetava da mesma. Com a gema em mãos, livre do ocultamento, a caverna escura foi inundada por uma belíssima luz sacra multicolorida, como se um raio de luz despertado no coração da joia buscasse a liberdade e cada lado da gema polida formasse uma cor díspar.

            Cores berrantes que pareciam provocar a mesma dor aguda no consciente de Adhraim à criatura abissal. Ela desatou os nós do anão e buscou proteção nas trevas, esperando que seu teimoso inimigo vacilasse, pois sabia que era só uma questão de tempo. Tamanha era a certeza desta que o anão, segundos após, caía de joelhos no chão da caverna e deixava despencar de sua mão a joia brilhante. Uma cena tocante que parecia antecipar o fim, mas, como sabemos, este não era o derradeiro dia de Adhraim.

Ele acordou, sabe-se lá quanto tempo depois, iluminado pelas luzes refletidas de uma dezena de espelhos. Conhecemos, a partir daí a ligação que Adhraim passou a ter com Valerie, pois ninguém mais notificaria a luz que soava à clamor nas profundezas daquela caverna, senão a suposta amante de Hefasto, que assim disseram os religiosos mais românticos. Nomeados heróis da Montanha Espelhada fizeram a criatura das profundezas fugir e a vida de Adhraim prosperar.

            Após a bem-vinda salvação, Adhraim conhecera os seguidores da deusa do belo, aliou-se aos que mais tarde seriam seus irmãos de vanguarda e estes deram o título de “A Muralha” ao anão que resistia a tudo. Esta união provera status ao guardião e, consequentemente, mais tarde, a missão que o encaminharia à luta contra o lado execrável e medonho do mundo. Em Cadic.


Adhraim Thörrunthain, "A Muralha". Arte por Homero Ricardo.

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