Era
por urgência que Ofélia, já naquela sombra de resto de dia, se encaminhava com
a ajuda dolorosa de seus pés imundos, ao palácio agora cercado de rosas e
espinheiros ao norte de Cadic, perseguida por um Fulgore obstinado, pronto a
aceitar as regalias de amigo confiável.
E
não importava as ocupações noturnas do, agora príncipe, Alberich, o banho em
água ungida que impedia as maldições inimigas corroerem o resto de seu braço,
deveria ser adiado para além do anúncio de sua desapegada irmã:
-
Eu corro contra um prazo de tempo, irmão, para informar sobre a coisa que
nasceu na selva vizinha – ela vomitou as palavras, sem apresentação, sem
comedimento e sem distinção de realeza, tão logo não sabia que o irmão tratava como
lei a etiqueta na corte.
-
Estive esperando por isso – o príncipe era de uma garantia motivadora, para
alguns, talvez, preocupante e, embora sucinta resposta ao imediato, havia-lhe
tantas dúvidas do que ocorreria a partir dali que a simpatia que ele desenvolvera
pela guerra tão próxima era um desconforto para ele próprio. Assim como das
outras vezes, deu com os bruços de sua consciência, pois a falta do temor lhe
era somente mais uma certeza de que as bênçãos de sua divindade voltavam a
encarná-lo.
Do
outro lado, manteve-se atônita Ofélia, moralizada pela autoinstrução do irmão
que a muito não vira e que por deveras mudanças passara.
-
O restante da távola ficou lá. Adhraim e Ithias tentarão trazer a nação de Forte
Decker para cá, onde poderão se defender mais justamente – Ofélia ainda ofegava
e, se se curvava, era porque as pernas lhe doíam ou a consciência lhe fazia
imaginar um mundo nas costas.
-
E quantas lanças proverá Forte Decker? – de certo Alberich sabia que perguntas
tão beligerantes eram de desconhecimento total da irmã, mas o questionamento
foi feito muito mais para conscientizá-la do despreparo do que para jogar com a
sorte de ela, talvez, conhecer a resposta.
Essa
intenção foi logo comprovada no cenho de Ofélia que, antes de qualquer
pronúncia foi desafiada por uma voz perseguidora:
-
Sessenta lanças, senhor – respondeu Fulgore, o vermelho, vindo das sombras
comuns que se desmanchavam vítimas das tochas espalhadas no palácio. O meio-orc
adiantou-se e se curvou perante o príncipe, pois, em sonhos, sabia que assim
deveria se portar, apesar de pouco reconhecer os ditados da realeza. Fulgore
tinha mais do que o conhecimento que seu lar de orcs provera, tinha também o
carisma que sua linhagem disseminava sobre sua presença.
Em frente à irmã Alberich não estava
disposto a denunciar sua rigidez de imperador e, diante um comportamento tão
prestável vindo de um orc, ignorou a repentina e furtiva aparição para ouvir o
que o vermelho tinha a dizer:
-
Pouco mais de sessenta lanças, um lorde guerreiro, um menestrel com experiência
bélica e a devoção que aquele povo tem em relação ao seu pai – Fulgore respondeu
com precisão.
-
Que provas eu tenho para confiar em tuas certezas, atiçador de piras?
-
Nenhuma física, senhor, mas achei que o senhor poderia reconhecer o meu título
como membro da távola e meus dons oníricos que despertaram o interesse de seus
irmãos de pátria.
-
Então, você é Fulgore, o vermelho, aquele que se comunica com a Chama Orc e,
por isso, tem sonhos periódicos sobre seus próximos passos.
-
Sou eu, senhor, também representante de Feradûr.
-
Seu povo veio do sul. Primeiro das ilhas esquecidas, depois da fronteira com a
Muralha, para as terras de minha irmã que, eu deduzo, lhe recebeu de braços abertos,
assim como a qualquer indivíduo que não ameaça o bem-estado de Cadic.
Fulgore
assentiu.
-
E, suponho eu, que devo respeitar o legado de minha irmã e tomá-lo como um
amigo que, de certo farei se provares um leal aliado.
-
É isto que venho propor...
-
Uma barganha num período em que a quantidade de homens tem maior relevância.
-
É assim que se regem os acordos – respondeu Fulgore, como guiado por uma
entidade que sabe tudo.
-
Vocês estão em quantos?
-
Doze, senhor. Treze comigo, que sou a própria chama.
Por
um instante de inquieto silêncio, Alberich pôs-se a pensar mais do que na
quantidade, mas sim no apelo em que aquela religião havia se estabelecido em
Cadic. Olhou de volta para a dupla diante de seu trono e perguntou:
-
O que você acha disso, Ofélia?
A
pergunta a surpreendeu deveras.
-
Fulgore é um aliado. Ele provou isso mais de uma vez.
-
Não teriam sido estas provações obtidas em tão pouco tempo?
Ofélia
buscou alguma forma de racionalizar aquela certeza e isso tornou-se difícil
pois, foi ali, perante aquela situação inesperada que a monge percebeu que dava
mais ouvidos ao coração do que a mente que foi tão arduamente lapidada. Levou a
mão ao peito e sentiu o volume da joia de sua mãe. Daí encontrou a resposta:
-
A vontade de minha mãe é justa e meu caminho espiritual nunca me revelou
traição ou maldade vinda de Fulgore. Confio mais do que impulsivamente nele.
A
simples menção da própria mãe cativou Alberich, tão bem pudera, pois foi da
boca de sua materna que o príncipe ouviu seu destino de liderança e foi por ela
que ele foi convencido a abandonar a segurança de Brastav, por ela, também, Alberich
tinha aceitado o sacrifício de manter-se com um único braço. Assentiu
peremptoriamente e acrescentou:
-
Sua ajuda é bem-vinda, Fulgore, o vermelho.
Houve um riso de satisfação
rapidamente desfeito e esboçado no rosto do meio-orc, seguido do movimento de
curvar-se. Os presentes ali, é claro, sabiam que a aliança teria novos caminhos
a serem traçados, mas estes deveriam esperar até o fim do combate com a cidade
de carne.
-
Peço sua permissão, irmão, para algo mais – continuou Ofélia e seu pedido, sem
deveras apreensão, foi respeitado por Alberich – desejo que seja eu a
responsável por levar más notícias ao meu pai e devo fazer isso o mais breve
possível.
-
É o seu desejo, lady Ofélia e você, é claro, tem liberdade para fazê-lo. Não
sairá daqui como uma medrosa e sim como uma luz de esperança, me certificarei
disso. Saiba, entretanto, que não haverá tempo para que se preparem nem ao
menos os velozes Cavaleiros Eólicos de nossa nação antes da chegada do desafio.
Nosso Templo de Splendor se certificará de mandar mensagens divinas para nosso
pai, mas a urgência definitiva será sua presença nos patamares de Brastav.
Assim ocorreu o primeiro distanciamento
da princesa depois de tanto tempo sentada sobre o trono de Cadic e assim também
se deu início à nova jornada que ela enfrentaria pelo seu destino. Uma visita aos
pais que lhe concederam o dom da autoperfeição em troca da infância. A mente de Ofélia sondava a conflitante melancolia que apenas se equipara a existência de um pássaro que vive livre, mas deseja uma gaiola só para ele.
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