Os guias da cidade de carne




Descia de um imenso rochedo as cataratas de águas violentas que banhavam a selva de Chattur’gah. Era a terceira semana que me mantinha vigilante acima daquele monumento natural erguido e projetado pelo próprio Zoe (a entidade feral e divina que protege a selva de Chatttur’gah e que, consequentemente, é cultuada pela maioria do povo bárbaro), pelo menos essa era a base da história que Freya havia me contado sobre a Boca do Grande Urso, esse lugar que permitia um bom observador enxergar além das fronteiras da selva dos ancestrais e ao mesmo tempo ocultá-lo atrás de uma bruma espessa provocada pelo contínuo salto das águas contra a parede.

A Boca do Grande Urso, posto de vigília da tribo do urso, em Chattur'gah


- Você não precisa manter vigilância o tempo inteiro, Theo – recomendou-me Alexia – já lhe disse que a lâmina das bruxas nos alertará quando chegar a hora.

Meus olhos sobrepujavam a cortina de névoa e vasculhavam o horizonte, presumo que à toa, pois minha amante porta consigo uma espada longa forjada a partir de um atípico cristal enegrecido e que supostamente é capaz de sentir a presença de auras necromânticas. O que nós esperávamos ver com certeza seria notado primeiramente pela famosa lâmina das bruxas, mas, qualquer mago acaba desenvolvendo a mania de estar sempre preparado e, devido a isso, também uma teimosia paranoica de acreditar que somente seus sentidos e seu conhecimento podem enumerar o tamanho do perigo vindouro.

Embora muitas vezes tenha me recomendado a sentar e relaxar, Alexia fazia o mesmo que eu e, sem que sequer notássemos, estávamos nos revezando em turnos de vigilância que tinham como principal missão olhar para o horizonte e anteceder o perigo que sabíamos que tão logo iria despertar. 

Em dias esporádicos, a nós se juntava Freya, a líder da Tribo do Urso, heroína de grandes contos bárdicos que se gaba por possuir força exacerbada e um incontável número de cicatrizes que em nada cooperaram para manchar sua beleza natural. A bárbara se unia à vigilância e nos contava inúmeras histórias sobre a cultura de sua tribo e da selva de Chattur’gah – em primeiro momento contava por insistência minha, que desejava conhecer mais sobre o lugar que estava, mas, posteriormente, apenas por mera predileção de divulgar sua sabedoria.

Freya parecia sentir a presença da ameaça circundando sua tribo e muitas vezes me questionou sobre o fato de não agirmos antes que a ameaça viesse até nós – Quando a coisa está nascendo, ela devora tudo ao seu redor e não há como pará-la. Nossa presença lá poderia garantir muito mais força à criatura. Meus conhecimentos somados à sua magnífica força física e a linhagem que corre nas veias de Alexia poderiam torná-la invencível. Alertar o rei ou o mundo acarretaria no mesmo. Eles não têm a resposta. Eles não podem enfrentá-la em Chattur’gah. Nossa missão é enviar a coisa para distante da selva, para um lugar além da fronteira, até uma pequena cidade chamada Cadic.

Dentre os membros do meu grupo, apenas Kaiross parecia não estar tenso. Alexia explica isso de modo muito simples e direto: - Ele é louco, Theomund e receio que se você continuar a ouvir tudo que ele diz, vai se tornar tão maluco quanto – mas, é claro, meu companheiro druídico é muito menos superficial do que divulga a opinião de minha amada. Eu percebi isso quando o vi cuspindo uma dezena de vezes no alto da Boca do Grande Urso, uma excêntrica mania que os druidas praticam para afastar os maus espíritos. Assim, não me pareceu loucura a seguinte citação quando vinda da boca de Kaiross:

-  Dia a dia são litros de saliva e urina e, com muita paciência, criarei meu próprio rio!

Não posso discordar que Kaiross tenha a mente perturbada, mas, este é um sintoma muito pequeno para um portador de um dos olhos de Hecate. Seu olho esquerdo, grande e da cor do cobre, capaz de enxergar muito além do véu da sanidade lhe concede visões e, por mais que todas estas estejam constantemente cobertas por uma névoa mental, qualquer indivíduo com a mesma habilidade se tornaria plenamente paranoico e, se houvesse sabedoria que lhe restasse, aprendera a conviver com esse castigo de forma excêntrica, palavra que define muito bem o comportamento do druida. Então, reconheço que há uma guerra interna entre ele e sua mente e qualquer frase confusa e, aparentemente, sem nexo, que ele pronuncia tem algum significado, talvez, sensitivo:

- Em uma de minhas vidas eu fui um elfo e confesso que não tenho boas lembranças disso. É um povo que odeia se aproximar demais da linha tênue. De um lado são putas prontas para gerar pequenos e rosados príncipes destruidores de mundos, do outro, guerreiros castos que usam suas espadas como usam o pênis, presumindo que este seria o único prazer válido da vida, seguro como camisas de Valerie, com receio de serem enganados pelo destino. Mais que diabos vale cutucar tanto ou cutucar nada o buraco da fortuna? Não entendem que tanto faz o lado que o galho da árvore vai cair?

Não houve tempo para analisar mensagens subliminares no comentário de Kaiross, pois a coisa finalmente começava a acontecer naquele minuto. Antes mesmo de a chama bruxuleante incendiar a lâmina de Alexia, pude sentir o ar pesar e notei a repentina amenidade na luz do dia, uma percepção que, talvez, eu tenha adquirido devido há tanto tempo longe do conforto e da segurança, aprendendo a desconfiar da sombra mais fugaz.

- Está acontecendo... – Alexia me informou enquanto empunhava sua espada envolta em chamas púrpuras, queimando o cristal afiado como uma chama perambula pelo metal de uma arma bem forjada.

- Hora de dar início ao plano – afirmei tentando impor segurança aos meus amigos e, ao mesmo tempo, reforçando a confiança que tinha na minha própria inteligência.

Eu vi Kaiross alcançar, num salto, o ponto, anteriormente indicado por mim, no alto da Boca do Grande Urso. Ele riu sadicamente, ressoando o prazer de finalmente poder fazer aquilo, em seguida cravou seu cajado torto na pedra e, de olhos fechado, exigiu que a natureza o obedecesse. Um monólito inteiro separou-se da rocha e a água que jorrava condicionada nas cachoeiras daquele monte encontrou nova passagem e, como se curiosa para saber aonde aquilo ia levar, a água se estendeu numa onda violenta que arrastou a pedra cujo druida estava em cima.

Kaiross surfou em cima da pedra enquanto esta despencava daquela altura e a onda tornava-se uma serpente de água a desabar no chão aos pés da Boca do Grande Urso e se arrastar em ziguezague desafiando a selva no meio do caminho, dividindo-se em inúmeros braços fluviais e labirínticos. O barulho do desabamento da terra e da água provocou um estrondo ensurdecedor antecipando o perigo aos animais da área e pude ver os pássaros alçando voo para um céu longínquo enquanto os terrestres se desviavam a força da natureza.

Toquei na mão de Alexia e, como planejado, recitei as palavras arcanas que nos permitiu voar. Freya rejeitou o auxílio da magia e decidiu continuar a pé, dando longuíssimos saltos trovejantes e se transformando num monstruoso e pré-histórico urso atroz. Ela alcançou uma velocidade estonteante rapidamente enquanto eu e minha amada víamos Kaiross guiar o curso da água em direção à fronteira. Eu gritei:

- Escave um rio longo naquela direção. A ideia é barrar a coisa! Ela não pode escolher o caminho ao sul de Azran! Eu e Alexia atrairemos a atenção dela até a fronteira – a lâmina das bruxas fervilhava perto de mim e sua portadora deixava-se guiar pela leveza da minha magia – Pronta, Alexia? – ela me respondeu com um aceno de cabeça e continuamos a voar mais rápido que a torrente criada por Kaiross.


            No alto, em meio a violentas rajadas de vento, acenei para que Alexia fizesse o combinado. Ela assentiu e empunhou a lâmina das bruxas com firmeza. Labaredas púrpuras emanaram da espada e tomaram a forma de rostos rasos de órbitas profundas acompanhados por sussurros fantasmagóricos das vítimas trancafiadas no artefato. Já havia visto aquilo outras vezes, em teoria, a energia necromântica da lâmina das bruxas havia tomado o estado gasoso, um aspecto que a tornava etérea e assustadora.

- Siga o meu rastro, criatura horrenda! – gritou Alexia voando com maestria.

A cidade de carne anda...


            A selva inteira respondeu. Árvores apodreceram e se partiram dando passagem à massa de carne fétida volumosa e sedenta. Braços sangrentos, presos à cartilagens deterioradas, ergueram-se abandonando o acúmulo de pele e músculo que ainda os prendia ao solo. Ali assistíamos o parto de uma criatura medonha e monstruosa com garras protuberantes e ósseas partindo o ventre daquilo que um dia o gerou. Uma visão que acarretaria em sequelas para qualquer observador: o mal e o caos nascendo, faminto e curioso. Um mal que nasceu sabendo que irá governar.

Vimos os corpos de mortos-vivos presos em jaulas retorcidas coladas ao corpo da criatura imensa, eles eram os olhos, os ouvidos e o faro da cidade de carne, despencando em rios de sangue e vômito. Constatamos que ela havia nos encontrado quando emitiu o grito assombroso, um urro que rompeu terra e céu e se assemelhava à voz de uma criatura monolítica abrindo caminho por uma garganta mutilada que vomitava e expelia milhares de criaturas menores de olhos opacos, garras afiadas e gengivas sangrentas. Estas começaram a disputar uma corrida entre elas mesmas e o ponto de chegada era a própria Alexia.

Então, aquelas formas de carne famintas começaram a saltar do corpo da criatura principal cuja silhueta já se mostrava similar a de um humanoide lamentoso engatinhando aos tropeços, tentando agarrar o céu. Fiquei surpreendido quando as pústulas que escorriam da pele da besta passaram a estourar libertando mortos-vivos detentores de asas longas, cavernosas e vermelhas. Uma destas criaturas aladas ganhou velocidade numa investida abocanhadora, mas foi impedida por um raio arcano disparado de minhas próprias mãos. 

Mas aquela seria apenas a primeira de uma chuva de outras...

O céu escureceu e tornou-se sangrento e logo as nuvens sobrenaturais trovejavam, cuspindo dezenas das feras aladas. Estas se ocupavam em nos atacar e atacavam principalmente a portadora da lâmina das bruxas, mas eram detidas pela força mágica e invisível que eu controlava através da mente – telecinese – e os golpes certeiros e flamejantes de Alexia – ela clamava pela proteção da convenção de bruxas cuja líder, a muito tempo, foi sua própria mãe.

Mas estorvo nenhum se comparou à coisa alada que brotou das costas da Mortalha. Ela desenterrou-se vagarosamente da superfície de carne e zumbiu alto, farfalhando e cuspindo líquido esverdeado como uma cachoeira derrama a água de cima de uma montanha. Alçou voo e se adaptou ao ar parecendo um pesado e desajeitado dragão, imperando sobre as demais existências que planavam ao redor dela.

Mantive-me focado, embora minha mente sofresse ataques constantes de loucura provocada pelas repentinas e bizarras aparições, e a fiz engolir uma bola de fogo ensurdecedora que a fez desmanchar-se parcialmente, mas isso não a deteve por muito tempo. Alexia clamou pela convenção e uma forte ventania guiou a chuva grossa e os relâmpagos do vendaval para açoitarem a criatura alada que se aproximava perigosamente de nós. Isso também não a deteve. 
Criatura alada nascida das costas da cidade de carne

Apenas quando a criatura estava a poucos metros, pude ver a própria natureza, abaixo de nós, esticando seus galhos e cipós para agarrar a cauda da criatura, em seguida, um urso atroz escalava o caminho formado e cravava as presas e garras na carne apodrecida do inimigo e o desabava do céu, abusando de uma força poderosa. Era Freya.

- Continue, Alexia! – gritei, apontando a direção da pequena e azarada cidade de Cadic. O final da coisa ocorreria lá.

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